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No dia 1 de Janeiro celebra a Igreja o Dia da Paz. Por uma Mensagem do Papa, datada de 8 de Dezembro, e uma pastoral colectva dos bispos portugueses, do dia 13, são os católicos convidados a participar nas celebrações desse dia e na respectiva vigília.

1. A nota pastoral, em que se alude de passagem à «situação de guerra em que nos encontramos», revela mais uma vez a realidade do compromisso político da Igreja frente ao Estado. Por exemplo, quando refere «os povos ultramarinos que integram a Nação Portuguesa», toma partido pela tese do Governo, que está na origem mesma da guerra; ou quando utiliza a equívoca analogia de Paulo VI entre pacifismo e cobardia, fazendo sua a respectiva aplicação ao caso português; ou ainda quando aponta implicitamente como único remédio para a guerra o desenvolvimento dos territórios, passando por cima da recomendação expressa e insistente do Papa, em relação a qualquer conflito: «O entendimento, as negociações, a arbitragem a que devem intercorrer nas relações difíceis entre os homens; não o ultraje, o sangue ou a escravidão», como voltou a declarar na mensagem citada. Deste modo, a fórmula da Populorum Progressio, «o desenvolvimento é o nome da Paz», pode servir para escamotear o grave problema com que nós, portugueses estamos confrontados – o de um estado de guerra que se arrasta há oito anos e que ameaça prolongar-se indefinidamente; guerra de que muito pouco nos é dado conhecer, quanto às suas verdadeiras causas e em toda a extensão dos males, das destruições e dos sofrimentos incomensuráveis que tem provocado e continua a provocar.

 2. Sabemos que a Paz a que a Igreja nos exorta tem inumeráveis sentidos e desdobra-se em múltiplos aspectos. Para os portugueses, porém, neste momento, a paz tem de ser primordialmente referida – e sem rodeios – à guerra em que estamos envolvidos e de que temos, pelo menos, uma parte da responsabilidade. Tratar da paz nas consciências, da paz nas famílias, da paz na sociedade, da paz no mundo em geral, deixando para segundo plano a paz real e concreta que nos recusamos a procurar desde há oito anos, aparece-nos como aviltante hipocrisia e como grave injúria a todos os que sofrem e morrem e a todos os que continuarão a sofrer e a morrer.

 3. A verdade é que todos nós nos deixámos instalar nesta guerra; que a admitimos como inevitável e imposta; que nos acobardamos sob a desculpa dos riscos que corre quem ousar pôr dúvidas à sua justiça e à sua legitimidade; que somos todos cúmplices de uma conspiração de silêncio à sua volta. Na verdade, procuramos fazer a nossa vida normal e considerar em paz a nossa consciência enquanto em África aldeias inteiras são arrasadas, populações dizimadas, prisioneiros porventura torturados e assassinados; enquanto homens, mulheres e crianças ficam estropiadas física ou moralmente para toda a vida; e , enquanto, mesmo entre nós, milhares de jovens continuam sem acesso a um ensino adequado, populações inteiras sem assistência médica suficiente, multidões de operários sem possibilidades de trabalho na sua pátria.

 4. Nestas circunstâncias, a celebração do Dia da Paz aparece como uma oportunidade para nos despertar e como um apelo à nossa dignidade e à nossa coragem. Vala a pena tomá-la a sério. «a Paz é o dever da História presente», diz Paulo VI. E é-o tanto mais para nós, se atentarmos no lema proclamado para este ano: «A PROMOÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM, CAMINHO PARA A PAZ». Porque temos razões para crer que a guerra que sofremos e que fazemos em três territórios tem nas suas causa e na sua manutenção um claro e persistente desrespeito por esses direitos.

 5. Como responder então ao apelo da Igreja? Muito simplesmente: procurando tomá-lo a sério. Recusar as fórmulas evasivas em que só a oração abstracta e desencarnada esteja presente e procurar com seriedade o sentido cristão da responsabilidade  e do empenhamento pessoal e colectivo, tentando:
– conhecer melhor e adquirir consciência dos males da guerra;
– discutir as «nossas» razões;
– conhecer, e discutir também, as razões dos «outros»,
– assumir o compromisso de trabalhar concretamente pela paz e ver como;
– começar mesmo a fazê-lo. 

6. Vamos fazer isto, enquanto cristãos, e numa igreja, com a convicção de que não estaremos a fazer política – embora o que façamos tenha inevitavelmente incidências políticas. Fazer isto é o que nos permitirá confirmar a nossa fé e continuar a viver em Igreja com um sentido. Fazer isto é aceitar o risco, a dificuldade, a insegurança, a ambiguidade e contradições que tem todo o gesto humano significante. Fazer isto é, finalmente, procurar corresponder à palavra do Senhor, tomando à letra a exortação da Hierarquia. E convirá que cada um de nós tenha bem presente:
-se o inquieta ou não o silêncio de que é cúmplice, ano após ano, e se lhe é possível continuar a suportá-lo;
– que rejeitemos a inevitável acusação de que estaremos a servir-nos da protecção da Igreja e da sua situação de privilégio no nosso país, pois não é um oportunismo cobarde que nos motiva, mas a exigência de viver no concreto a Fé em Cristo;
– que temos sido acusados de não pormos ao serviço da comunidade portuguesa as obrigações que temos como católicos e as possibilidades que os são dadas como tais. 

E finalmente devemos estar conscientes que a participação nesta acto não significará escapatória a trabalharmos como portugueses ao lado dos nossos concidadãos não cristãos na luta pela Paz, mas antes será um compromisso para um maior empenhamento nessa luta.

Lisboa, igreja de S. Domingos, 1 de Janeiro de 1969

DIA MUNDIAL DA PAZ

esp12Portugal, em cuja capital se ouvia então falar todas as línguas europeias, tornou-se, no período da II Guerra Mundial, uma importante placa giratória de informações, mercadorias e pessoas. Sob os olhares atentos dos portugueses e da imprensa, passaram, por Lisboa, embaixadores dos países beligerantes, a caminho da Europa ocupada ou de Londres e dos Estados Unidos da América. Através de uma política sinuosa de exploração das contradições entre os dois campos beligerantes, Salazar conseguiu manter uma neutralidade, declarada em 1 de Setembro de 1939. Neutralidade, aliás possibilitada tanto pelo Eixo como pelos Aliados, que começou por ser «equidistante». 

A partir de 1943, após o desembarque no Norte de África e a derrota alemã em Estalinegrade, quando o desejo salazarista de uma «paz sem vencedores nem vencidos» se tornou inexequível, instalou-se no seio do regime o medo de que a vitória aliada acarretasse o fim do Estado Novo. Foi nesse período, num contexto interno de agitação social, que a neutralidade portuguesa passou de a «colaborante» com os aliados anglo-americanos.

 
Do lado dos britânicos 

Um dos campos em que Portugal foi «equidistante» até ao fim da guerra foi o da espionagem dos dois campos beligerantes. Até 1939, a espionagem britânica actuava desligada do Foreign Office, mas, com o início da guerra, a estação secreta inglesa, fechada nos anos vinte, foi reaberta no Consulado da Grã-Bretanha, em Lisboa, sob a direcção de Phillip Johns. Este trabalhava simultaneamente para o Special Operation Executive Committee (SOE) e para o Secret Intelligence Service (SIS) – ou secção V (de contra-espionagem) do MI6. Além destas duas agências secretas, também operavam em Lisboa, a Naval Intelligence Division, a Military Intelligence Service e o MI9.
 
 
O MI9 e o SOE em Portugal 

Dirigido por Donald Darling, funcionário do mesmo Consulado, o MI9 organizou fugas de prisioneiros e militares aliados, dos países ocupados pelo Eixo, mantendo linhas de entrada e de saída clandestina, através de Gibraltar e de Lisboa, a caminho de Londres. Entre Junho e Agosto de 1941, a PVDE detectou uma rede que introduzia clandestinamente, em Portugal, franceses e polacos em idade militar, ex-combatentes dos exércitos dos países ocupados, foragidos de campos de internamento franceses e opositores políticos alemães, detendo cerca de cinquenta clandestinos. Pertenciam a essa rede o inglês Victor Reynolds, proprietário da Quinta do Carmo, no Alentejo, e diversos portugueses, entre os quais se contava Mário Pinto Levy. 

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1968 foi de facto um ano alucinante e 2008 não poderia terminar sem que se assinalasse um  último 40º aniversário. Em 31 de Dezembro de 1968, cerca de cento e cinquenta católicos entraram na igreja de S. Domingos, em Lisboa, e nela permaneceram toda a noite, naquela que terá sido a primeira afirmação colectiva de católicos contra a guerra colonial, numa actividade formalmente «disciplinada». Com efeito, o papa Paulo VI decretara, em 8 de Dezembro, que o primeiro dia de cada ano civil passasse a ser comemorado pela Igreja como dia mundial pela paz e, alguns dias depois, os bispos portugueses tinham seguido o apelo do papa em nota pastoral colectiva.

Assim sendo, nada melhor do que tirar partido de uma oportunidade única: depois da missa presidida pelo cardeal Cerejeira, quatro delegados do numeroso grupo de participantes comunicaram-lhe que ficariam na igreja, explicando-lhe, resumidamente, o que pretendiam com a  vigília: 

«1º – Tomar consciência de que a comunidade cristã portuguesa não pode celebrar um “dia da paz” desconhecendo, camuflando ou silenciando a guerra em que estamos envolvidos nos territórios de África.
2º – Exprimir a nossa angústia e preocupação de cristãos frente a um tabu que se criou na sociedade portuguesa, que inibe as pessoas de se pronunciarem livremente sobre a guerra nos territórios de África.
3º – Assumir publicamente, como cristãos, um compromisso de procura efectiva da Paz frente à guerra de África.»

Entregaram-lhe também um longo comunicado [agora online] que tinha sido distribuído aos participantes, no qual, entre muitos outros aspectos, era sublinhado o facto de a nota pastoral dos bispos portugueses, acima referida, tomar expressamente partido pelas posições do governo que estavam na origem da própria guerra, ao falar de «povos ultramarinos que integram a Nação Portuguesa». 

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Maria Natália Duarte Silva Teotónio Pereira, originária de uma família burguesa típica, nunca aceitou os valores ditos tradicionais que quiseram impor-lhe. Casou-se pela primeira vez com dezasseis anos e divorciou-se alguns anos mais tarde. Voltou a casar-se, em 1951, com Nuno Teotónio Pereira, ela agnóstica e ele católico, numa igreja, mas com ritual próprio para situações deste tipo. Como não é difícil imaginar, foi muito negativa a reacção da tradicionalíssima família Teotónio Pereira ao ver um dos seus membros casar com uma jovem divorciada e não católica. Mais tarde, Natália viria a converter-se ao catolicismo.

Concretamente por influência da campanha de Humberto Delgado, e de todo o ambiente criado na sociedade portuguesa, e já integrada nas iniciativas dos católicos que entraram então num novo ciclo na oposição ao Estado Novo, passou a uma fase de grande actividade e teve mesmo um papel decisivo na evolução política do marido.

Sobretudo a partir dos primeiros anos da década de 60, Natália e Nuno foram os grandes impulsionadores de grande parte das iniciativas dos chamados «católicos progressistas» – muitas não teriam pura e simplesmente existido, ou não teriam tido a amplitude que tiveram, sem o empenhamento e a liderança de ambos. Com uma saúde sempre débil, a sua acção exercia-se muitas vezes discretamente na retaguarda, mas com uma eficácia, um espírito combativo e uma tenacidade absolutamente notáveis.

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Um texto de Jorge Martins (*)

Lisboa, Convento de S. Domingos, 19 de Abril de 1506, domingo de Pascoela cristã, três horas da tarde. A peste assolava a capital desde Outubro do ano anterior, situação dramaticamente ampliada pela seca e pela fome. O rei D. Manuel I refugiara-se em Abrantes. As ruas exibiam os horrores da tragédia. O convento estava repleto de desesperados cristãos – velhos e novos – esperando um sinal divino que acudisse àqueles que não tinham posses ou condições de fuga. Constava que um milagre se manifestara no dia 15 desse mês naquele templo dominicano. A vontade de crer era demasiado forte para descrer em qualquer sinal, por pequeno ou inacreditável que fosse.

O sinal implorado com toda a convicção repetiu-se. Uma luz brilhou, incandescente, no crucifixo da capela da Igreja. Todos viram. Todos rejubilaram. Todos se sentiram recompensados pela crença profunda e sincera. Todos? Não. Na verdade, houve um que ousou duvidar da natureza divina da luz. Segundo ele, a luz provinha de uma das muitas candeias acesas naquele convento. Era um cristão-novo: heresia!

A situação criada com o baptismo forçado, em 1497, era explosiva. Qualquer sinal de hipotético judaísmo poderia gerar a animosidade cristã. Na verdade, cristão-novo – converso convicto ou não – permanecia eternamente judeu aos olhos da população maioritariamente cristã. Foi nesta conjuntura, favorável ao antijudaísmo, que o citado cristão-novo cometeu a imprevidência. Mal proferiu a contraproducente «blasfémia», o povo caiu sobre ele, arrastou-o para a rua e agrediu-o barbaramente até cair inanimado. Prostrado no Largo de S. Domingos, foi identificado pelo irmão, que se debruçou sobre o seu cadáver e gritou lancinantemente: «Quem matou meu irmão?!». Acto contínuo, foi igualmente executado pela turba, que, de pronto, acendeu uma fogueira e queimou os dois infelizes cristãos-novos. Num clima de intolerância crescente, surgiu um frade que proferiu um inflamado sermão antijudaico, enquanto o povo se aglomerava em torno da «redentora» fogueira, aos quais se juntariam mais dois frades dominicanos, Frei João Mocho e Frei Bernardo, exibindo o crucifixo «milagreiro» e fazendo apelos sanguinários contra os judeus: «Heresia! Heresia! Destruam o povo abominável!…».

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Nuno Teotónio Pereira, nasceu em 1922, em Lisboa. Arquitecto pela Escola de Belas Artes de Lisboa. Tem desenvolvido a sua actividade em regime de profissão liberal, ainda que simultânea, durante cerca de vinte anos, com a de técnico de um organismo público ligado à habitação social, domínio em que adquiriu vasta experiência. Vários trabalhos saídos do seu gabinete foram distinguidos com o Prémio Valmor e outros. Em 2004, foi condecorado com a Grã-Cruz da Ordem do Infante, por altura duma exposição no Centro Cultural de Belém, documentando a actividade do seu atelier ao longo de sessenta anos e denominada «Arquitectura e Cidadania». É sócio correspondente da Academia Nacional de Belas Artes, foi presidente do Movimento de Renovação da Arte Religiosa, da Cooperativa Cultural PRAGMA, do Centro Nacional de Cultura, da Associação dos Arquitectos Portugueses e do Conselho de Arquitectos da Europa.

Membro da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, foi coordenador do jornal clandestino Direito à Informação, participou nas vigílias contra a guerra colonial da Igreja de S. Domingos e da Capela do Rato e no Boletim Anti-Colonial e foi preso várias vezes pela PIDE/DGS, tendo sido libertado de Caxias pelo 25 de Abril. Em 1995 recebeu a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade.

É autor de numerosos artigos e comunicações sobre Arquitectura, Urbanismo, Habitação, Património e Território.

 
 

 
A revolução ainda acordava para vigílias sem sono e tarefas sem fim, havendo tudo para fazer sem que nada parecesse impossível de mover e mudar. O “Avante” passar a ser legal e circular de mão em mão, vendido em papelarias e quiosques, difundido às escâncaras, com orgulho e alegria, em fábricas, escolas e escritórios, era o sinal maior do tamanho enorme do tanto que tinha mudado. Mas se, em energias descarregadas, parecia que o vento da história movia os moinhos da utopia, a causa sentia-se como só podendo ter a forma de um monolito. Relativamente ao património e à mitologia épica associada à gesta da imprensa clandestina, era difícil aceitar que outros, para mais rivais, chegada a revolução, a quisessem ultrapassar em ressonância no reconhecimento popular dos alvarás da resistência antifascista e da capacidade de andar para a frente. Assim, a forma atrevida e altissonante como a rapaziada fanatizada do MRPP anunciava e difundia o “Luta Popular”, só podia ser entendida, além de uma provocação, como um atrevimento concorrencial de decoro e pergaminhos, uma ofensa aos heróis que, contra ventos e perseguições, tinham mantido as tipografias artesanais e disfarçadas que alimentaram a voz dos reprimidos. Aquela revolução, como as outras, só permitiam aceitar-se um ser e um estar que se confundissem com os méritos do passado que a tinham tornado possível.

Entretanto, o futebol continuava, inamovível, ao lado da revolução, disputando paixões e multidões. E, à beira de casa, muitas vezes emitindo sons estridentes que me entravam pelas janelas, condensando a ânsia e o festejo do golo, em orgasmos colectivos, multidões juntavam-se às tardes de domingo em grandes missas de histeria colectiva no Estádio da Luz. Daí ao desafio foi um pequeno passo. Organizado um grupo de vizinhos camaradas, requisitado um bom molho de avantes, montaram-se bancas improvisadas no caminho de maior tráfego apeado da multidão rumo ao estádio, na Segunda Circular, uns poucos metros antes do perímetro de feira onde se vendiam couratos, bonés e bandeiras. Jornal estendido e mostrando o cabeçalho, ali nos esforçámos, domingos a fio, enfrentando o fluxo contrário e apressado apostado na conquista de um lugar nas bancadas, gritando-lhes até enrouquecer “Olha o Avante, órgão central do Partido Comunista Português!”. Os resultados foram sempre escassos, o jornal saía à quinta e os da romaria (vermelha!) de passo apressado segurando bandeiras ou só paixão ansiosa ou já o tinham comprado ou estavam concentrados em preocupações que metiam outras balizas. Mas ganhámos sempre no campeonato do ritual do insólito genuíno, com uma sensação de desforra perante outros atrevidos da concorrência, pois reposta tinha sido a honra dos pergaminhos. Fechadas as portas do estádio, comportando multidões alienadas em disputa de paixões periféricas, uma heresia em tempo de revolução, recolhidas as sobras, contados e registados os magros tostões recolhidos, gargantas gastas, achávamos que a honra revolucionária tinha marcado golo. Para nós, então, era mesmo assim.

Este documento encontra-se agora online no site do Fórum Abel Varzim e data de Fevereiro de 1959 – tem portanto 51 anos – e foi assinado por quarenta e três pessoas, entre as quais seis padres. Se já são minimamente conhecidas as actividades de católicos contra a cumplicidade entre a Igreja e o salazarismo em décadas mais tardias, convém assinalar que elas começaram bem mais cedo. Convém recordar que, em Fevereiro de 1959, se estava ainda no rescaldo da campanha presidencial de Humberto Delgado e que se sentiam os efeitos da célebre carta que o bispo do Porto escrevera a Salazar em Julho de 1958. Joana Lopes

 
Assinantes:
Pe. Abel Varzim, Pe. Adriano Botelho, Alberto de Carvalho Martinho Abranches, Alberto Vaz da Silva, Amândio de Oliveira Filipe Duarte, António Alçada Baptista, António Duarte Arnaut, António Esteves Ladeira, Pe. António Jorge Martins, António Marino e Silva, António Pedro Coelho d’ Aça Castel-Branco, Asdrúbal Teles Pereira, Carlos Manzanares Abecasis, Pe. César Teixeira da Fonte, Domingos Manuel Mégre, Eduardo Achiles d’Orey, Edmundo de Jesus Costa, Fernão Forjaz Pacheco de Castro, Francísco Lino Neto, Francisco de Sousa Tavares, Gonçalo Ribeiro Teles, João Benard da Costa, João Camossa, João Gomes, Pe. João Perestrelo de Vasconcelos, Jorge de Portugal da Silveira, Pe. José da Costa Pio, José Escada, José Paulo de Almeida, Monteiro, José de Sousa Esteves, José Vieira da Luz Júnior, Manuel Fernandes de Mansilha, Manuel de Lucena, Manuel dos Santos Lourenço, Manuel Serra, Maria Manuela Brito Bio, Mariano Fernando Rasteiro Calado Mateus, Mário Brás António Santana de Menezes, Nuno Teotónio Pereira, Nuno Vaz Pinto, Orlando de Carvalho, Sophia de Mello Breyner Andresen, Victor Coimbra Torres.

 
O problema das relações entre a Igreja e o Estado, ou, mais genericamente, do comportamento dos católicos perante a política, foi recentemente posto em foco por vários acontecimentos e afirmações de individualidades altamente responsáveis da Hierarquia e do Governo.

O sr. Presidente do Conselho, em discurso recente, parece querer acusar a Igreja por haver «alguns católicos» que «romperam a frente nacional», e considera que o «assunto oferece graves implicações no que respeita à Concordata e mesmo ao futuro das relações entre o Estado e a Igreja», para, em seguida, se propor basear-se no «conhecimento da doutrina da Igreja» para «apresentar reparos», se «as autoridades competentes» a «não fizerem seguir com inteira fidelidade». Sua Ex.a, como representante do Estado, poderá evidentemente discutir de igual para igual com a Igreja a aplicação jurídica da Concordata, mas nunca poderá invocar o seu conhecimento da doutrina da Igreja para se sobrepor à interpretação, dessa mesma doutrina, pelas «autoridades competentes».

De qualquer maneira, pela primeira vez desde há muitos anos, o problema põe-se em público com alguma acuidade; a atestá-lo está o facto do sr. Cardeal Patriarca de Lisboa ter escolhido o assunto para tema da sua mensagem de Natal de 1958, e o Episcopado o ter tratado na recente pastoral colectiva. Em ambos os casos, foram lembrados os grandes princípios da Igreja. Se muitos desejavam um esclarecimento mais concreto sobre pontos precisos, temos de compreender que S. Eminência e o Episcopado não quisessem, com a sua elevada autoridade, intervir numa polémica ao nível das questões debatidas: não quisessem, e, possivelmente, não pudessem, dados os condicionamentos de toda a ordem a que o seu alto magistério está, por vezes, sujeito.

Na imprensa periódica saíram vários comentários, alguns nitidamente tendenciosos. No entanto, os comentários da imprensa e os esboços de esclarecimentos, que aqui e ali surgiram não permitiram aquele debate amplo e livre, com igualdade de condições para todos os contendores, que convém para esclarecer um problema complexo.

Por tudo isto, os signatários consideram oportuno estabelecer, entre simples católicos, um diálogo, alheio aos condicionamentos da imprensa, libertado das preocupações de compromissos, com muito menos autoridade do que a Hierarquia ou os organismos oficiais, mas também com aquele grau de incerteza e de risco doutrinário que permite normalmente aclarar uma questão concreta, no emaranhado dos acontecimentos de todos os dias.

 
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Um texto de José Augusto Rocha (*)

 
No final do calendário do ano em curso, bailam na nossa memória duas datas incontornáveis, ligadas aos direitos humanos. Uma – 12 de Dezembro – refere-se à passagem de mais um ano sobre a Declaração Universal dos Direitos do Homem; outra – há pouco passada – assinalou mais um ano sobre a publicação de dois dos mais importantes diplomas legislativos ligados à repressão dos direitos humanos e das liberdades fundamentais no Estado Novo: a criação dos Tribunais Plenários, em substituição dos Tribunais Militares Especiais e a criação da PIDE, em substituição da predecessora PVDE, pelos Decreto-lei, respectivamente, nº 35 044, de 20 de Outubro de 1945 e nº 35 046, de 22 de Outubro do mesmo ano.

Estas datas são o claro-escuro de um tempo histórico que merece um pouco da nossa reflexão.

A 12 de Dezembro de 1948, ”considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (…) a Assembleia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos do Homem como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações”.

Esta Declaração solene, filha do pesadelo de uma situação que confrontou a consciência dos povos com os abismos mais profundos de uma indústria do extermínio, erigida em desígnio colectivo, foi um marco decisivo para o reconhecimento dos direitos humanos e para a sua protecção, desde 1948, face à dimensão dos crimes nazis.

Foi também o início de um longo caminho que veio a aprofundar e a reconhecer, como consta da Resolução da Assembleia Geral 32/130, de Dezembro de 1977, ”que todos os direitos humanos e liberdades fundamentais são indivisíveis e interdependentes e que deve ser dada igual atenção e consideração urgente à implementação, promoção e protecção tanto dos direitos cívicos e políticos, como também dos económicos, sociais e culturais”.

Preocupação bem patente na posterior “ Declaração do Millenium”, que estabeleceu objectivos em matéria de direitos humanos e fixou prazo até 2015 para que sejam cumpridos. Ela veio aprofundar uma viragem para os problemas concretos, ao tratar nomeadamente da erradicação da fome e da miséria, promover a educação básica para todos, promover a igualdade entre os sexos, reduzir a mortalidade infantil, combater as doenças crónicas, garantir a qualidade de vida e o respeito pelo ambiente, trabalhar pelo desenvolvimento, questões que são tratadas em emblemáticos capítulos como “ Desenvolvimento e Erradicação da Pobreza”, “ Protecção do Ambiente Comum”, “Direitos Humanos, Democracia e Bom Governo”, “Protecção dos Vulneráveis”.

O espírito desta Declaração significa que o debate dos direitos humanos não pode restringir-se ao campo da teoria, à sua proclamação ou contemplação, mas que é necessário mobilizar todos para que, no seu dia a dia, cumpram o seu dever activo de cidadania de por eles lutar.

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GEPDESP

Reunimos. Éramos uma vintena de professores – uns mais velhos, como o Tiago de Oliveira, outros, gente muita nova, de vinte e poucos anos, como o Paulo Varela Gomes. Apertávamo-nos por trás de uma mesa e sentados em sofás, numa sala obscura do «Sindicato» do Ensino particular, situado a meio da Conde Redondo, em Lisboa. Eram poucos os colegas de quem não sabíamos o nome. Entrevíamo-los para além de uma barreira de fumo que ameaçava ir, mais tarde, fazer das suas. Hoje, sabemos de muitos companheiros desses «caminhos de memória» que se passaram para outra dimensão. Adiante, não interessa. Pertencíamos quase todos aos Grupos de Estudo do pessoal docente do ensino secundário e preparatório – uma estrutura nacional nascida poucos anos antes e que adquirira uma crescente ligação aos professores, de norte a sul do País. (*) 

À tarde, seguiu-se a noite e, após uma animada ceia no bas-fond da prostituição – num restaurante por baixo – entrámos pela madrugada dentro: opiniões em catadupa. Este sugere, aquele exige, o outro recusa, pressa muita pressa, e – sobretudo – uma vontade transbordante de aproveitar a situação para pôr os pontos nos ii em matéria de ensino, dos direitos profissionais e do funcionamento das escolas públicas. Queríamos conseguir rapidamente um sindicato nacional de professores que exprimisse a nossa voz.
Reunião, novamente, em dia seguinte, com mais gente – já em representação de um número significativo de escolas. Fecha-se a fase de preparação: redige-se um stencil que alguém «policopiaria» e que, horas depois, seguiria para os professores e para a Comunicação Social. Às duas da manhã, estava aprovado por unanimidade o primeiro comunicado que deveria chegar aos estabelecimentos de ensino de Lisboa, de todos os graus de ensino, oficial e particular. Histórico:

«A Comissão Coordenadora do Grupo de Estudo do Pessoal Docente do Ensino Secundário e Preparatório de Lisboa, em reunião com professores de escolas do ensino secundário, preparatório, primário e infantil, de Lisboa e concelhos limítrofes, considerando:
1º – que é abusiva e despropositada a atitude assumida por alguns directores de escolas do Ciclo Preparatório de Lisboa de apoio à recondução do professor Veiga Simão no Governo Provisório;
2º – que a existência de um ministro do antigo regime neste Governo Provisório poderá dar imagem pública de uma Junta de Salvação Nacional hipotecada a ideias e personalidades do regime derrubado;
3º – que, à luz da nova situação criada pelo 25 de Abril, se torna urgente discutir e encontrar colectivamente a solução para os graves problemas que afectam o professorado
Convoca a classe para uma Reunião Geral de Professores, no dia 2 de Maio, às 21.30 h, em local que será oportunamente divulgado através dos órgãos de informação.»  

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Gregorio Peces Barba

O jornal Público.es de hoje publica uma entrevista com Gregorio Peces-Barba, em que este se pronuncia sobre questões relacionadas com direitos humanos e posições da Igreja.

Político e jurista espanhol, um dos «pais» da actual constituição espanhola de 1978, preso pelo regime franquista, ligado a actividades de vários partidos, ficou conhecido em Portugal, antes de mais, como fundador e grande impulsionador dos «Cuadernos para el Diálogo» (1963).

Muitos leitores deste blogue se recordarão do apoio que os «Cuadernos» deram à resistência dos católicos portugueses antes do 25 de Abril – contacto obrigatório em idas propositadas a Madrid para actividades clandestinas, vindas de Pece Barbas a Lisboa em tentativas de tirar partido das ilusórias aberturas marcelistas.

Um exemplo:
Em Maio de 1969, o Centro Nacional de Cultura organizou um colóquio luso-espanhol intitulado «Imprensa?». No primeiro dia, o assunto foi «Lei de Imprensa» e os conferencistas Gregório Peces Barba, dos «Cuadernos para el diálogo», e José Maria Castelet, crítico literário de Barcelona. No segundo, foi abordada a «Situação actual e função da Imprensa em Espanha e Portugal» por Pedro Altares, também dos «Cuadernos para el diálogo», Domingos Jorge de Almeida Fernandes, Francisco Pinto Balsemão, João Gomes e José Tengarrinha.

Este evento provocou reacções da polícia política espanhola junto da sua congénere portuguesa e esta relatou que: «(…) em Espanha, se vê com apreensão as autorizações que foram dadas a espanhóis de tendências comunistas para tomarem parte em conferências que o Centro Nacional de Cultura levou a efeito.». E ainda que : «(…) eram imprevisíveis as consequências que poderiam advir se se continuar a permitir que espanhóis de tendências comunistas discutam em Portugal, com portugueses de ideologia semelhante, assuntos internos de Espanha» (ANTT – PIDE/DGS, Processo CI(1), 4819.).

Como sempre, o papão do comunismo. Assim íamos, eles e nós – e é bom ver que ainda nem todos pararam.

Local:Antigo Campo de Concentração do Tarrafal
Data:28 de Abril a 1 de Maio de 01/05/2009
 

Com o alto patrocínio do Presidente da República de Cabo Verde e do Ministério da Cultura de Cabo Verde, de Angola e Governo de Timor Leste, organizado pelo Fundação Amílcar Cabral e Fundação Mário Soares, contando com o apoio da Fundação Agostinho Neto, Fundação Eduardo dos Santos, Fundação Sagrada Esperança, Liga dos Antigos Combatentes de Angola e CODESRIA, realizou-se entre 28 de Abril e 01 de Maio de 2009, nas antigas instalações do Campo de Concentração do Tarrafal, um Simpósio Internacional sobre o Tarrafal com o objectivo de homenagear todos quantos sofreram neste local as agruras do fascismo e do colonialismo, quando se passam 35 anos do seu encerramento. Para tal, foram convidados os ex-presos sobreviventes e outras personalidades, tendo comparecido em grande número. 

As Palavras de Boas-Vindas foram proferidas pelo Coordenador da Comissão Organizadora do Simpósio, Dr. Álvaro Tavares

Na sessão de abertura, ouviram-se intervenções dos Ministros da Cultura de Cabo Verde, Dr. Manuel Veiga, de Angola, Dra. Rosa Cruz e Silva, da Guiné-Bissau, Dr. Aristides Ocante da Silva. De seguida, tomou a palavra o Primeiro-Ministro de Cabo Verde, Dr. José Maria Neves, que também homenageou algumas figuras da Vila do Tarrafal, pelo conforto moral e solidariedade prestados aos presos do Campo de Concentração durante os longos anos de reclusão.

O Simpósio constou de 4 Painéis Temáticos

O Primeiro Painel, intitulado “A GERAÇÃO DA UTOPIA E O DEVER DE MEMÓRIA” foi iniciado com a intervenção do poeta Mário Fonseca que procedeu ao enquadramento político e ideológico do Movimento de Libertação Nacional nas Colónias Africanas de Portugal, destacando o papel dos seus Pais-Fundadores e primeiros dirigentes.                                                                                           

Aurélio Santos, lutador antifascista português, na altura dirigente da Rádio Portugal Livre, hoje dirigente da URAP (União de Antifascistas Portugueses), foi o orador que se seguiu. O drama dos primeiros presos políticos portugueses enviados para este Campo da Morte Lenta, assim como a adesão do regime de Salazar aos princípios e práticas do Nazismo e do Fascismo foi a substância da sua intervenção. Recordou, porém, também, o modo como os restos mortais daqueles que pereceram no Campo foram recebidos em Portugal, depois da Vitória da Liberdade, com a eclosão do 25 de Abril de 1974. 

Outro lutador antifascista português, Raimundo Narciso, da Acção Revolucionária Armada (ARA), hoje presidente da Associação-Movimento Cívico “Não Apaguem a Memória”, concentrou-se sobre questões como o heroísmo dos resistentes portugueses e o modo abnegado como enfrentaram o horror do fascismo. Particularizou, porém, as figuras de Edmundo Pedro (hoje com 90 anos de idade) e seu pai, Gabriel Pedro, ambos deportados para o Tarrafal. Fez ainda referência à transformação do antigo Campo de Concentração do Tarrafal em Campo de Trabalho de Chão Bom, por determinação do então Ministro do Ultramar, Adriano Moreira. Lembrou os laços de solidariedade entre os combatentes antifascistas e os lutadores pelas independências das antigas colónias portuguesas. 

João Pedro Lourenço, Director do Museu da Escravatura de Angola, traçou um roteiro do Movimento de Libertação angolano, referindo, em especial, o papel daqueles que definiram o seu perfil e traçaram os seus caminhos. Aludiu a um certo “discurso revisionista” sobre o significado do Tarrafal daqueles que hoje procuram apresentar uma imagem “adocicada” do Campo de Concentração, adulterando cinicamente o seu significado.

Seguiu-se a intervenção do historiador Julião de Sousa, da Guiné-Bissau, com uma retrospectiva do processo de criação do PAIGC, a partir de núcleos clandestinos em Bissau. Recordou o período e a forma de encaminhamento dos presos guineenses para o Campo de Concentração do Tarrafal. Fez uma pequena resenha da vida dos presos da Guiné-Bissau, mostrando a contradição entre a imagem que o regime procurava apresentar ao mundo e o que realmente se passava. Terminou recordando a decisão do então Governador da Guiné de retirar do Campo os prisioneiros da Guiné-Bissau, voltando alguns a ser encarcerados. 

Teve também lugar a intervenção da historiadora Nélida Brito, concentrando-se no período do Campo de Concentração desde a sua fundação, em 1936, até ao seu primeiro encerramento, em 1954. Deu muito realce às cerimónias fúnebres dos prisioneiros mortos.

O historiador português Fernando Rosas fez uma profunda reflexão sobre alguns conceitos e ideias que estruturam os factos históricos da libertação nacional e social, dando-lhe sentido e vida. Não deixou, porém, de recusar pretensões revisionistas que se tentam fazer da história, banalizando e até mesmo desresponsabilizando a ditadura fascista, ao ponto de, inclusive, se consagrar o nome de Salazar numa praça da terra onde nasceu, precisamente na data da comemoração do 25 de Abril deste ano. A resistência esteve sempre presente e activa até 1974. Abordando o tema da hegemonia da memória, em jeito de remate, concluiu: Ninguém é dono da memória. Ninguém tem o direito de se colocar como o seu intérprete exclusivo

Ouviu-se seguidamente o testemunho de um antigo preso do Campo de Concentração do Tarrafal, Carlos Tavares, cabo-verdiano. 

No período da Tarde, decorreu o Segundo Painel, intitulado “OS IDEIAIS E PRINCÍPIOS”, moderado pelo Presidente da Fundação Amílcar Cabral, Dr. Corsino Fortes.

O primeiro orador foi Luzolo Kiala, de Angola, que explanou sobre o tema “Da clandestinidade ao Tarrafal”, traçando o percurso do chamado “Processo dos 50”. 

Ouviu-se também a comunicação da Professora Aurora Ferreira, numa análise daquilo que denominou “A Recolha de Testemunhos e de Histórias de Vida”.

O último orador deste Painel foi o ex-tarrafalista Justino Pinto de Andrade, com uma exposição e análise ao percurso dos angolanos, destacando as diversas faixas etárias a que pertenciam, os sucessivos grupos de chegada, filiações político-partidárias no momento da entrada, libertações, geografia sócio-cultural das prisões, também uma análise por profissões. Terminou recordando o momento da libertação dos últimos presos angolanos, saídos simultaneamente com os últimos presos políticos cabo-verdianos. 

Neste Painel, ouviram-se os testemunhos dos ex-presos Luís Fonseca e Jaime Schofied, de Cabo Verde, Karamó Sanhá e Mário Soares, da Guiné-Bissau. 

O Terceiro Painel, no período da Manhã do dia 30 de Abril, denominado CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS”, foi moderado pelo Ministro da Cultura da Guiné-Bissau.

O Embaixador Onésimo Silveira começou por lembrar o seu relacionamento pessoal com alguns dos presos angolanos do Tarrafal e suas famílias. Falou, depois, da problemática dos direitos humanos, integrando-a na luta dos povos pela sua emancipação. Antes, porém, fez uma incursão teórica nos desenvolvimentos do Estado de Direito. 

O jurista angolano João Pinto traçou a dimensão poética de Agostinho Neto e o seu impulso à Luta de Libertação Nacional. 

O sociólogo Carlos Cardoso trouxe ao Simpósio uma mensagem de solidariedade e apoio do CODESRIA, que representou. 

O sociólogo Victor Kajibanga analisou o facto de os Movimentos de Libertação terem descurado a questão da democracia e os direitos humanos. Esboçou um perfil dos Estados e das classes dirigentes africanas no período pós-independência. 

O também sociólogo Paulo de Carvalho interveio para falar sobre “Cidadania e Direitos Humanos na Angola Contemporânea”, descrevendo a evolução política desde a independência e o modo como se foram produzindo alterações no que respeita aos direitos humanos. 

Domingos Abrantes, resistente português, lançou um olhar sobre o passado e a luta dos resistentes comunistas portugueses, destacando o papel daqueles que foram deportados para o Tarrafal. 

Dany Landim, professora de história, cabo-verdiana, fez uma resenha histórica do Campo e insistiu na necessidade de serem reforçados os conteúdos históricos sobre a resistência e a luta de libertação.

A historiadora portuguesa, Irene Pimentel, estabeleceu a relação entre a memória e a história. Recordou a necessidade de se distinguir um “Campo de Concentração” de um “Campo de Extermínio” e procedeu à caracterização do Campo de Concentração do Tarrafal. 

Ouviram-se testemunhos de Edmundo Pedro, de Portugal, Fernando Tavares, Eulália Freire (Nha Beba), e Pedro Martins, de Cabo Verde, bem como Manuel Pedro Pacavira, de Angola. 

“QUE FUTURO PARA O CAMPO DO TARRAFAL?” foi o quadro em que se inseriu o Quarto Painel, no período da Tarde, com 4 intervenções: José Vicente Lopes, de Cabo Verde, apresentou a sua “Recolha de Testemunhos”; Antoninho Baptista, de Timor-Leste, falou sobre o “Arquivo & Museu da Resistência Timorense”; Alfredo Caldeira, de Portugal, desenvolveu a questão do “Dever de Memória” e do direito à memória, sublinhando que memória sem liberdade e democracia é tão só propaganda; Carlos Carvalho, Presidente do Instituto de Investigação e Património Cultural de Cabo Verde, apresentou o “Projecto do Ministério da Cultura de Cabo Verde sobre o Campo de Concentração do Tarrafal”. Este Painel foi moderado pelo Ministro da Cultura de Cabo Verde. 

O último dia do Simpósio constou da sessão de encerramento, que foi presidida por Sua Excelência o Presidente da República de Cabo Verde, Pedro Pires, e teve também a honrosa presença de Sua Excelência o Dr. Mário Soares, ex-Presidente da República de Portugal, que dedicaram aos presentes palavras de agradecimento e regozijo pela forma como decorreram os trabalhos, estimulando à consecução dos objectivos pretendidos. 

A Análise Geral do Simpósio permitiu extrair as seguintes Recomendações

    * Destapar e colocar em espaço de memória os outros “Tarrafais” espalhados pelo mundo, e em particular nos países integrantes da CPLP, tais como Ilha das Galinhas, na Guiné-Bissau, Campos de S. Nicolau, Missonbo e Colónia Penal do Bié, em Angola, Machava, em Moçambique, Vikeke e Ataúro, em Timor-Leste, e Tarrafal de S. Nicolau, em Cabo Verde;
    * Manifestar o seu repúdio pela crescente utilização de campos de concentração e de tortura em conflitos recentes;
    * Legislação apropriada e multinacional (Portugal, Angola, Cabo Verde e Guiné-Bissau) para garantir o carácter perene da importância do Campo de Concentração do Tarrafal, para que o seu destino não dependa das vicissitudes e vontades circunstanciais dos respectivos governos;
    * Assegurar a integridade das instalações de Campo, tal como se encontravam no momento da sua libertação;
    * Que o Campo se torne um espaço de memória de todos aqueles que aqui sofreram, fazendo dele um espaço memorial da conquista da Liberdade;
    * Que seja criado, dentro do Campo de Concentração do Tarrafal, um Museu da Resistência e da Liberdade;
    * Que se crie dentro do Campo um Centro Internacional de pesquisa da Luta pelas Independências;
    * Criar no espaço envolvente do Campo, áreas dedicadas às Crianças e à Juventude para que elas possam apreender melhor a História;
    * Criar nos terrenos adjacentes ao Campo valências capazes de assegurar a sustentabilidade do Campo;
    * Inserir nos compêndios escolares mais matérias sobre a História e as Lutas de Libertação Nacional dos nossos países;
    * O Simpósio apela aos governos de Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau e Portugal para que assegurem os encargos de edificação e manutenção do Campo de Concentração do Tarrafal como Memorial da Luta comum dos nossos povos.

 
Tarrafal, a 01 de Maio de 2009

Os Participantes

PENSAMENTO CRÍTICO CONTEMPORÂNEO

28 de Abril a 28 de Maio de 2009

3ªs e 5ªs das 18h30 às 20h30

Associação Arte à Parte
Rua Fernandes Tomás, n.º 17,1.º,
Coimbra

PROGRAMA

28 de Abril
Stuart Hall
por António Sousa Ribeiro
Néstor García Canclini
por Paulo Raposo

30 de Abril
Noam
Chomsky/Paul Feyerabend por Rui Tavares
James Scott
por José Manuel Sobral

5 de Maio
David Harvey por
Hugo Dias
Slavoj Žižek
por Nuno Ramos de Almeida

7 de Maio
Pierre Bourdieu por
Nuno Domingos
Luc Boltanski
por Arriscado Nunes

12 de Maio
Michel Foucault
por Jorge Ramos do Ó
György
Lukács por Frederico Ágoas

14 de Maio
André Gorz
por José Nuno Matos
Guy Debord por Ri
cardo Noronha

19 de Maio
Gayatri Spivak por
Adriana Bebiano
Rosi Braidotti por
Maria Irene Ramalho

21 de Maio
Antonio Negri por
José Neves
Alain Badiou por
Bruno Peixe

26 de Maio
Louis Althusser
por António Pedro Pita

Gilles Deleuze
por Nuno Nabais

28 de Maio
Ernst Bloch por
Miguel Cardina
Theodor Adorno
por João Pedro Cachopo

O valor de inscrição é de €15, dando acesso a todas as sessões e a todos os materiais de leitura (atenção: Lugares limitados). Para quem pretender assistir apenas a uma ou outra sessão, há um regime de entrada avulsa mediante o pagamento de 3€. Este regime, todavia, está sujeito à disponibilidade de lugares em cada sessão, não havendo possibilidade de reserva prévia.As inscrições deverão ser feitas através de email (cursopcccoimbra@gmail.com). Para mais informações, consulte o blogue da iniciativa: http://cursopcccoimbra.blogspot.com/

ORGANIZAÇÃO
UNIPOP Organização Coimbra

APOIOS
Arte à Parte
CEIS20
CES
Númena
RUC

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Poder Popular (Colecção depositada no «Centro de Documentação 25 de Abril»)

Um texto de Eduardo Graça (*)

A aventura do jornal Esquerda Socialista decorreu entre 12 de Setembro de 1974, data da edição do nº 0, e 16 de Julho de 1975, com a saída do nº 38. Considerando o nº 0, e a edição especial de 13 de Março de 1975, foram publicados 40 números do Esquerda Socialista. Desde a edição do nº 1, a 16 de Outubro de 1974, o jornal saiu, sem interrupções, com uma periodicidade semanal, durante dez meses.

O outro órgão de imprensa do MES – o Poder Popular – foi criado no âmbito da campanha eleitoral para a Assembleia Constituinte. O seu título corresponde plenamente à deriva esquerdista do MES, dando eco a uma das palavras de ordem adoptadas: «Lutar, Criar, Poder Popular».

A 1ª série consistiu em 7 números, editados entre 3 e 23 de Abril de 1975, formato grande, semelhante ao do DN da época, com uma tiragem de 10 000 exemplares, em edição bissemanal – às quintas-feiras e domingos. O seu director foi o Paulo Bárcia, tendo sido impresso na ADFA (Associação dos Deficientes das Forças Armadas) e, ao que consta, não deixou dívidas.

A 2ª série do Poder Popular tem início em 23 de Julho de 1975, com o fim do Esquerda Socialista, anunciando que este jornal se havia de transformar na revista teórica do MES, da qual em breve sairia o primeiro número. Tal nunca viria a acontecer não passando de uma ideia que, embora sempre estivesse presente, nunca foi concretizada.

Esta série do PP atravessa todo o período mais conturbado da revolução, desde o «Verão Quente» de 1975 até à campanha presidencial de Otelo, sendo no nº 48, publicado em 21 de Julho de 1976, divulgados os resultados das eleições presidenciais. Até ao nº 29 o director foi Fernando Ribeiro Mendes sendo tal tarefa, na sequência do II Congresso, atribuída a Eduardo Ferro Rodrigues, que dirigiu o PP do nº 30 ao nº 48.

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Texto de José Pedro Castanheira, lido na sessão de lançamento do livro. 

 
O livro começa com uma dúvida, assim formulada pela autora: «Pode parecer estranho» um trabalho desta natureza, sobre um personagem que «deveria ser remetido ao silêncio». 

Percebo a dúvida, ou a interrogação, mas ela é, a meu ver, descabida. Para conhecer em profundidade um regime autoritário, um governo ditatorial ou um sistema, seja fascista ou comunista, é necessário estudar com detalhe as suas principais estruturas repressivas. A começar pelas respectivas polícias políticas, sejam elas a PIDE/DGS, a Gestapo ou a KGB. E conhecer também o perfil exacto dos seus principais responsáveis. Perfil político, ideológico, profissional, humano, psicológico. Só assim poderemos compreender com rigor não só o que, e como fizeram, mas sobretudo porque o fizeram. É a esta abordagem que se devem alguns dos melhores trabalhos biográficos de figuras como Salazar, Franco, Hitler, Estaline ou Mao, ou, num outro plano, Eichmann ou Mengele. É neste contexto que me parece absolutamente normal e necessário este estudo sobre Fernando Gouveia. Pelas razões que qualquer leitor compreenderá.

 
O homem

«O reconhecimento de que os criminosos são seres humanos acarreta terríveis conclusões acerca da natureza humana» – escreve Irene Pimentel. 

Alcino Ferreira, militante do PCP detido em 1951, descreveu Fernando Gouveia como um sujeito magro, de altura média, meio careca e conhecido pela forma de pôr o chapéu e de usar gabardina clara e fato azul. Na opinião do mesmo Alcino, Gouveia era um tipo «muito perigoso e um cínico puro, que estava na PIDE principalmente por amor à arte e era incontestavelmente a cabeça da luta contra o partido». 

Deveras interessante é a descrição da vida familiar de Fernando Gouveia, recolhida a partir do testemunho de uma dos sete filhos – Fernanda Maria, praticamente a única que o visitou na cadeia. 

De personalidade complexa, Fernando Gouveia nasceu em 22 de Julho de 1904, na freguesia do Socorro, em Lisboa. Filho ilegítimo de um capitão médico, que se envolveu com uma criada, fez apenas a instrução primária. Estas origens humildes – muito semelhantes, por exemplo, às do seu colega Rosa Casaco – irão marcar profundamente a sua vida. 

Nos primeiros anos da ditadura militar revelou «alguma simpatia» pelo Movimento Nacional-Sindicalista, de Francisco Rolão Preto. Fanático de Salazar, participou nos serviços de vigilância ao ditador, acompanhando-o quando se deslocava a Santa Comba Dão. Membro da Legião Portuguesa, recebeu instrução militar e desfilou em vários aniversários do 28 de Maio. 

A sua vida afectiva e familiar foi marcada pela instabilidade: três (ou quatro?) casamentos, sete filhos, de cinco mulheres diferentes.

Vivia numa casa alugada, no Areeiro, e não tinha conta bancária. Ouvia os Companheiros da Alegria no Rádio Clube Português, gostava de música clássica, entretinha-se com o teatro radiofónico da Emissora Nacional, era furioso do Benfica, coleccionava num caderno receitas de cozinha que copiava dos jornais. 

Só em 1962, e obrigado por Silva Pais, é que passou a ter telefone em casa e a deslocar-se numa viatura de serviço, com motorista. A filha, Fernanda Maria, aluna do Liceu Rainha D. Leonor, frequentava a Livraria Barata, onde comprou dois dos mais célebres livros de poesia de Manuel Alegre – o que lhe deu direito a uma violenta bofetada por parte do pai, que a proibiu dessas coisas. Como a proibiu de seguir advocacia – «todos os advogados são comunistas além de serem uns unhas-de-fome». Também não permitiu que seguisse Histórico-Filosóficas – acabando por enveredar pela hotelaria. 

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09.11.2008, Público, P2, pp. 6-7. Por Maria José Oliveira

A evocação dos momentos mais sombrios da História nacional está bem documentada numa vastidão bibliográfica. Mas raramente é transposta para os lugares que outrora testemunharam o medo, a morte e o terror. São poucos os memoriais que contam o que aconteceu, do século XVI ao Estado Novo.

 
Em Setembro passado, quando foi anunciado que a Câmara Municipal de Peniche e a Enatur tinham retomado as conversações para a construção de uma pousada no velho forte de Peniche, irrompeu uma polémica que se arrasta até hoje.

No centro do debate que envolve historiadores, resistentes antifascistas, o Partido Comunista Português (PCP) e a autarquia penichense, está a associação, num espaço que foi prisão de presos políticos durante o Estado Novo, de uma unidade hoteleira e do Museu da Resistência. As divergências, que se estenderam para a imprensa e para a blogosfera, resultaram num combate retórico: de um lado, estão a autarquia, o PCP e a União de Resistentes Antifascistas Portugueses (URAP); e do outro, está sobretudo o movimento cívico Não Apaguem a Memória (NAM). Os primeiros argumentam que é possível conciliar a vertente turística com o espaço museológico ali já existente (que deverá ser ampliado e melhorado, defendem); enquanto o NAM fala em incompatibilidade, desvalorização do museu e risco de perda da memória museológica do fascismo português.

Depois da transformação da antiga sede da PIDE em Lisboa, na rua António Maria Cardoso, num condomínio de luxo, e do anunciado projecto de converter o Tribunal da Boa Hora (antigo tribunal plenário) num hotel de charme, a direcção do NAM não quer perder mais combates e está determinada em lutar para que o Museu da Resistência (numa versão aperfeiçoada e aumentada) seja “o centro das atenções” da Fortaleza de Peniche. “É importante dar a conhecer o que foi a luta pela liberdade durante o Estado Novo”, afirma Raimundo Narciso, presidente do NAM.

Num artigo de opinião datado de 11 de Maio de 2006, publicado no PÚBLICO, Pacheco Pereira foi um pouco mais longe do que o NAM. Defendeu que o Museu da Resistência deveria ser dotado de uma “dimensão” que extravasasse a “memória prisional”, propondo que o espaço fosse também um “repositório museológico mais vasto do meio século do Estado Novo”. “A resistência não se percebe sem se perceber o regime”, argumentava o historiador. “Está na altura de congregar tudo isso numa instituição própria que preserva a memória, permita a história e favoreça a investigação, sem apagar a recordação dos tempos negros da ditadura. Não se trata de relativizar a história, mas de começar o caminho para tornar o século XX compreensível para as novas gerações que nunca o verão com a dimensão ética e sentimental dos que foram seus protagonistas.”

Também o historiador João Madeira considera que o país tem condições para “resgatar” a memória da história da ditadura sob uma “perspectiva séria e rigorosa”. Contudo, embora esteja “ao lado” daqueles que se opõem à construção da pousada no Forte de Peniche, o co-autor de Vítimas de Salazar. Estado Novo e violência política (2007) não é apoiante da ideia “imobilista e tradicional” de um museu da ditadura. “No país há locais susceptíveis de constituir uma rede da memória, com lugares e percursos. A preservação da memória deve ter um sentido dinâmico e uma abrangência social”, diz, acrescentando que a criação de um roteiro deve ir além das dimensões monumentais e documentais.

 
Um museu no Aljube?

Apesar de as divergências em torno do Forte de Peniche continuarem a ecoar em vários meios, o projecto de construção da pousada não tem tido desenvolvimentos. Ao P2, o presidente da câmara, António José Correia, disse aguardar um encontro com o Conselho de Administração da Enatur para o estabelecimento de “um plano de trabalhos com vista à concretização” da instalação da unidade hoteleira. E fez notar que “neste momento não há nenhum projecto em elaboração”. Quanto às críticas de que a autarquia tem sido alvo, especialmente por parte do NAM, António José Correia reiterou que “a preservação da memória deverá ficar salvaguardada na elaboração do projecto” e sublinhou que já recebeu essa mesma “garantia” por parte da direcção do Turismo de Portugal.

A par desta polémica sobre o Forte de Peniche, o NAM prossegue a sua cruzada contra o “apagamento” de alguns dos símbolos do regime autoritário. Protestou veementemente contra a construção do condomínio Paço do Duque, na rua António Maria Cardoso, e já augurando um destino diferente para o Tribunal da Boa Hora, descerrou uma lápide evocativa da “justiça” do tribunal plenário que ali funcionou entre 1945 e 1974. “Os governos portugueses não foram sensibilizados para uma política de preservação da memória”, nota Raimundo Narciso. O mesmo não aconteceu em Cabo Verde, onde a antiga Colónia Penal do Tarrafal, criada pelo Governo de Salazar em 1936, foi declarada Monumento Nacional em 2006.

Mas o movimento cívico que mais tem pugnado pela protecção dos lugares associados à memória da repressão não quer que a sua acção se limite a placas e memoriais. Há vários projectos na calha: a criação de espaços museológicos na antiga sede da PIDE no Porto, actual Museu Militar, e no Aljube (que acolhe valências do Ministério da Justiça). Raimundo Narciso diz que o NAM tem estado em conversações com o Ministério da Justiça e com a Câmara de Lisboa para converter o Aljube num “museu da resistência e da liberdade”. O primeiro passo para a constituição deste museu será a realização de uma exposição na antiga cadeia política em 2010, no âmbito das comemorações do centenário da República.

 
Vestígios da escravatura são escassos

Memória e história têm papéis distintos. João Pedro Marques, historiador, presidente do Conselho Científico do Instituto de Investigação Cientifica Tropical e autor do livro Portugal e a Escravatura dos Africanos (2004), faz questão de frisar isto mesmo – “memória e história são coisas diferentes, mas as pessoas tendem a confundi-las, e atribui-se a uma [memória] o rigor que é da outra [história].” Nos tempos recentes, aliás, a memória tem vindo a ser “instrumentalizada” – “é uma opção política”, afirma. Um exemplo: nas escolas ensina-se que foram os escravos que deram um fim ao sistema escravista. “É uma completa mistificação”, diz o historiador, notando mesmo que em Portugal “não houve uma única revolta de escravos”.

Tudo isto surge a propósito da rua do Poço dos Negros, em Lisboa, cuja designação tem mais do que uma explicação. Júlio de Castilho (1840 – 1919), escritor e olisipógrafo, sustentou que a denominação toponímica tinha origem numa carta de D. Manuel I, datada de 1515, na qual o rei ordenou a construção de um poço para ai lançar os corpos dos escravos mortos, vítimas de epidemias. Num dos volumes da obra Depois do terramoto (1916), Gustavo de Matos Sequeira (1880 – 1962) propôs outra justificação: o poço pertencia ao Convento de São Bento (actual Parlamento), também conhecido por São Bento dos Negros, e no século XVIII a artéria era conhecida, entre os seus habitantes, por rua de São Bento dos Negros.

A crer na tese de Júlio de Castilho, deveria a rua lisboeta possuir uma placa evocativa do tratamento cruel dado aos escravos mortos? João Pedro Marques explica que, neste como em outros casos semelhantes, “há coisas negativas e coisa positivas”. “Quando assinalamos apenas uma coisa como lugar de memória estamos a seleccionar e a sublinhar algo negativo. Esse local pode ser assinalado com um memorial, mas também se devia salientar o papel de Sá da Bandeira na libertação dos escravos.” Há sempre o risco do “desequilíbrio”, diz, notando ainda que no século XVI o número de escravos em Lisboa era muito reduzido, uma vez que não existiam plantações (as “Américas” importavam massivamente os escravos africanos).

“As memórias e os vestígios deixados em Lisboa são muito escassos”, acrescenta, apontando apenas algumas referências no Alentejo, onde a escravatura era utilizada nos trabalhos do campo.
Assumindo-se “profundamente contra o aproveitamento despudorado” de certos temas históricos, João Pedro Marques realça que a historiografia sobre a escravatura “é talvez um dos campos da História que teve mais avanços nos últimos anos”. Por isso, recusa a ideia de “qualquer apagamento da memória” e lamenta que, em alguns países, exista uma tentativa de “reavivar” esse passado, por “aproveitamento”. É o caso de França, onde o Parlamento aprovou, em 2001, uma lei (denominada Taubira, apelido da deputada que a propôs) que definiu o sistema escravista desenvolvido na Europa a partir do século XV como um crime contra a Humanidade. Significa isto, salienta o historiador, que o Estado “é obrigado a defender a memória dos escravos e a honra dos seus descendentes, punindo quem contra elas atente”.
Opositor feroz desta lei, João Lopes Marques fez notar, num artigo publicado na revista Nova Cidadania, em 2006, que os historiadores “não deverão ceder perante os políticos que, pressionados, pretendem moldar a História consoante as conveniências do momento; e muito menos deverão ceder às ameaças e ao terrorismo intelectual dos grupos memorialistas”. E concluía: “A História tem a memória em consideração mas não se reduz a ela. Se a memória é importante para afirmar a identidade das nações e das minorias, a História é imprescindível para repor o equilíbrio entre diferentes visões do passado.”

 
Antigo Pátio da Inquisição de Coimbra recupera vertente original

Há muitos anos que o historiador António Borges Coelho insiste na necessidade de “assinalar” os locais da história da Inquisição em Portugal. Como por exemplo o Teatro Nacional D. Maria II, construído sobre as ruínas do Palácio da Inquisição lisboeta. Mas também a Praça do Giraldo, em Évora, e as restantes praças “de execuções” em Coimbra e na capital. “Não há nada que assinale o que se passou nestes lugares” afirma. “Não se trata de pedir desculpa pelo mal. É uma necessidade pedagógica. Um memorial, uma placa, pode chamar a atenção dos presentes e dos futuros sobre o que aconteceu.”
Foi isso mesmo que levou a Câmara de Lisboa, a comunidade judaica e a Igreja Católica a associarem-se para a criação de um memorial no Largo de São Domingos, em Lisboa, evocativo do massacre de judeus em 1506. A iniciativa que hoje recorda a quem ali passa a “matança da Páscoa”, na qual morreram entre 2000 a 4000 judeus (muitos queimados vivos em fogueiras improvisadas no Rossio e na Ribeira), traduz-se em três peças: um mural que classifica Lisboa como “cidade cosmopolita, multiétnica e multicultural”; uma semiesfera inclinada que, entre outras frases, ostenta a legenda “Ó terra, não ocultes o meu sangue e não sufoques o meu clamor!”, retirada do Livro de Job; e duas colunas de pedra unidas por uma faixa em metal, na qual se lê o pedido de perdão público feito, ali mesmo, pelo Patriarca de Lisboa, em 2000.

O antigo Pátio da Inquisição, em Coimbra, não possui qualquer memorial. Mas a história desse tempo em que os edifícios albergaram o Palácio do Santo Ofício (de 1566 até 1821) está documentada na estrutura do conjunto arquitectónico, recuperado através de um projecto do arquitecto João Mendes Ribeiro.

O trabalho de reconstrução preservou essa memória – podem identificar-se as salas de interrogatórios, as masmorras e as casas dos tormentos – e ela é mantida pelos actuais inquilinos : a companhia teatral Escola da Noite (que ali regressa depois de ter deixado aquele espaço em 1994) e o Centro de Artes Visuais (CAV). O Pátio da Inquisição, como ainda designam muitos coimbrões, é agora, nas áreas reservadas à Escola da Noite, o Teatro da Cerca de São Bernardo. Na verdade, o grupo teatral e o CAV fazem regressar àqueles edifícios a sua vertente original – antes de serem ocupados pela Inquisição, acolhiam o Colégio das Artes, uma das principais instituições culturais do país em meados do século XVI, primeiramente presidida pelo humanista André de Gouveia (1497 – 1548).

Numa entrevista recente ao Diário de Coimbra, António Augusto Barros, director da Escola da Noite, afirmou querer resgatar esta dimensão primitiva e desafiou a Universidade de Coimbra a criar ali um pólo de artes. “Teríamos, então, uma nova cidade, capaz de olhar para si própria, para os seus tesouros escondidos e capaz de os reabilitar.”

Um texto de João Bernardo (*)

Há não muito tempo fui dar um curso a Salvador da Bahia e os alunos encontraram oportunidade, entre as aulas e a proliferação de actividades anexas que sempre acompanham esse tipo de coisas, para andarem comigo a visitar a cidade e mesmo para dar uns mergulhos naquela água tépida e sem ondas a que aqui no Brasil chamam mar. Numa destas andanças, ao passarmos em frente da escadaria de uma igreja, uma aluna perguntou-me: «Não reconhece?» Fitei o templo mal conservado, com o estuque da fachada a pelar, os degraus gastos e pouco limpos, disse que não, que o lugar não me recordava nada. «O Pagador de Promessas, professor, é a escadaria do filme». E ali, de repente, vi-me há muito tempo atrás, no emblemático ano de 1962, quando iniciei a actividade militante que desde então nunca deixei. 

Naquela época, entre os grandes amigos do meu pai contava-se o juiz Quesada Pastor. As duas famílias visitavam-se muito e em criança eu brincara com os filhos, especialmente a mais velha, que tinha a minha idade e havia sido na infância uma grande companhia. Quesada Pastor era um homem culto e com um largo escopo de interesses, em certas questões de história tinha mesmo uma grande erudição, era amável também e assaz irónico. Eu gostava muito de falar com ele e de o ouvir falar. Com estas características, especialmente a cultura, compreende-se que Salazar o tivesse nomeado director da Censura. O lápis azul podia ser manejado pelas mãos toscas de militares reformados, mas era necessário que houvesse alguém inteligente e sábio para dirigir aquilo tudo. 

Quesada Pastor tinha entrado para as esferas governativas no séquito de Pedro Theotónio Pereira, de quem, se não me engano, fora chefe de gabinete. Lembro-me de o meu pai comentar, um tanto irritado, que o seu amigo, apesar de ateu, desde que se aproximara do governo passara a frequentar a igreja todos os domingos, de missal debaixo do braço e com o inevitável chapéu preto debroado. Provavelmente o meu pai nessa ocasião esquecera-se do precedente de Henrique IV. 

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Prosseguindo uma breve digressão pelas memórias do MES (Movimento de Esquerda Socialista) julgo interessante enunciar as personalidades que, ao nível de direcção, desde os primórdios da sua criação, deram vida ao seu programa de acção. [Todas as informações que vou aqui divulgar são reproduzidas de documentos originais que tenho em minha posse.]

Na vertente de identificação dos dirigentes fundadores do MES não serei exaustivo, prevenindo qualquer involuntária omissão, nem, porventura, serei capaz de fazer vir à memória de todos a figura física de alguns nomes que a voragem do tempo fez esquecer. Mas, desta forma, far-se-á justiça a algumas personalidades que não tendo obtido consagração pelos seus feitos políticos deram, no entanto, por regra, um contributo notável na esfera do activismo sectorial.

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Um texto de Helena Cabeçadas (*)

A consulta dos processos individuais da PIDE/DGS na Torre do Tombo pode tornar-se numa verdadeira descida aos infernos ou, no melhor dos casos, numa aventura inquietante. Foi essa, pelo menos, a minha experiência pessoal. Quando, oito meses após o pedido formulado, tive finalmente autorização para consultar o meu processo da PIDE/DGS na Torre do Tombo, não tinha a mínima ideia do que iria encontrar, ou mesmo se iria encontrar algo que me dissesse respeito.

Sentei-me, pois, à espera do que viesse. A funcionária traz-me um processo, abro-o e o primeiro choque é deparar-me com uma fotografia minha ampliada, aos 15 anos e em que eu estou com um sorriso luminoso. A segunda surpresa foi constatar que estava a ser seguida pela PIDE desde os meus 12 anos, quando ainda não tinha qualquer actividade política, nem sequer ainda tinha integrado a Comissão Pró-Associação dos Liceus, o que só aconteceria dois ou tês anos mais tarde. No entanto, já lá estava a correspondência por mim trocada com jovens estrangeiros que conhecera no Parque de Campismo onde passava férias. As cartas, escritas em francês e em inglês, estão bem traduzidas para português, nomeadamente poemas de Aragon e Éluard, enviados pelos meus amigos…Discutiamos sobre a repressão e a falta de liberdade em Portugal; eu estava ainda à vontade para abordar estes temas porque não tinha actividades políticas. É na sequência destas cartas (percebo só então) que um pide vem a minha casa, informa-se junto dos vizinhos e interroga a minha mãe, que lhe diz «Não entendo as suas perguntas, a minha filha é uma criança». Nessa altura eu chego do Liceu, de bata, rabichos e soquettes. O pide fica confuso, não devia esperar encontrar uma miúda e vai-se embora, sem me interrogar, escrevendo um relatório ameno, que está no meu Processo: «É uma menina de boas famílias, vão à missa todos os Domingos; o pai parte àmanhã para o Ultramar…» Lembro-me vagamente deste homem, com aspecto gorduroso, a falar com a minha mãe, à porta de casa; desses meus amigos estrangeiros já nem me lembrava…

Mas fica a questão: como é possível perderem assim tempo a investigar, ler e traduzir cartas longas de uma garota de 12 anos, sem qualquer actividade política na altura? Pode haver como «explicação» o facto de o meu nome de família ser conhecido nos meios oposicionistas: o meu tio-avô, republicano histórico e o meu primo Rui Cabeçadas, então dirigente da Frente Patriótica de Libertação Nacional, sediada em Argel. Mas não deixa de ser perturbante esta questão: que quantidade enorme de informadores não seriam precisos para que tal acontecesse?

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