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Pode parecer estranho que, num mês quente de férias, se escreva sobre os campos de extermínio nazis na Polónia e o Holocausto, legado trágico e ignominioso da civilização europeia. Uns dirão: de novo!? Penso que nunca é demais voltar a falar do tema, sobre o qual aprendi muito na Polónia, onde tive o privilégio de passar a primeira semana deste mês de Agosto, integrada numa viagem de estudo, organizada pela Associação Memória e Ensino do Holocausto. A Polónia está repleta de História e de Memória, como aliás todos os países da Europa; mas talvez se possa dizer que será aquele onde o passado recente foi mais dramático.

Foi o país onde se iniciou, há 70 anos, a II Guerra Mundial, com a ocupação pelas tropas alemãs de Hitler, em 1 de Setembro de 1939. Foi também na Polónia que se desenrolou a «operação Reinhard», nome de código do plano alemão para assassinar os judeus que residiam na parte da Polónia ocupada mas não directamente anexada pela Alemanha. No âmbito dessa «operação», os nazis mataram, entre Março de 1942 e Novembro de 1943, mais de 1 milhão e meio de judeus, nos quatro campos de extermínio de Chelmno, Belzec, Sobibor e Treblinka II. Só neste último, um imenso cemitério escondido no meio de belíssimas árvores, depois de os nazis reflorestarem a zona para esconder o crime, estes e os seus cúmplices assassinaram mais de 800.000 judeus, entre Junho de 1942 e Agosto de 1943.

A estes quatro centros de extermínio, juntaram-se ainda na Polónia o de Majdanek, junto a Lublin, bem como Auschwitz I e Auschwitz II (Birkenau), perto de Cracóvia, que foram em simultâneo campos de concentração e de extermínio. Em Birkenau, foram assassinados, até Novembro de 1944, pelo Ziklon B, em quatro câmaras de gás, quase um milhão e meio de judeus dos países ocupados pela Alemanha. Estes representaram 90% das vítimas de Auschwitz, incluindo-se, entre as restantes, cerca de 75.000 polacos não-judeus, 20.000 ciganos Sinti e Roma, bem como 15.000 prisioneiros de guerra soviéticos, além de diversos grupos de outras categorias, entre as quais homossexuais.

Nos campos de extermínio da Polónia, foram assassinados cerca de 2.9 milhões de judeus e quase toda a população judaica desse país; ou seja, cerca de metade do número do total judeus mortos no Holocausto. Estes números representam pessoas, mulheres e homens, crianças, jovens e velhos, cada um com uma história breve ou longa e uma singularidade própria. Estes milhões de pessoas morreram para nada (Avraham Milgram, que orientou a nossa viagem de estudo); foram assassinados simplesmente porque tinham nascido judeus e porque os nazis resolveram eliminar o judaísmo da Europa. E o que é terrível é que em parte conseguiram, não só eliminar fisicamente uma enorme parte dos judeus da Polónia e da Europa, como ali destruíram quaisquer vestígios da cultura e religião judaica. O que se nota hoje na Polónia, relativamente à presença judaica, é precisamente a ausência. Num clima de silêncio ensurdecedor, sente-se uma grande dose de sentido de impotência. A mesma que nos invade perante os massacres e genocídios recentes.

As sinagogas que restam, em Varsóvia, Cracóvia, no “shtetl” de Kazimierz Dolni ou em Lancut – não foram destruídas porque os nazis fizeram uso delas, como estábulos ou armazéns –, são agora museus e raramente locais de culto. Dos bairros judeus e dos guetos de Varsóvia, Cracóvia e Lublin, arrasados pelos nazis, apenas restam ruínas que, comparadas com fotografias anteriores a 1939, fazem agora parte de um roteiro contra o esquecimento. Com a excepção do cemitério judeu de Varsóvia, onde se vê na pedra a pujança passada da cultura judaica, apenas permanecem lápides destruídas nos raros cemitérios judeus espalhados pela Polónia. Mas há por todo o lado na Polónia outros enormes cemitérios, onde outrora houve campos de extermínio e valas comuns, onde apetece estar permanentemente em recolhimento. É assim que se fica junto às ruínas das câmaras de gás de Birkenau, ou junto da vala comum de Zbilitkowska Gora, onde jazem, sob as urtigas, crianças assassinadas pelos nazis.

É certo que, em Auschwitz I, se torna dificil a concentração, devido ao facto de esse campo ser hoje um museu repleto de gente. No entanto, ali e em Birkenau, tudo se ajusta com os documentos de arquivo, com os testemunhos dos sobrevivente e com o próprio lugar, ele mesmo uma arma contra o negacionismo, a par da História. Os instrumentos analíticos da História têm provado largamente a sua eficácia no tratamento do Holocausto, que continua felizmente a ser um dos temas mais estudados pelos historiadores, movidos pela procura da verdade.

Ora, porque essa catástrofe é uma história humana, há que continuar a investigar o papel dos carrascos e dos seus cúmplices, outrora vistos como seres monstruosos, que afinal eram «homens vulgares» (Christopher Browning). Por isso, o sobrevivente do Holocausto Elie Wiesel observou que «o que é verdadeiramente demoníaco é o facto de (os criminosos nazis) não terem sido demoníacos». Mas se a ideologia anti-semita foi uma condição necessária para o Holocausto, não foi porém suficiente. Os nazis tiveram primeiro de juntar a essa pulsão anti-semita o interesse material de milhões de alemães e outros – os «beneficiários de Hitler» (Götz Aly) que lucraram com a “arianização” da propriedade judaica. Como observou Ian Kershaw, o caminho para o Holocausto foi construído pelos criminosos nazis, mas foi pavimentado pela indiferença.

Em muitíssimo menor número, houve também os poucos que resistiram ou salvaram judeus, num mundo onde o mal excepcional se tornou não excepcional, num tempo em que o impensável acontecia diariamente e havia uma total inversão dos valores morais. Quanto às vítimas, há que retirá-las do esquecimento para onde o nazismo as quis atirar e dar-lhe nomes e atribuir-lhes caras. Não só às que foram assassinadas e “viveram” Aschwitz em todo o seu horror; ou seja, os mortos que não podem relatar aqueles 300 metros finais entre a «selecção» e as câmaras de gás, mas também os sobreviventes.

Foram eles que viveram a experiência da «zona cinzenta», descrita por Primo Levi, ao caracterizar a forma como os nazis criaram a total ambiguidade moral entre as suas vítimas. Em Auschwitz, não houve heróis, nem as pessoas se comportaram como santos ou filósofos. Os carrascos tudo fizeram para os levar à condição de pura sobrevivência e reduzir a zero a possibilidade de escolha (especialmente moral). Ao mesmo tempo que mostrou como Auschwitz «confunde a nossa necessidade de julgar» e que as zonas cinzentas revelam que a principal questão é saber que aconteceu à ética durante o Holocausto e depois dele, Levi perguntou também o que se pode fazer para impedir futuros «abandonos da civilização» como a que aconteceu na Europa.

Em Treblinka, está escrito em várias línguas a expressão «Nunca mais». Mas será que a História é um antídoto contra o Holocausto? Tenho quase a certeza que não, até porque não é tarefa do historiador retirar lições da História, mesmo se ele acredita que compreendê-la reforça a nossa humanidade. Um dos problemas levantados pelo Holocausto é precisamente o facto de as suas supostas lições terem um impacto prático tão pequeno. A lição que se tira, anos depois do Holocausto, mas após voltarem a acontecer genocídios, é que em muitas situações nada será feito para travá-los e para ajudar as suas vítimas potenciais. Mas também se tira a conclusão de que, apesar de ter sido um acontecimento único, o Holocausto tornou-se o paradigma do crime contra a humanidade, a partir do qual foi criada legislação contra futuros genocídios.

(Publicado no Público, de 26 de Agosto de 2009)

Imagem: Auschwitz-Birkenau (cedida por ana vidigal)

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Polónia dia 1 e 2 Agosto 08 216

O historiador israelita Avraham Milgram mostra uma foto da ponte de madeira, junto ao prédio – último vestígio da época -, que separava o gueto grande do gueto pequeno de Varsóvia. À época, esta rua, ladeada pelos dois muros do gueto, só era atravessada a pé por não-judeus e, em carros eléctricos especiais com a estrela de David, por judeus.

Polónia dia 1 e 2 Agosto 08 152

       Varsóvia – Cemitério Judeu cujas lápides revelam a pujança da cultura judaica até 1939

Polónia dia 4 Agosto 09 062

Campo de concentração e de extermínio de Majdanek, também de trânsito para outros campos de extermínio e de armazenamento dos bens roubados aos judeus deportados. Estas bonecas, roubadas a crianças judias, assassinadas, aguardavam o envio para a Alemanha.

 Birkenau

Entrada de Auschwitz II-Birkenau  e linha-férrea já no interior do campo, a caminho da «rampa»  onde era feita a  «selecção»  entre  os que iam directamente para a camara de gás e aqueles cuja força de trabalho escravo ia ser aproveitada  por umas semanas.

(fotografias cedidas por ana vidigal)

Polónia dia 3 Agosto 09 018VARSÓVIA  (Memória do  Muro do Gueto)

Polónia dia 3 Agosto 09 037TREBLINKA  (Campo de Exterminío)

Polónia dia 5 Agosto 09 031SINAGOGA DE LANCUT (Uma das poucas não destruídas pelos nazis)

Polónia dia 5 Agosto 09 071SÍTIO DE MORTE DE ZBILITKOWSKA GORA  (Vala Comum de crianças assassinadas pelos nazis)  -1

Polónia dia 5 Agosto 09 078SÍTIO DE MORTE DE ZBILITKOWSKA GORA  (Vala Comum)  -2

(fotografias cedidas por ana vidigal)

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Mário Soares, num livro escrito no exílio no início dos anos setenta do século XX, assinalou as tremendas derrotas para a PIDE que constituíram as dificílimas fugas da cadeia de diversos dirigentes do PCP e, em 1969, do «dirigente revolucionário do L.U.A.R., Hermínio da Palma Inácio, que nesse momento era concerteza (sic) o homem mais vigiado e bem guardado do País». Antes dessa fuga, que foi aliás a última de um estabelecimento prisional gerido pela polícia política de Salazar e Caetano, já Hermínio da Palma Inácio tinha conseguido escapar da prisão do Aljube, em 1949, após ter sido detido em 6 de Setembro de 1947, na sequência da sabotagem de avionetas, na tentativa falhada de golpe da «Mealhada» contra o regime ditatorial. No Aljube, frente à Sé de Lisboa, todas as janelas eram então «gradeadas, menos uma, pequenina, numa arrecadação à altura de um 5.º andar, a caminho do gabinete de inspecção médica». Palma Inácio enrolou lençóis nas pernas, debaixo das calças, e meteu-se na fila para aí ser atendido, às 8 horas da manhã. Aproveitando um momento de ausência do guarda, utilizou os panos como corda e escapou-se para o pátio, 15 metros abaixo. Já na rua, um guarda fez frente a Palma Inácio, que o derrubou e desapareceu.

Rigorosamente vinte anos depois dessa fuga, Hermínio da Palma Inácio voltou a escapar, em 8 de Maio de 1969, da prisão da delegação da PIDE do Porto. Tinha sido novamente detido, em 20 de Agosto de 1968, na falhada tentativa de ocupação da Covilhã por brigadas da LUAR, começando por ficar no forte de Caxias, antes da de ser transferido para o Porto, para ser julgado. No princípio de 1969, um inspector superior da DGS dera conhecimento a José Barreto Sacchetti, director dos serviços e Investigação, de uma futura tentativa de introdução, por Helena Palma, irmã de Hermínio da Palma Inácio, na prisão de Caxias, de umas serras, dissimuladas nas capas de uma agenda. No entanto, dias depois da data prevista para a visita de Helena Palma ao irmão, o responsável pelo forte de Caxias, inspector da PIDE Gomes da Silva, assegurou, numa carta à direcção dessa polícia que nada tinha sido entregue àquele recluso. Sacchetti seria porém posteriormente informado por Agostinho Barbieri Cardoso e Álvaro Pereira de Carvalho, respectivamente subdirector e chefe dos serviços de Informação da polícia política, de que a agenda já se encontrava em poder de Palma Inácio.

Veja-se como tudo se passou. Para protegerem um informador da polícia infiltrado na LUAR, Ernesto Castelo Branco («Canário»), a quem a irmã de Palma Inácio tinha dado conta da vontade de fuga deste, Pereira de Carvalho e Barbieri Cardoso entregaram uma serras ao “colaborador” da PIDE. Ernesto Castelo Branco remetera as serras à irmã de Palma Inácio, que, por seu turno as entregara a este, escondidas na capa almofadada de uma agenda. Partindo para Londres, onde residia, a irmã apurara que a encomenda só tinha chegado às mãos de Palma Inácio, quatro semanas depois. Mal sabia a irmã de Palma Inácio que «a sua artimanha era já do conhecimento da PIDE», mas que esta «foi impotente para desfazer o engenho do processo utilizado» (Diário de Lisboa, 3/5/1974), pois nada conseguira encontrar na revista ao embrulho com a agenda. Foi, assim, que a fuga de Palma Inácio contou com a ajuda, embora involuntária da… própria PIDE/DGS, apesar de alguns dos seus elementos o negarem mais tarde.

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Tarrafal

 
(A propósito do «Simpósio Internacional sobre o Tarrafal», 28/4-1/5/2009)
A primeira parte, a segunda e a terceira partes do texto podem ser lidas
aqui, aqui e aqui.

 
Os primeiros directores do campo

No mesmo navio Luanda, onde viajaram os primeiros prisioneiros do Tarrafal, vinham, além de elementos da Guarda Nacional Republicana (GNR), uma brigada da PVDE, dirigida por Gomes da Silva, que ficou com supervisão da vigilância do campo, confiada a 20 a 30 guardas europeus, reforçados por 8 agentes da PSP, e a uma Companhia Indígena de soldados angolanos. No navio, vinha também o capitão de artilharia Manuel Martins dos Reis, que iria desempenhar a função do primeiro Director do Campo de Concentração, após ser director da Fortaleza de S. João Baptista.
Logo à chegada ao Tarrafal, Manuel dos Reis ou «Manuel dos Arames», devido à vontade de tudo cercar com arame farpado, vociferou aos presos: «Vocês aqui não têm direitos, só têm deveres a cumprir. E não se iludam – quem entra aquele portão é para morrer. Vão todos cair como tordos!». Este director «entretinha-se» a roubar as coisas que os familiares dos presos lhes mandavam, desculpando-se que tudo aquilo era enviado pelo Socorro Vermelho Internacional e chegando mesmo a montar uma cantina onde vendia as coisas roubadas.
O período entre 1937 e final de 1939, em que Manuel dos Reis e, depois, como se verá, João da Silva foram directores, com um ligeiro abrandamento durante a curta vigência de José Júlio da Silva foi apelidado de «período agudo» do Tarrafal. Ocorreu no contexto da consolidação fascizante do novo regime salazarista, perante a iminência do novo «perigo espanhol» desencadeado pela Guerra Civil, e no decurso do início da II Guerra Mundial. Nos «períodos agudos», os livros eram apreendidos, a correspondência era violada e retida, os medicamentos não entravam no campo e o escasso pessoal médico tardava em aparecer para tratar das emergências.
Em 1937, Manuel dos Reis mandou erguer a frigideira, para onde foram enviados, em 2 de Agosto, 17 prisioneiros participantes na primeira tentativa de fuga falhada do Tarrafal, que foram depois enviados para a construção de uma vala e um talude em redor do campo. No total de 200 reclusos que estavam implicados na construção da vala e do Talude, cerca de uma dezena ficou de pé a tratar dos outros que se encontravam acamados. O estado físico de todos era tão débil que, a 14 de Setembro, as obras na vala foram interrompidas. A maior parte dos prisioneiros recolheu à enfermaria, ou mitra, morrendo só nesse mês seis deles.
Os escândalos da actuação de Manuel dos Reis levaram à sua demissão. Foi substituído interinamente pelo capitão José Júlio da Silva, em Dezembro de 1937, que melhorou a alimentação, atenuou a dureza dos trabalhos e regularizou a troca de correspondência com os familiares, começando a chegar com regularidade os medicamentos. Foram então inaugurados, em substituição das tendas degradadas, os pavilhões em pedra, usados como casernas, para quarenta ou cinquenta homens.
Em Outubro de 1938, a direcção do campo passou para o capitão João da Silva («O Faraó»), que, segundo o preso João Faria Borda, tinha feito parte de uma comissão de militares encarregada de estudar, na Alemanha nazi, o funcionamento dos campos de concentração, que Hitler começou a construir. João da Silva vinha acompanhado pelo torcionário Henrique Sá e Seixas da PVDE (que, na PVDE do Porto, espancava os presos políticos com uma porta a que chamava «Arriba Espanha»), o capitão Duarte Osório Fernandes, e pelos guardas Epifânio Mateus, Travessa, e Carlos Silva.
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Tarrafal 

(A propósito do «Simpósio Internacional sobre o Tarrafal», 28/4-1/5/2009)
A primeira parte e a segunda partes do texto podem ser lidsa
aqui e aqui.
 
 
Medidas de segurança, deportação, crimes políticos e tribunais especiais

O Direito português já conhecia as medidas de segurança e a deportação, desde o final do século XIX, através de uma lei de 21 de Abril de 1892, aperfeiçoada em 1896, segundo a qual os réus condenados como reincidentes ou vadios ficavam à disposição do governo para serem transportados paras as colónias, após o cumprimento das respectivas penas e aí serem providos em trabalho, quando a sentença condenatória o determinasse. Esta lei não previa qualquer prazo máximo para a «remoção», pois a duração desse tempo dependia do bom comportamento, podendo a medida ser revista passados três anos desde a chegada do réu à possessão ultramarina em audiência com o Ministério Público.
Ainda na monarquia, um Decreto de 26 de Dezembro de1907 criou em Angola uma Colónia Penal Militar. Já no período republicano, a Lei n.º 277, de 15 de Agosto e 1914, previu uma medida administrativa de deportação para as colónias e a faculdade de o governador recusar a entrada e de ordenar a expulsão de nacionais ou estrangeiros que fossem inconvenientes, condenados em penas maiores, vadios, mendigos, alienados ou portadores de doenças. Depois, o Decreto n.º 4.506, de 29 de Junho de 1918 e a Lei n.º 969, de 11 de Maio de 1920 consagraram duas previsões legais de degredo e de deportação, prevendo o último a colocação à disposição do governo dos autores de crimes relacionados com bombas, os instigadores à prática de certos crimes, os vadios e os reincidentes para os deportar para as colónias pelo prazo máximo de dez anos.
Entretanto, embora tivesse procedido, logo em Outubro de 1910, à abolição de todos os juízos criminais excepcionais, a I República portuguesa tinha vindo gradualmente a julgar com carácter de excepcionalidade os chamados «crimes» políticos, designadamente, os de anarquismo e abuso de liberdade de imprensa. Em 1911, foi não só criado, em Lisboa, um tribunal para julgamento dos «crimes de conspiração», como um diploma possibilitou ao ministro do Interior determinar a remoção de qualquer detido em investigação pela prática de qualquer crime político para Lisboa ou para o Porto, ainda que já estivesse entregue ao poder judicial. A aplicabilidade destas disposições ao crime de propaganda subversiva e aos crimes de alta traição foi ainda determinada por leis de 1912 e 1915, que assim possibilitaram a detenção policial ilimitada para averiguações, tutelada ministerialmente.
Depois do golpe militar de 28 de Maio de 1926, o novo poder político não recorreu apenas à criação de tribunais militares territoriais para o julgamento de crimes comuns cometidos por civis, como criou também tribunais militares extraordinários com vista a julgar certos crimes com motivação política e económica. Na sequência da revolta de Fevereiro de 1927, foi criado um novo Tribunal Militar Extraordinário (TME), para julgamento dos «crimes de rebelião» (Decreto n.º 13.392, de 31.3.1927), cujos implicados ficavam à disposição do governo, que lhes podia fixar residência em qualquer parte do território português. Por seu turno, o conceito legal de crime político foi definitivamente fixado pelo artigo 39 do Código de Processo Penal de 1929 e, no ano seguinte, o Decreto n.º 18.754 reformulou o regime dessa actividade política, mantendo a competência dos tribunais militares para os julgar e atribuindo ao poder político a capacidade de nomear os respectivos juízes.
Em 1931, após o esmagamento de um levantamento militar na Madeira, dirigida pelo general Sousa Dias, que se estendeu aos Açores e na Guiné, a Ditadura Nacional, viu-se confrontada com a necessidade de encarcerar cerca de 200 republicanos e reviralhistas presos. A opção foi a deportação para uma colónia penal, erguida em S. Nicolau, Cabo Verde. Os deportados militares de alta patente e funcionários públicos ali estiveram durante quatro anos, em regime de encarceramento, embora dificuldades para alimentá-los levou a que muitos fossem colocados em regime semi-aberto. Entretanto, na metrópole, Oliveira Salazar, o ministro das Finanças que progressivamente ganhava hegemonia no seio da Ditadura Nacional, foi chamado para dirigir o governo, no ano seguinte de 1932.
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Auswitch 

(A propósito do «Simpósio Internacional sobre o Tarrafal», 28/4-1/5/2009)
A primeira parte do texto pode ser lida aqui.

 
Campos de concentração nos regimes autoritários e nos regimes totalitários

Ao analisar-se as diversas funções dos diferentes campos dos regimes autoritários e totalitários, verifica-se também, não só que houve diferenças de grau, tanto na utilização do trabalho forçado e da violência dos carrascos, como de essência, entre o Tarrafal e Dachau. No caso dos regimes de carácter autoritário, como foi o salazarista, o campo era chamado de preencher duas funções precisas: aterrorizar a população civil e isolar e/ou eliminar os opositores do novo regime.
As ditaduras do tipo da salazarista pretendem submeter as massas e controlar a sociedade, mas não têm o objectivo de alterar os indivíduos e de refundar o tecido social, como pretendem os regimes totalitários, como foi o nacional-socialista. A lógica dos campos não totalitários poder-se-ia resumir pelo slogan típico do salazarismo, «Quem não é a meu favor é contra mim». Já nos sistemas totalitários, prevalece antes a fórmula «Quem não é conforme a acepção da história ou da natureza, deve ser reabilitado, remodelado ou mesmo eliminado».
Se o campo de concentração totalitário compartilha com o autoritário o mesmo objectivo de retirar da sociedade e do espaço público os elementos políticos que perturbam o regime (salazarismo), pretende também, além disso, eliminar os inimigos sociais e raciais da «comunidade nacional», bem como tem outro objectivo – o de fabricar a sociedade nova (totalitarismo). Nesse sentido, os campos de concentração nazis não só encarceravam todos os adversários políticos, mas também os inimigos religiosos, sociais e raciais. Além disso, estes campos pretendiam remodelar a sociedade e serviam de laboratório do que deveria ser a sociedade ideal de raça pura e esclavagista, preparando a missão atribuída à nova ordem nazi quer passava pela colonização do Leste da Europa. 

 
Prisão e campo de concentração

Se há, como se viu, uma diferença abissal entre os centros de extermínio e os campos de concentração nazis, há também uma clara distinção entre estes e os estabelecimentos prisionais. Duas diferenças foram aliás assinaladas por Edmundo Pedro: o aspecto precário e improvisado do Tarrafal, que não existe nas prisões, bem como o facto de o campo da ilha de Santiago se situar num espaço remoto relativamente à metrópole de onde provinham os prisioneiros e num terreno completamente vedado com arame farpado, sem quaisquer contactos com o espaço e a população circundantes. O isolamento dos prisioneiros era total. Não só não acediam a notícias do que se passava no mundo ou em Portugal, como a correspondência era censurada e, sobretudo, tudo estava feito para que nem sequer pudessem ser visitados por familiares, amigos ou camaradas, como acontece em maior ou menor grau nas prisões.
Além disso, há o facto de a prisão ser destinada a indivíduos, encerrados individualmente e em isolamento, em celas, enquanto que o campo concentrava maciçamente um grande grupo de indivíduos, num terreno, em casernas colectivas, onde não havia qualquer espécie de isolamento. Num estudo sobre o Tarrafal, José Manuel Soares Tavares destacou o facto de, no Decreto-Lei que em 1936 promulgou a reorganização dos serviços prisionais, se estipular que deveria haver «celas destinadas ao isolamento contínuo» com «a capacidade suficiente para assegurar ao recluso as necessárias condições de higiene e a possibilidade de trabalho dentro da cela». Ora no Tarrafal, criado no mesmo ano de 1936 e no âmbito daquele diploma, não existiam celas individuais, nem de isolamento contínuo, apenas havia casernas comuns, sem condições mínimas de higiene e de vivência.
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 Dachau

(A propósito do «Simpósio Internacional sobre o Tarrafal», 28/4-1/5/2009)

Criado em 1936, sob o eufemismo de «colónia penal», o campo de concentração do Tarrafal seguiu certamente o modelo dos campos de concentração nazis, dos quais adoptará aqui como paradigma o de Dachau, com o qual se procederá a uma breve comparação. Não se pretende aqui descrever as condições de detenção do campo do Tarrafal, mas antes tentar ver a legislação que resultou na sua criação, bem como abordar o tipo de prisioneiros que lá foram encarcerados. 
Mas antes disso, há que lembrar que o sistema concentracionário foi um fenómeno moderno do século XX europeu, que procurou responder à questão da gestão das massas no período da democracia, das ditaduras modernas, do nacionalismo e do colonialismo. Embora o sistema de «reconcentração» já tivesse sido utilizado pelos espanhóis em Cuba, no século XIX, foram os ingleses que, em 1901, inauguraram campos, para concentrar os Boers e as suas famílias que caíam nas suas mãos. 
Depois, cada novo conflito, em particular na Europa, passou a ser marcado pela abertura de campos destinados aos cidadãos inimigos que residiam no solo dos países em guerra, como aconteceu, por exemplo em França e na Itália, entre 1914 e 1918. De campo de detenção para inimigos do exterior (civis ou militares) passou-se a campos para inimigos internos (Trotsky, em Agosto de 1918). No entanto, o grande período de abertura de campos de concentração de novo tipo na Europa, destinados a encarcerar os inimigos políticos, sociais e até raciais do regime ditatorial, foi a década de trinta, entre as duas guerras mundiais.
O campo de concentração estava situado num terreno, rápida e sumariamente equipado, fechado hermeticamente com arame farpado, o campo concentrava densamente, em condições precárias e com pouca preocupação pelo direitos elementares, os indivíduos ou as categorias de indivíduos supostos perigosos e/ou prejudiciais às sociedades dos regimes que os encarcerava. O objectivo principal desse tipo de campo era eliminar (no sentido etimológico do termo eliminare, que significa em latino “fazer sair”), ou fazer desaparecer (exterminare) do corpo social qualquer pessoa considerada politicamente, “racialmente” ou socialmente suspeito.

 
Campos de concentração e centro de extermínio nazis

Este termo exterminar e as formas diversas como os diversos regimes eliminaram os seus adversários políticos ou inimigos sociais e até raciais podem porém prestar a confusões. Por isso, há que desde já distinguir diversos tipos de campo, que podem ser dividido grosso modo em: campos de concentração, nos quais, como se verá, se inclui o do Tarrafal; campos de internamento – por exemplo, os campos franceses onde foram internados os exilados espanhóis, finda a guerra civil de Espanha, ou os alemães e todos os estrangeiros considerados inimigos, com o começo da II Guerra Mundial – e, finalmente, campos de extermínio
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PIDE e CIA

A PIDE começou a chamar a atenção da Central Intelligence Agency (CIA), em1949, quando Portugal ingressou na Aliança Atlântica (NATO). Analistas dessa agência de Intelligence norte-americana consideraram que aquela polícia política tinha adquirido, em Portugal, um extraordinário poder, efectuava prisões arbitrárias, utilizava a brutalidade física e detinha presos na cadeia por prazo indefinido [1]. Depois, nos anos cinquenta, em plena Guerra-Fria, a CIA instalou um retransmissor da Radio Free Europe (Rádio Europa Livre, criada em 1947), em Glória do Ribatejo, criando, para o gerir, em Portugal, a Sociedade Anónima de Rádio-retransmissão (RARET). No entanto, a ligação “oficial” entre a PIDE e a CIA só foi formalizada em 1956, quando o coronel Benjamin H. Vandervoort [2], adido da embaixada dos EUA em Lisboa, convidou o director da polícia política portuguesa, capitão Agostinho Lourenço, comunicando-lhe para uma deslocação aos EUA, com o objectivo de «discutir matérias de mútua preocupação».

Como Agostinho Lourenço se desligou da direcção da PIDE, por limite de idade, em 5 de Setembro de 1956, o convite foi transmitido ao capitão António Neves Graça, chefe interino da polícia política portuguesa, que o aceitou, com «muito agrado». A CIA propôs-se então prestar auxílio à PIDE na organização de um sistema mecanizado de ficheiros e arquivos e, na sequência de impressões trocadas entre os dois respectivos directores, em Washington, por seu lado, Neves Graça elaborou uma proposta de colaboração entre os dois serviços. Segundo este, as duas polícias propunham-se trocar informações sobre a organização comunista e efectuar diligências e operações conjuntas, entre as quais se contavam a infiltração no seio dos Partidos Comunistas [3].

  
Os «homens das Américas» 

Em 1957, uma delegação de elementos da PIDE frequentou um curso, ministrado pela agência americana, nos EUA [4] onde, entre outras matérias, se contavam técnicas de vigilância, aprendizagem de rádio, de filmagens e fotografia, escuta telefónica, intercepção postal, elaboração de relatórios, métodos informativos e de interrogatório processual, conhecimento de tintas simpáticas, criptografia, microfilmes, utilização de tele-impressores, bem como técnicas de informação e contra-informação [5]. Fizeram parte da delegação portuguesa o sub-inspector Jaime Gomes da Silva, o chefe de brigada Manuel Vilão de Figueiredo, os agentes Sílvio Mortágua, Amândio Gomes Naia, Álvaro dos Santos Dias Melo, Abílio Augusto Pires, Felisbino Marques Gomes, Ernesto Lopes (Ramos), José Mesquita Portugal e João Nobre e ainda os escriturários, Alfredo Fernando Robalo e Eduardo de Sousa Miguel da Silva [6].

Alguns dos quadros da PIDE que estagiaram na América – Abílio Pires, Ernesto Lopes Ramos e Miguel da Silva – terão sido contratados pela CIA como agentes de ligação em Portugal. Este último chegou a ser considerado, em 1969, pelos próprios dirigentes dessa polícia, de ser um «homem das Américas», razão pela qual ficou limitado a assuntos respeitantes à autoridade nacional de segurança [7]. Quanto a Abílio Pires, negaria ter trabalhado para a CIA, embora afirmando que esta agência o tinha de facto tentado subornar, através de Walter Andrade, elemento da estação americana em Lisboa [8].

Numa entrevista dada em 1974, em Londres, Philip Agee, oficial de operações secretas da CIA, afirmou, por seu turno, que Rudolfo (sic) Gómez, organizador da rede dessa agência em Portugal, em 1968 e 1969, tentara aliciar o inspector Rosa Casaco, com o qual terá reunido periodicamente no Porto e em La Toga (Galiza) [9]. António Rosa Casaco negou, porém, ter trabalhado para a CIA, esclarecendo que apenas teve uma «amizade desinteressada com Edward Gómez, chefe da base» dessa agência norte-americana, em Portugal na década de 60 [10].

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Sé de Lisboa

Há 50 anos, na madrugada de 11 para 12 de Março de 1959, deveria ter eclodido o «golpe da Sé», assim chamado porque os conspiradores reuniram na Sé Patriarcal de Lisboa, de que era pároco o padre João Perestrelo de Vasconcelos (*) , um dos participantes. Ainda está por fazer a história dessa falhada intentona que se propunha derrubar o governo de Salazar, na sequência da burla eleitoral das eleições presidenciais de 1958, em que a candidatura do general Humberto Delgado tinha incendiado o país. Em particular, estiveram envolvidos muitos elementos que a PIDE nunca detectou, foram feitos previamente muitos contactos pelos participantes directos no golpe entre oposicionistas ao regime para um eventual futuro governo provisório, em caso de vitória. No entanto, apenas me vou limitar a dar algumas informações sobre essa falhada tentativa de golpe, recolhidas no Arquivo da PIDE/DGS, polícia que terá sabido da eclosão do golpe com antecedência e conseguiu matá-lo à nascença.

 
Militares e civis católicos

No seu livro Portugal Amordaçado, Mário Soares observou que o «golpe da Sé» nada teve a ver com os tradicionais movimentos putschistas militares anteriores, não só porque nela participaram diversos jovens civis, já sem qualquer relação com os republicanos e «reviralhistas», como devido a ter sido «um movimento de clara inspiração católica, embora com a participação importante de elementos não católicos, democratas de diferentes correntes oposicionistas». A «alma civil da conspiração foi o oficial da marinha mercante Manuel Serra, antigo dirigente da juventude católica e participante entusiástico da candidatura Delgado» do ano anterior. Entre os civis, destacaram-se Fernando Oneto, Asdrúbal Pereira, Horácio Queiroz, Raul Marques, Jaime Conde, Pedro Bogarim, Amândio da Conceição Silva, que participaria no desvio do avião da TAP em 1961, e António Vilar, morto anos depois na revolta de Beja, no final deste ano. Mário Soares referiu ainda a participação do seu amigo Eurico Ferreira, advogado de Santarém.
No «plano estritamente militar, se bem que a direcção suprema pertencesse ao então major Pastor Fernandes, (…), o principal organizador da conspiração parece ter sido o dinâmico capitão Almeida Santos, antigo dirigente da “Mocidade Portuguesa”, assassinado depois em condições dramáticas». Outras figuras de relevo do movimento foram os majores Clodomiro Sá Viana Viana d´Alvarenga e Luís Calafate, os capitães Fernando Costa Revez Romba e Amílcar Domingues, o 1.º tenente da Armada Vasco da Costa Santos e o oficial miliciano médico Jean Jacques Valente. Por seu lado, o capitão João Varela Gomes, que viria a ser o dirigente militar do «golpe de Beja», em 1962, disse também que o núcleo dinamizador dessa movimentação era constituído por católicos e monárquicos, citando, além de Manuel Serra e do capitão Almeida Santos, o advogado Francisco Sousa Tavares e o capitão Nuno Vaz Pinto. O próprio Varela Gomes chegou a participar numa das reuniões da conspiração, ao lado do então capitão de Engenharia Vasco Gonçalves e do capitão Baptista da Silva, que representava jovens oficiais de Infantaria, entre os quais se contavam ainda Firmino Miguel e Soares Carneiro.
Segundo o relatório do processo da PIDE, a autoria do golpe Movimento Militar Independente (MMI) propunha-se «libertar o país do regime de força e ditadura pessoal a que se encontra sujeito, obrigando o governo a abandonar o poder, pela efectuação de um golpe militar». O comando supremo do golpe ficava a cargo de uma Junta Militar Nacional do MMI e as forças revolucionárias eram compostas por militares – combatentes ou simpatizantes -, grupos técnicos, para ocupar, impedir ou assegurar o funcionamento das emissoras, transportes colectivos, correios, telefones, centrais eléctricas, bem como por grupos auxiliares de combate ou informação.
A PIDE apurou que estavam ainda envolvidos na «conjura» muitos civis, o principal dos quais era Manuel Serra, dirigente da JOC e director da revista Náutica, enquanto chefe de uma milícia civil e elemento ligação entre esta e a Junta do MMI, através do major Calafate. Observe-se a proximidade entre a sigla do MMI e a do Movimento Nacional Independente (MNI) de Humberto Delgado, que aliás aguardou a eclosão do golpe na embaixada do Brasil onde estava exilado, pronto a sair. Relativamente à acção dos civis, entre os quais havia um médico e um padre, a PIDE assinalou, no seu relatório, que, a partir de Janeiro de 1959, se haviam activado os preparativos, segundo um plano que previa a divisão da cidade em quatro sectores, nos quais actuariam vários grupos, cada um constituído por cinco homens, sob o comando de um oficial miliciano fardado. A principal tarefa desses grupos era a captura de membros do governo e de altas individualidades, os quais seriam depois entregues às autoridades militares, e depois do «golpe», manutenção da ordem nas ruas e nos edifícios públicos.
 
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Obra das Mães 

Uma das preocupações do Estado Novo, no seu início de jornada, nos anos trinta, prendeu-se com o desejo de enquadramento e organização de estratos da população, por idade e por sexo. Em 1936, o ministro da «Educação Nacional», Carneiro Pacheco criou a primeira organização estatal de mulheres, a Obra das Mães pela Educação Nacional (OMEN), para «estimular a acção educativa da família», «assegurar a cooperação entre esta e a Escola» e «preparar melhor as gerações femininas para os seus futuros deveres maternais, domésticos e sociais». No discurso que proferiu, por ocasião da nomeação dos membros da Junta Central da Obra das Mães, o ministro definiu os três objectivos da OMEN: por um lado, a reeducação das mães e a assistência materno-infantil, através dos centros sociais e educativos, das «semanas da mãe» e dos «prémios às famílias numerosas» e, por outro lado, a antecipação e prolongamento da escolaridade através da educação infantil, das cantinas escolares e da criação da Mocidade Portuguesa Feminina (MPF) [1] 

A longa mas pouco actuante vida da OMEN (1936-1974) foi depois sempre marcada por uma grande indecisão quanto à definição das suas funções. Em certos sectores do regime, multiplicaram-se as opiniões segundo as quais a organização devia ter um carácter meramente assistencial, enquanto, pelo contrário, a condessa de Rilvas, dirigente da OMEN, nunca a deixou de considerar «um instrumento de educação nacional». Diga-se que, nos anos trinta e quarenta, o adjectivo «social» tinha de facto o significado de «educativo», fim para o qual a «assistência» era um meio. 

A própria condessa de Rilvas indicou qual era o principal alvo da OMEN, ao referir que embora também pretendesse ocupar-se da «Mocidade», era a «adulta, a Mãe, a mulher actual, com os seus erros, a sua ignorância, os seus preconceitos» que a organização queria atingir em primeiro lugar. Mas os principais alvos da reeducação da OMEN eram as «mulheres do povo» e, segundo os desejos da organização, nomeadamente as operárias, às quais seriam ministradas, em centros sociais e educativos, nos meios «urbanos, industriais e rurais», noções de higiene, puericultura e de moral, para reduzir a mortalidade infantil e levá-las a regressar ao lar. 

Num balanço das suas actividades realizado em 1971, a própria OMEN dividiu a sua vida, até aquela data, em três períodos: entre 1938 e 1945, a fase de implantação e de acção educativo-assistencial, exercida através dos primeiros centros sociais e educativos; entre 1946 e 1958, a fase em que a actuação no meio rural tomou «predomínio sobre os meios operário e urbano», através dos centros de formação familiar rural, e, entre 1959 e 1971, a fase vagamente caracterizada como sendo de procura da colaboração «com uma sociedade em franca evolução e resolução, tanto no âmbito familiar como social». 

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(A primeira parte deste texto pode ser lida aqui.)

 
O desmantelamento de redes alemãs e a criminalização da espionagem estrangeira 

Em Abril de 1942, Alexander Cadogan, da embaixada inglesa, denunciou, ao governo de Salazar, alguns portugueses e alemães, acusados de espionagem a favor da Alemanha, entre os quais se contavam Cecil Adolf Nassenstein e Vollbrecht, ambos da Gestapo-SD, bem como o português Mário da Conceição Silva, proprietário de uma transportadora marítima. Haveria, por outro lado, uma denominada «organização de Bremen», com agentes em Lisboa, na Madeira, nos Açores (Horta) e em Angola (Luanda e Lobito), alguns dos quais foram presos e outros expulsos do país, da qual faziam parte os alemães Hans Friderick Grimm e Hans Scholz, elementos da Abwehr.

Depois, os britânicos continuaram a informar Salazar, sobre novos casos de espionagem alemã, em Moçambique, Angola, no Estoril, no Porto e em Lisboa. Até no Algarve, o guarda do farol do Cabo de S. Vicente, sargento Francisco Regêncio, foi acusado de transmitir informações sobre os navios aliados. No início de Março de 1943, Salazar recebeu, do embaixador britânico, um organigrama sobre as redes de espionagem do Eixo, em Lisboa, elaborado pelo comandante Austin Walsh, delegado oficial do serviço de Inteligência britânico, com uma lista dos portugueses que trabalhavam para a Alemanha.

Além da estrutura organizativa «Uxis», dirigida por Kurt Mezza Silva Foerster, representante em Portugal dos caminhos-de-ferro alemães, e pelo italiano Arturo Omerti, que contava com a colaboração de Richard Schubert e Kuno Weltzien (representante em Portugal da Krupp), havia ainda a rede de Hans Bendixen, da qual faziam parte Ernst Schmidt, representante da firma AEG no Porto, bem como empregados da Radio Marconi e jornalistas portugueses, entre os quais se contava Carlos da Mota Marques. Em 8 de Outubro de 1943, uma brigada da PVDE fez uma rusga às moradias «Bel Ver», «Gira-Sol» e «Bem-me-Quer», no Estoril, as últimas das quais pertencentes, respectivamente, a Wilhelm Lorenz e a Hans Bendixen. Embora ali tivessem encontrado um receptor e outro «aparelho de marca hallicrafter, tipo Super Defiant», a PVDE afirmou nada ter encontrado de «suspeito».

Nesse período em que estavam a ser detectadas e desmanteladas redes alemãs em Portugal, Salazar resolveu entretanto criminalizar a espionagem de estrangeiros contra «terceiros» em Portugal, em 7 de Junho de 1943. Essa alteração ao Código Penal, que beneficiava então aos britânicos, esteve certamente ligada às sucessivas vitórias aliadas, mas coincidiu também com a condenação à morte, em Londres, em 2 de Abril de 1943, do português Rogério Magalhães Peixoto de Menezes, acusado de espionagem a favor dos alemães. Portugal tinha assim todo o interesse em revelar boa vontade com a Grã-Bretanha, para obter a comutação da pena capital, que efectivamente acabou por ser substituída pela prisão perpétua, em 26 de Maio. Após ter estado seis anos preso, Menezes acabou por ser libertado e deportado para Portugal, em final de 1949.

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esp12Portugal, em cuja capital se ouvia então falar todas as línguas europeias, tornou-se, no período da II Guerra Mundial, uma importante placa giratória de informações, mercadorias e pessoas. Sob os olhares atentos dos portugueses e da imprensa, passaram, por Lisboa, embaixadores dos países beligerantes, a caminho da Europa ocupada ou de Londres e dos Estados Unidos da América. Através de uma política sinuosa de exploração das contradições entre os dois campos beligerantes, Salazar conseguiu manter uma neutralidade, declarada em 1 de Setembro de 1939. Neutralidade, aliás possibilitada tanto pelo Eixo como pelos Aliados, que começou por ser «equidistante». 

A partir de 1943, após o desembarque no Norte de África e a derrota alemã em Estalinegrade, quando o desejo salazarista de uma «paz sem vencedores nem vencidos» se tornou inexequível, instalou-se no seio do regime o medo de que a vitória aliada acarretasse o fim do Estado Novo. Foi nesse período, num contexto interno de agitação social, que a neutralidade portuguesa passou de a «colaborante» com os aliados anglo-americanos.

 
Do lado dos britânicos 

Um dos campos em que Portugal foi «equidistante» até ao fim da guerra foi o da espionagem dos dois campos beligerantes. Até 1939, a espionagem britânica actuava desligada do Foreign Office, mas, com o início da guerra, a estação secreta inglesa, fechada nos anos vinte, foi reaberta no Consulado da Grã-Bretanha, em Lisboa, sob a direcção de Phillip Johns. Este trabalhava simultaneamente para o Special Operation Executive Committee (SOE) e para o Secret Intelligence Service (SIS) – ou secção V (de contra-espionagem) do MI6. Além destas duas agências secretas, também operavam em Lisboa, a Naval Intelligence Division, a Military Intelligence Service e o MI9.
 
 
O MI9 e o SOE em Portugal 

Dirigido por Donald Darling, funcionário do mesmo Consulado, o MI9 organizou fugas de prisioneiros e militares aliados, dos países ocupados pelo Eixo, mantendo linhas de entrada e de saída clandestina, através de Gibraltar e de Lisboa, a caminho de Londres. Entre Junho e Agosto de 1941, a PVDE detectou uma rede que introduzia clandestinamente, em Portugal, franceses e polacos em idade militar, ex-combatentes dos exércitos dos países ocupados, foragidos de campos de internamento franceses e opositores políticos alemães, detendo cerca de cinquenta clandestinos. Pertenciam a essa rede o inglês Victor Reynolds, proprietário da Quinta do Carmo, no Alentejo, e diversos portugueses, entre os quais se contava Mário Pinto Levy. 

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Segundo Fátima Patriarca, não faz sentido referir o 18 de Janeiro exclusivamente na Marinha Grande, como o fizeram ao longo dos anos, tanto a versão oficial do governo como a versão do PCP, ao destacarem quase unicamente o que se passou nessa vila, os vidreiros e a liderança comunista. Ao considerar que se deve «recolocar» o 18 de Janeiro na sua dimensão histórica exacta enquanto «movimento operário insurreccional, que visava a reconquista das liberdades sindicais, a par do derrube do regime do Estado Novo», esta autora mostra que o movimento operário insurreccional também teve expressão noutras localidades para além da Marinha Grande – em particular, em Lisboa, Coimbra, Leiria, Barreiro, Almada, Martingança, Silves, Sines, Vila Boim (Elvas), Algoz-Tunes-Funcheira. 

Por outro lado, o movimento gerou-se e desenvolveu-se com o concurso das duas principais correntes sindicais – a anarquista e a comunista – e com o envolvimento dos sindicalistas socialistas (Federação das Associações Operárias) e da corrente sindical autónoma (Comité das Organizações Sindicais Autónomas). Além disso, demonstrou que a greve geral se deveria desencadear em paralelo e em simultâneo com uma revolta militar e política «reviralhista» que não chegou a sair à rua, devido à repressão policial que se desencadeou logo em Novembro de 1933. 

Faz assim sentido referir, entre outros casos, o que aconteceu em Coimbra, onde rebentaram duas bombas na Central Eléctrica dos Serviços Municipalizados, colocadas por indivíduos ligados à CGT anarquista, englobados no Comité Sindicalista Revolucionário (CSR), na noite de 17 para 18 de Janeiro de 1934. Em Coimbra, o plano envolveria a destruição da linha-férrea do Choupal e a demolição de um posto de transformação de energia eléctrica no Lindoso, em Anadia, através de seis bombas, enviadas para Coimbra e escondidas na carvoaria de Manuel dos Santos. 

Para a acção de Anadia, Raul Ferreira Galinha deslocou-se a Coimbra para receber duas bombas de Abílio da Encarnação Pereira, manipulador de massas da Fábrica Triunfo de Coimbra e membro da comissão administrativa do Sindicato dos Operários de Massas e Bolachas, que tinha guardado em sua casa o material explosivo. De regresso àquela vila, Raul Galinha entregara as bombas a Augusto Duarte Reis, mas, ao deslocar-se de novo a Coimbra, no dia 17 de Janeiro, foi preso, denunciado por telefone à PSP dessa cidade pelo administrador do Concelho de Anadia. Este informara a polícia da detenção de um motorista de praça, Edmundo, que disse ter conduzido um indivíduo a uma rua próxima do Palácio de Justiça de Coimbra, onde este tinha recebido dois embrulhos de Abílio da Encarnação Pereira. 

Entretanto, duas horas antes da prisão de Raul Galinha, Abílio da Encarnação Pereira tinha ido buscar ao estabelecimento de Manuel dos Santos, em Coimbra, as bombas de rastilho destinadas à sabotagem da Central Eléctrica dessa cidade. Pelas 22 horas desse dia, teria havido uma concentração de grevistas ligados ao CSR no Alto de Santa Clara para distribuição de proclamações de greve e, pela meia-noite, alguns destes, entre os quais se contou o barbeiro Arnaldo Simões Januário que anteriormente tinha ido buscar a Lisboa dez bombas de choque, deslocaram-se a casa de João Gomes Jacinto. Este entregou um revolver a Bernardo Casaleiro Pratas, operário dos Serviços Municipalizados de Coimbra que, juntamente com o carpinteiro José Alexandre e o pedreiro José Ventura Paixão, sabotaram os transformadores de corrente da União Eléctrica Portuguesa, colocando duas bombas com cerca de nove quilos, que rebentaram às 4,30 horas da madrugada de dia 18 de Janeiro, deixando Coimbra às escuras.

A PSP de Coimbra acabaria por deter cerca de 80 pessoas, entre as quais se contaram 18 indivíduos do Comité Sindicalista Revolucionário (CSR), na sua maioria ligados à (CGT) anarquista, por participação directa no movimento de 18 de Janeiro de 1934. Entre os presos, contaram-se todos os participantes já referidos, bem como, de Anadia, Pedro Ferrer Catarino, e de Coimbra, o padeiro Manuel Rodrigues da Cunha Maia, presidente do Sindicato dos Manipuladores de Pão de Coimbra, bem como os militantes da CGT Joaquim Roque, Joaquim, Duarte e Júlio Ferreira, José Libório do Nascimento, Manuel dos Santos, José Fernandes Ferreira, e os sapateiros António Ferreira, Armando Nogueira de Figueiredo e José de Almeida. Em 18 de Dezembro de 1933, tinham entretanto sido detidos Cunha Melo, ligado aos anarquistas, bem como José Augusto Frutuoso e Álvaro Pinto Teixeira, do PCP.

As penas a que seriam sentenciados os principais implicados nos acontecimentos em Coimbra, pelo TMT instalado no forte da Trafaria, sob a presidência do coronel Costa Macedo, assessorado pelo coronel Mouzinho de Albuquerque, seriam pesadíssimas. Condenado a 10 anos, Raul Galinha cumpriria a pena no forte de Angra do Heroísmo, até ser libertado em 1944, embora ficando em residência fixa nessa cidade açoriana, enquanto Abílio da Encarnação Pereira apenas seria solto em Abril de 1949. José Alexandre foi condenado a 18 anos, enquanto Bernardo Pratas e Arnaldo Januário foram sentenciados a 20 anos. Enviado para o Tarrafal, este último morreria nesse campo de concentração em 27 de Março de 1938.

 
Fonte e bibliografia:
– Arquivo Histórico Militar, proc 441/74, Fernando Araújo Gouveia, volume II, fls. 553-555.
– Fátima Patriarca, Sindicatos contra Salazar, A Revolta do 18 de Janeiro de 1934, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2000, pp. 275-303.

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Logo que chegou à chefia do poder, em 5 de Julho de 1932, António de Oliveira Salazar começou a elaborar a Constituição sobre a qual assentaria o seu novo regime, o Estado Novo. Após ser plebiscitado, o texto constitucional foi promulgado em Abril de 1933, no ano em que o novo regime salazarista criou a polícia política (PVDE) e o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) e lançou as bases da legislação corporativa, que assentaria, depois da proibição das associações operárias, em Sindicatos Nacionais (SN) únicos e Grémios patronais todo-poderosos. Na luta contra o processo da chamada «fascização» dos sindicatos e num movimento de recusa de dissolução das organizações operárias nos SN e de formação de comités de base de luta por reivindicações económicas e liberdades políticas, ergueram-se os anarco-sindicalistas, os comunistas e alguns socialistas, respectivamente organizados na Confederação Geral do Trabalho (CGT), na Comissão Inter-Sindical (CIS) e na Federação das Associações Operárias (FAO), bem como elementos do Comité das Organizações Sindicais Autónomas (COSA). 

No PCP, a linha de Bento Gonçalves e da direcção foi inicialmente de aproveitamento das assembleias-gerais que deveriam realizar-se para decidir da aprovação dos novos estatutos sindicais e aprovar moções de repúdio da nova legislação e dos sindicatos nacionais, gerando um movimento de massas que poderia vir a desembocar numa greve geral contra a «fascização dos sindicatos». O certo é que a táctica do PCP teve pouca aceitação na própria CIS, dirigida por José de Sousa, que aderiu à táctica da «greve geral insurreccional» e a partir de então os sindicalistas comunistas concentraram-se nos preparativos desta. 

No processo de organização do movimento de resistência aos decretos sindicais do Estado Novo, revelar-se-ia assim dominante um projecto insurreccional, programado inicialmente pelos comunistas e anarquistas, organizados em Comités Sindicalistas Revolucionários (CSR), em conjunção com forças reviralhistas. Mas logo em Novembro de 1933, a PVDE conseguiu prender e deportar Sarmento de Beires e outros reviralhistas, participantes numa tentativa falhada de intentona que deveria coincidir com a «greve geral revolucionária», que após conhecer sucessivos adiamentos devido à repressão, foi marcada para 18 de Janeiro de 1934. 

A polícia e o governo comportaram-se como se desejassem que o movimento deflagrasse para, em seguida, desmantelá-lo e reprimir os envolvidos. Parecendo estar ao corrente dos preparativos da «greve geral revolucionária» de 18 de Janeiro de 1934, a PVDE prendeu, na véspera, alguns dos principais dirigentes sindicalistas, entre os quais se contaram os anarco-sindicalistas Mário Castelhano e Acácio Tomás de Aquino e o reviralhista Carlos Vilhena, detido na madrugada desse dia. Em Lisboa, na noite de 17 para 18 de Janeiro, Salazar abandonou a sua residência, acolhendo-se, primeiro no Governo Civil e, em seguida, ao quartel de Caçadores 5, em Campolide, enquanto os pontos nevrálgicos da capital eram de imediato ocupados pelo Exército. As adesões à «greve geral» de dia 18 acabaram por se revelar reduzidas, registando-se paralisações e acções diversas em Lisboa, Coimbra, Leiria, Barreiro, Almada, Martingança, Silves, Sines, Vila Boim (Elvas), Algoz-Tunes-Funcheira e na Marinha Grande. 

Na noite de dia 17, em Lisboa, rebentou uma bomba no Poço do Bispo e foi cortado o caminho-de-ferro em Xabregas, ao mesmo tempo que explodiam duas bombas na central eléctrica de Coimbra, colocada por anarquistas. Só na Marinha Grande, onde as lutas anteriores dos vidreiros tinham criado um ambiente propício, se foi mais longe: sob o impulso do sindicato (onde predominavam os comunistas), grupos de operários ocuparam o posto da GNR, o edifício da Câmara Municipal e os CTT, proclamando o «soviete da Marinha Grande». Tropas vindas de Leiria tomariam conta da vila poucas horas depois, ficando-se «greve geral insurreccional» por aí, com o governo a aproveitar para intensificar a caça aos libertários e comunistas. 

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O fracasso da «greve geral revolucionária de 18 de Janeiro de 1934», em que participaram conjuntamente anarquistas, republicanos, «reviralhistas» e comunistas marcou o ocaso em Portugal do movimento anarco-sindicalista, desmantelado pela repressão e sem capacidade para sobreviver em condições de clandestinidade. Depois, outras memórias hegemónicas atiraram os anarquistas portugueses para o esquecimento, de onde também devem ser retirados. Este caso é só um entre muitos.

 
José Correia Pires (CP) nasceu em 17 de Abril de 1907, em S. Bartolomeu de Messines, concelho de Silves. Os pais, José Correia e Isabel Pires, eram trabalhadores pobres e analfabetos, como a maioria dos portugueses. No entanto, compreenderam a necessidade de o filho aprender a ler e escrever e colocaram-no numa escola particular onde aprendeu as primeiras letras e depois na escola oficial, onde fez a instrução primária até à então 5.º classe. Profissionalizou-se como carpinteiro, por volta de 1922, num período em que, já militando no movimento anarquista, em particular na Confederação Geral do Trabalho (CGT), foi activista do sindicato da construção civil de Messines.

Após o golpe militar de 28 de Maio de 1926, que derrubou a I República portuguesa e a partir do qual vigorou um regime de Ditadura Militar, tentou criar em Messines uma organização, a Aliança Libertária, ao mesmo tempo que colaborava em alguns semanários regionais. Em Janeiro de 1931, ano em que haveria uma intensa agitação social e política contra a ditadura militar, CP teve o primeiro embate com a repressão quando, com outros camaradas, abriu uma escola na sede do Sindicato da Construção Civil de Messines, que acabaria por ser encerrada pelo administrador do Conselho, alferes Barroso, que a considerou subversiva.

Em protesto, CP escreveu um texto no jornal local A Voz do Sul e, para não ser preso, dirigiu-se a Faro, onde o comandante da polícia, capitão Maia Mendes, o tirou de apuros e conseguiu mesmo a demissão do administrador Barroso. Esta situação foi reveladora de que havia ainda então, no seio da Ditadura Militar, contradições, em particular na província, onde «o sentido de repressão ainda não tinha atingido o cunho que viria a ter depois de 33 ou mesmo como já teria em Lisboa e arredores», conforme afirmou o próprio CP nas suas memórias.

No entanto, tudo se clarificaria na Ditadura, quando no ano seguinte António Oliveira Salazar, ministro das Finanças desde 1928, chegou à presidência do Conselho de Ministros. Não por acaso, foi no verão de 1932 que CP conheceu pela primeira vez a prisão, relacionada com a luta pelas 8 horas de trabalho na construção civil. Numas obras a decorrer numas estradas circunvizinhas de Messines, trabalhava-se cerca de 14 horas por dia e o sindicato onde militava CP incitou os trabalhadores a reivindicar o cumprimento da lei das 8 horas. O «incidente» fez cair sobre ele a ameaça de prisão, pelo que teve de se ausentar durante uns meses de Messines, embora acabasse por ser detido em Faro e enviado para a prisão do Aljube, em Lisboa. Levado a julgamento no Tribunal Militar Especial, acabaria porém por ser absolvido, já em 1933.

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Francisco Paula de Oliveira («Pavel»), operário serralheiro do Arsenal de Marinha e dirigente da Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas (FJCP) na clandestinidade, desde 1932, foi preso pela primeira vez pela polícia política, em Fevereiro desse ano, mas acabou então por ser solto por falta de provas. Mais tarde, a PVDE apuraria que, dias antes dessa detenção, «Pavel» havia iniciado a reorganização das juventudes comunistas, numa reunião realizada na Costa da Caparica, onde fora nomeado um novo secretariado da Federação das Juventudes Comunistas Portuguesas (FJCP), no qual ele próprio ficara responsável pela imprensa.

Depois, ainda segundo o relatório daquela polícia, «Pavel» tinha sido enviado como delegado português a um congresso das juventudes comunistas espanholas, que não chegara a realizar-se. Após regressar de Madrid, convocara nova conferência regional para a Costa Caparica, tendo proposto nova reorganização da FJCP e, pouco depois, redigira um informe em nova reunião realizada na Amadora. Tinha ainda participado na organização de um plano de acção para a agitação para 4 de Setembro de 1932 e, nesse dia, havia sido ele a discursar num comício relâmpago em Alcântara.

Em 13 de Março de 1933, «Pavel» foi novamente preso, quando, na clandestinidade, visitava a sua mãe numa casa na Rua do Ferragial, em Lisboa. Ao verificar que ele sofria de uma grave doença pulmonar e não querendo que morresse nas suas mãos, a polícia transferiu-o da cadeia Aljube para a enfermaria do Limoeiro. Foi aqui que Edmundo Pedro conheceu «Pavel», que, devido ao seu precário estado de saúde, acabou por voltar a ser transferido, sob prisão, para o hospital-sanatório da Ajuda, de onde ele conseguiria evadir-se, em 3 de Setembro de 1933, com a ajuda de um indivíduo de nome Ferreira da Silva, motorista, e de Gabriel Pedro que o levou depois para uma sede clandestina do PCP, em Lisboa (1).

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Eu estou de acordo em geral com a opinião (ou as três opiniões do Rui Bebiano), formulada(s) em resposta às suas próprias perguntas, às quais, vou também procurar responder, uma vez que penso serem as que verdadeiramente se colocam. Por isso as volto a formular: «Deve o historiador tomar posição sobre o passado? Deve, em consequência, tomar posição sobre iniciativas de natureza penal que sobre ele incidam? E deve aceitar a manipulação mediática da história e da memória?»

Relativamente à primeira pergunta, é claro que faz parte do próprio ofício do historiador «tomar posição relativamente ao passado», ou seja, interpretar as fontes disponíveis, que ele próprio escolhe – lembre-se -, ao utilizar umas e prescindir de outras, na fase documentalista da sua pesquisa, analisá-las e organizá-las, para depois chegar à fase da escrita, introduzindo o que apurou e interpretou numa narrativa compreensível. O seu objectivo é tentar procurar a verdade, sabendo que ela é relativa e transitória. E fá-lo, também sabendo que ele próprio está envolvido subjectivamente num presente, do qual parte sempre, para analisar o passado. Por isso, ele não é neutro, mas tem de tender para essa neutralidade. Não é totalmente objectivo, mas tem de tender para essa objectividade. Em suma, ele escolhe o seu objecto de estudo, parte de uma hipótese inicial, que deve cotejar com as fontes que ele próprio escolhe, mas deve estar absolutamente disponível para, cotejando-as, conseguir até por em causa a sua hipótese inicial. Relativamente ao passado recente, ainda «fumegante», como diz Rui Bebiano, todo este processo se torna mais difícil, mas também aliciante. Mas o historiador também se tem de defender do relativismo e das noções de que tudo, em História, seria representação e não teria nada a haver com a realidade. Não se trata de verdades que se equivalem ou de meras opiniões, trata-se, da parte do historiador, de uma posição sobre factos que se passaram. Dando exemplo do Holocausto: dizer que o extermínio nazi ocorreu e as câmaras de gás existiram não é uma questão de opinião é uma questão de verdade ou de mentira. E os negacionistas do Holocausto mentem, por razões políticas e até criminosas. Se eles devem ser perseguidos ou não pela Justiça é outra questão, sobre a qual tenho uma opinião mas que não vou gora aqui expressar, podendo vir a ser abordada noutra ocasião. Agora, como diz Jacques Julliard, se a sua profissão é a procura da verdade, o historiador não deve pretender ser ele o único a detê-la. E deve reagir contra qualquer pressão do poder político para definir ou impor uma única verdade, o que remete para a segunda questão.

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Nos passados dias 12 e 13 Setembro 2008, realizaram-se, no convento dos Capuchos, que comemorou então os seus 450 anos, duas récitas da ópera Der Kaiser von Atlantis oder die Tod Verweigerung («O Imperador da Atlântida ou a abdicação da Morte»), composta, em 1943, por Vicktor Ullmann, com libretto de Peter Kien, no campo de concentração de Theresienstadt (Terezin, a norte da actual República Checa). Estreada na sua totalidade pela primeira vez em Portugal, com organização da Câmara Municipal de Almada e da Associação Ginásio Opera (1), a ópera foi concebida pelos dois artistas durante o cativeiro em Theresienstadt, para apresentação no campo de concentração. Devido à sua temática pacifista e anti-hitleriana, o espectáculo jamais seria levado à cena dado que, nos ensaios realizados em Outubro de 1944, o comando local das SS proibiram a sua apresentação. Pouco tempo depois, Ullmann, Kien e todo o cast foram enviados para Auschwitz, onde acabariam por morrer nas câmaras de gás. Apenas em Dezembro de 1975, trinta anos depois da sua criação, a ópera teria a sua estreia mundial no Bellevue Center de Amesterdão.

Dada a perplexidade que pode haver com o facto de ter sido composta uma ópera – não foi aliás caso único em Theresienstadt – num campo de concentração nazi, convém dar algumas explicações sobre a forma como ele foi concebido pelos nazis, como instrumento de propaganda para esconder os seus crimes, a par aliás com a destruição das câmaras de gás e as transferências dos deportados dos campos do extermínio, nas «marchas da morte», no final da guerra. Lembre-se que, questionado sobre as atrocidades cometidas, o próprio chefe das SS, Heinrich Himmler disse a um deportado estar convicto que ninguém iria acreditar na magnitude do crime do extermínio e que ainda hoje os negacionistas do Holocausto utilizam o exemplo de Theresienstad.

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Após a chegada de vários comentários ao que escrevi no anterior post, que muito agradeço, gostaria de assinalar em primeiro lugar que algo vai mal na nossa democracia argumentativa. Situação aliás que tem a ver com a enorme fraqueza da nossa sociedade civil. De facto, alguns comentadores, cuja opinião têm todo o direito de defender, tal como eu tenho todo o direito de defender a minha, não conseguem argumentar, sem recorrer ao rótulo, por vezes insultuoso. «Cruzada indigna», «sectarismo», «fundamentalismo», defesa de «uma memória “antifascista”» (com as devidas aspas) são só alguns dos epítetos que têm sido lançados nos comentários. O interessante de um ponto de vista político é que não se distinguem pela área ideológica de onde provêm.

Além desta observação, gostaria também de referir algumas questões que, entre outras, me sugerem alguns comentários e servem de pretexto para explicitar melhor a minha ideia.

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Sofia de Oliveira Ferreira nasceu em Alhandra (Vila Franca de Xira), em 10 de Maio de 1922. Por volta dos vinte anos, foi «servir» para uma casa particular, em Lisboa, onde se encontrava em 1945, quando ingressou no Partido Comunista Português (PCP). Foram as suas duas irmãs que viviam em Vila Franca de Xira, vila onde esse partido foi buscar muitos dos seus quadros no período da II Guerra Mundial, que a levaram para o PCP, antes de ingressarem na clandestinidade. A própria Sofia também foi colocada, em 1946, numa «instalação» clandestina do PCP, onde funcionava uma tipografia que imprimia o Militante e outras publicações desse partido. 

Dois anos depois, Sofia foi colocada numa casa do Secretariado do PCP, no Luso, onde foi presa, pela primeira vez, em 25 de Março de 1949, juntamente com os dirigentes comunistas Álvaro Cunhal e Militão Ribeiro. A casa foi assaltada por uma brigada da PIDE, chefiada pelo chefe de brigada Jaime Gomes da Silva e integrada pelos agentes Mortágua, Rego, Guerra e Pais, acompanhados pela GNR, que levaram os três presos para a delegação da polícia política do Porto. Mal ali entrou, Sofia ouviu os gritos da sua camarada Luísa Rodrigues, companheira de Militão Ribeiro, presa desde 7 de Fevereiro. Sofia disse ter aí começado a tortura para ela, pois viu-se impossibilitada de prestar socorro à sua camarada, cuja janela da cela foi logo entaipada pela PIDE. 

Contou Sofia «que uma das formas de tortura da PIDE era justamente fazer ouvir gritos e gemidos de outros presos, para quebrar a moral e criar tensão psicológica e nervosa aos presos recém-chegados e mesmo aos que já se encontravam presos havia longo tempo». Como tentasse fazer chegar um bilhete a Luísa Rodrigues, Sofia foi agredida e insultada pelos elementos da PIDE. Depois, os seus interrogatórios processaram-se sob provocações e ameaças de cassetête, com o qual lhe bateram num braço, às ordens do chefe de brigada Gomes da Silva. Numa ocasião foi esbofeteada, com tal violência, que ficou com um derramamento de sangue no olho esquerdo e perturbações auditivas durante muito tempo. 

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Segundo noticiou o jornal Público, de 25 de Setembro de 2008, a Fortaleza de Peniche vai ser transformada em Pousada de Portugal, devendo abrir portas até 2013. «Com um investimento previsto de dez a 15 milhões de euros, a nova unidade deve compatibilizar a função hoteleira com a “preservação da memória da prisão política”» – disse António Correia, presidente da Câmara de Peniche. O autarca acrescentou que essa «pousada será diferente», pois «será construída num local que é visitado por milhares de pessoas à procura da memória do que ali se passou» (*).

Esta declaração parece uma anedota (de mau gosto).

Será que o Sr. Presidente da Câmara está à espera de «clientes» bebam um copo, num hipotético bar, erguido junto ao «parlatório», onde os familiares visitavam os presos políticos com uma placa de vidro encimado por uma rede de permeio e os guardas a vigiarem? Ou que dêem um mergulho na piscina, junto à «furna» isolada em cimento, que servia de «segredo», para punir os presos políticos? Ou ainda que façam parapente para o mar, ou escalada dos muros, para reviver as fugas audaciosas dos presos políticos?

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O fascínio da autora, Clara Queiroz, pela personalidade de Emma Goldman resulta da impressionante actualidade da análise política, da defesa dos direitos das mulheres e dos trabalhadores, da justiça social e política e, sobretudo, da intransigente luta pela liberdade.

Cada obra acaba por ter algo de autobiográfico, mesmo que seja a biografia de outra personagem. A autora, cuja empatia com a biografada é muito grande, revê-se no seu pensamento e na sua personalidade e retira do silêncio para o público português esta personagem, malquista e malvista pelos hegemónicos na esquerda europeia durante tantos anos.

Através da narrativa escorreita do livro, assiste-se à vida de uma judia russa, nascida na Lituânia e emigrada para os EUA, onde se abriu para a revolução e para o anarquismo. Este seria, aliás, na sua vivência, intimamente relacionado com o feminismo. Emma Goldman participou também em reuniões com socialistas alemães que tentavam organizar o movimento operário norte-americano e acompanhou as lutas operárias pelas oito horas de trabalho.

Esteve presa durante dois anos e, em 1919, foi deportada para a Rússia com Berkman, seu marido. Aí, depressa descobriram que a revolução, na qual tantas esperanças tinham depositado, também encarcerava anarquistas e outros dissidentes. E ouviram da boca do próprio Lenine que a liberdade de expressão era um conceito burguês.

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Nasceu no Porto, em 5 de Setembro de 1926, no ano em que um golpe de Estado militar derrubou a I Republica portuguesa, filha de um comerciante, proprietário de uma loja de lanifícios na Rua de Santa Catarina, na baixa portuense, e de uma professora primária que faleceu muito cedo, quando Ângela era uma criança.

Em casa, segundo diria Ângela, coexistiam duas correntes que a marcaram na infância e primeira adolescência. A da madrasta, católica praticante, embora também se dedicasse ao espiritismo, que foi uma segunda mãe para Ângela e a influenciou, nomeadamente, no sentido de fazer a primeira comunhão. Quanto ao pai, era um republicano agnóstico e anticlerical, que lia muito literatura francesa e acreditava na educação inglesa, não deixando de ser severo e disciplinador. 

Foi através dele que, por volta dos treze anos, Ângela acedeu aos primeiros livros, até ali guardados numa estante fechada e foi graças a ele que ela nunca frequentou a Mocidade Portuguesa Feminina, nem foi forçada a frequentar as aulas de moral. No liceu, Ângela fez as suas escolhas, juntamente com quatro colegas e as primas. Rebeldes, partilhavam as mesmas ideias, trocavam livros, deixaram de ir à missa e tentavam sair à noite, até à Foz, algo de impensável para jovens de 18 anos do Porto, nos anos quarenta, mesmo para famílias da oposição. 

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Publico hoje a segunda e últma parte do texto da apresentação que fiz na sessão de abertura do Congresso Feminista 2008, no dia 26 de Junho de 2008.
(Primeira parte)

 
A mulher no trabalho

Como se viu, o regime salazarista pretendeu o retorno da mulher ao lar. Em 1933, o Estatuto do Trabalho Nacional estipulou que o trabalho feminino «fora do domicílio» seria regulado por «disposições especiais conforme as exigências da moral, da defesa física, da maternidade, da vida doméstica, da educação e do bem social».

No ano seguinte um diploma decretou que, enquanto houvesse homens desempregados, não seria permitida «em muitas indústrias, o recurso abusivo à mão-de-obra mais barata fornecida pelas mulheres e pelos menores».

Em muitas empresas, as mulheres foram substituídas por homens e remetidas para tarefas não diferenciadas e mal pagas. Não só as mulheres ocupavam postos laborais na situação de «auxiliares» e «aprendizes», o que fazia delas realmente a mão-de-obra mais barata, como auferiam salários «mínimos» menores que os dos homens para o mesmo trabalho.

No entanto, o propósito do regresso das mulheres ao lar não se tornou uma realidade. Em 1950, 22,7% da população activa total era do sexo feminino. Na indústria, onde a presença feminina foi sempre maioritária nos têxteis, no tabaco e no vestuário, bem como nos sectores de trabalho intensivo, precário e não especializado, a percentagem da população feminina aumentou de forma imparável dos anos cinquenta.

Maria Lamas descreveu então a situação do trabalho feminino:

«No povo não há, praticamente, mulheres domésticas. Todas trabalham, mais ou menos fora do lar. Quando não são operárias, são trabalhadoras rurais, vendedeiras, criadas de servir ou “mulheres-a-dias”. (….) Seria quase impossível mencionar todas as suas ocupações que vão do roçar mato aos mais delicados bordados, sem contar com as grandes industrias em que ela ocupa lugar predominante».

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Já é possível consultar on line o Registo Geral dos Presos da PVDE/PIDE/DGS, no site da Torre do Tombo. Finalmente está tudo na net, embora ainda só os primeiros livros de registo tenham fotos do respectivo cadastro. 

Nem todos são presos políticos, dado que a PIDE tinha ainda no seu pelouro, para além dos «crimes» contra a segurança interna e externa do Estado, a emigração clandestina (neste caso também podem ser considerados presos políticos alguns, além dos presos económicos), o engajamento de emigração e tarefas de polícia internacional, com ligação à Interpol. 

P.S.- O primeiro contacto não é fácil. Depois de aceder, escolha «Pesquisas». Coloque em «Título», por exemplo,  o nome de um preso e obterá informação. Depois é habituar-se e… explorar.

Publico hoje a primeira parte do texto da apresentação que fiz na sessão se abertura do Congresso Feminista 2008, no dia 26 de Junho de 2008.

 
No século XX, atravessado por quatro regimes políticos diferentes – o final da monarquia, a I República, o Estado Novo e a democracia -, a situação das mulheres em Portugal mudou radicalmente.

No princípio do século XX, a situação da mulher no seio da família era regulada pelo Código Civil napoleónico de 1867 – Código de «Seabra» -, que obrigava a mulher casada a residir no domicílio do marido; a prestar-lhe obediência e não a autorizava, sem o consentimento dele, a administrar, adquirir, alienar bens, publicar escritos e apresentar-se em juízo.

Em vigor até 1967, esse Código tinha várias outras cláusulas que se diferenciavam consoante se referissem ao homem ou à mulher: por exemplo, o homem podia solicitar o divórcio sempre que a mulher praticasse adultério, enquanto que esta só o podia fazer se o adultério tivesse sido praticado «com escândalo público».

O regime republicano atenuou desde logo alguns dessas normas que subjugavam as mulheres casadas aos maridos e aboliu certas diferenciações jurídicas consoante o sexo. As leis do Divórcio e da Família de 1910 estabeleceram a igualdade entre os cônjuges quanto às causas da separação e na sociedade conjugal. Entre outras coisas, a lei do Divórcio eliminou um artigo do Código Penal de 1886, segundo o qual a esposa adúltera era punida com prisão maior celular de dois a oito anos, enquanto o homem casado adúltero era condenado a uma simples multa que podia ir de três meses a três anos do seu rendimento.

O que nunca foi conseguido durante a I República foi o sufrágio feminino. Lembre-se que o regime republicano concedeu, em 1911, o direito de voto aos portugueses com mais de vinte e um anos que soubessem ler e escrever e aos chefes de família, sem especificar o sexo dos eleitores. Esse argumento foi utilizado por Carolina Beatriz Ângelo, que era viúva e chefe de família, para votar, mas, a partir de 1913, o regime republicano especificou que só os «chefes de família do sexo masculino» podiam eleger e ser eleitos.

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Segunda e última parte do texto de uma apresentação que fiz em Pinhel, a convite da respectiva Câmara Municipal, no passado dia 26 de Junho (Dia Internacional contra a Tortura). A primeira parte pode ser lida aqui

Para que serviam as prisões políticas, em Portugal?

A detenção política, em Portugal, combinou três lógicas. Uma primeira lógica de afirmação da autoridade, com carácter dissuasivo, preventivo e de intimidação, era utilizada para a população em geral. Sobre esta, pairava a ameaça do que poderia acontecer, caso se metesse em «política» e, por isso, as detenções e julgamentos eram noticiados oficiosamente na imprensa.

A segunda lógica de carácter correctivo era reservada aos que tinham sido «momentaneamente transviados» e, através do «susto» da prisão preventiva e correccional, ficariam vacinados para nunca mais terem a ousadia de actuar contra o regime. A larga maioria dos presos só permaneceram detidos durante os seis meses da prisão preventiva, apenas 15% foram levados a julgamento e cerca de 23% dos indivíduos julgados foram absolvidos, amnistiados, soltos ou apenas condenados a multas.

Por outro lado, cerca de 20% foram condenados a penas de prisão correccional até um ano e seis meses de prisão.

Finalmente, a terceira lógica, de neutralização, tinha como objectivo retirar do espaço público os dirigentes e funcionários dos partidos subversivos, nomeadamente os comunistas, de extrema-esquerda e de organizações de luta armada, através da prisão maior e das medidas de segurança. Cerca de 5,5% dos presos foram condenados a penas de dois anos de prisão maior e, nesse caso, apenas era contada metade do tempo de detenção preventiva cumprida, além de lhes ser habitualmente acrescida uma medida de segurança. Num universo de 12.385 presos, pouco mais de 4% dos detidos foram condenados a medidas de segurança, mas, entre estes, mais de 90% cumpriram entre um ano e três anos de cadeia a mais do que o tempo a que haviam sido condenados por sentença judicial.

A PIDE/DGS também usou e abusou da prisão preventiva, excedendo o seu prazo legal de seis meses. Num universo estudado de cerca de 1.800 presos, apenas cerca de 15% foram julgados dentro desse prazo e houve mesmo alguns, que esperaram, na cadeia, mais de quatro anos, até serem levados a julgamento. O facto de, em Portugal, as penas não serem de longa duração, como foi sempre apregoado pelo regime, não deve fazer esquecer que muitos detidos políticos acabaram por ficar muito tempo atrás das grades, devido às medidas de segurança.
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Primeira parte do texto de uma comunicação que fiz em Pinhel, a convite da respectiva Câmara Municipal, no passado dia 26 de Junho (Dia Internacional contra a Tortura).

Em Portugal, terminada a II Guerra Mundial, a polícia política ficou não só com um novo nome, passando a designar-se por Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE): pela primeira vez, com um quadro de funcionários e novos poderes, a PIDE centralizava no seu seio todos os organismos com funções de prevenção e repressão política dos crimes contra a segurança interna e externa do Estado, conservando a instrução preparatória dos processos respeitantes a esses delitos e ficando com a capacidade de determinar, com quase total independência, o regime de prisão preventiva.

PIDE/DGS, um «Estado dentro do Estado»?

Em Portugal, a PVDE/PIDE/DGS nunca deixou de responder perante Salazar, embora também, mais tarde, perante Caetano. Tal como o director da PVDE/PIDE, Agostinho Lourenço, também o chefe da PIDE/DGS, Fernando da Silva Pais, despachava com o ministro do Interior, mas também, e sobretudo, directamente com o chefe do governo.

Desse facto, bem como do de a PIDE nunca ter tido grandes veleidades de autonomia, nem ter participado em acções contra o regime, pode-se concluir que essa polícia não era um «Estado dentro do Estado». Parece ser, assim, mais correcta a ideia de que foi um instrumento central de um regime político oligárquico, longamente assente numa chefia ultra-centralizada de um ditador.

Ou seja, foi uma polícia que sempre defendeu o regime, cujos directores funcionaram enquanto correias de transmissões de Salazar, que, permanentemente informado, pelos directores da PIDE, conhecia a sua actuação e confiava nela. A PIDE foi tutelada pelo ministério do Interior e nunca teve a veleidade de se sobrepor a este, embora este ministério sempre lhe tenha também dado grande latitude de poderes e espaço de actuação.

Recebendo a colaboração de toda a administração pública e das outras polícias, a PIDE retribuía aliás os serviços prestado, através do papel crucial que teve no saneamento dessa mesma administração. Lembre-se que dependia de uma boa informação da PIDE, o emprego de um professor, de um médico ou de qualquer outro funcionário público.

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Já foi publicada a primeira parte de um resumo de um estudo académico sobre os tribunais políticos especiais que existiram em Portugal entre 1926 e 1974, realizado, por solicitação do Ministro da Justiça, por uma equipa de investigadores do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Universidade Nova de Lisboa, constituída por Inácia Rezola, Irene Pimentel, João Madeira e Luís Farinha e coordenada pelo historiador Fernando Rosas. Publica-se hoje a segunda e última parte do referido resumo.
 
As realidades do pós-guerra obrigam o regime a judicializar formalmente o sistema de justiça política e a fixar um enquadramento legal para as actividades da polícia política (agora Polícia Internacional e de Defesa do Estado, PIDE) e as funções dos novos tribunais políticos especiais, agora judiciais, os Tribunais Plenários de Lisboa e Porto (TP). Na realidade, tratou-se de revestir a continuação do arbítrio de um manto de legalidade formal. A PIDE continuou a fazer o que fazia, só que agora os seus inspectores eram equiparados aos juízes; os cidadãos continuaram a poder ser presos sem culpa formada e por tempo indeterminado e os réus condenados a penas de prisão indefinitivamente prorrogáveis (as “medidas de segurança”), mas passou a haver legislação que o permitia. Os TP eram os apêndices da polícia política, como antes os militares, e os julgamentos políticos uma farsa grotesca, atentatória dos mais elementares direitos de defesa, mas eram tribunais judiciais.

Em termos quantitativos, o padrão de funcionamento dos tribunais políticos especiais altera-se com o pós-guerra. Há então um relativo abrandamento no número médio anual de prisões políticas e de julgamentos políticos nos novos tribunais especiais, os TP. A política de prisões massivas torna-se mais pontual (no rescaldo da crise do regime no pós-guerra, 1947/49,na crise originada pelo “terramoto delgadista”, 1958/62). Em termos gerais, a repressão política é mais selectiva, quer pelo ambiente geral do pós-guerra, quer pelos períodos de refluxo que pautam, no rescaldo das crises, a acção das oposições. No período marcelista (1968/74), a quebra de julgamentos políticos é mais notoriamente evidente.

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Por solicitação do Ministro da Justiça, o historiador Fernando Rosas coordenou uma equipa de investigadores do Instituto de História Contemporânea (IHC) da Universidade Nova de Lisboa, constituída por Inácia Rezola, Irene Pimentel, João Madeira e Luís Farinha, que procedeu ao primeiro estudo académico sobre os tribunais políticos especiais que existiram em Portugal entre 1926 e 1974. Durante esse quase meio século do século XX português, funcionaram tribunais especialmente criados para julgar o que a Ditadura Militar e o Estado Novo consideraram como “crimes políticos e sociais” ou “crimes contra a segurança do Estado”. Os tribunais políticos especiais foram uma peça importante do sistema de repressão punitiva, progressivamente centrado na polícia política, que a Ditadura foi montando até 1933 e que a emergência do Estado Novo, a partir dessa data, institucionalizou duradouramente.

Foram de dois tipos os tribunais políticos especiais criados pela Ditadura Militar e o Estado Novo entre 1926 e 1974. Entre o golpe militar de 1926 e o fim da II Guerra Mundial, funcionaram, com um estatuto jurídico só estabilizado a partir de 1933, os Tribunais Militares Especiais. Era uma justiça militar que expeditivamente executava as prioridades persecutórias definidas pela PVDE. Com a derrota do nazi-fascismo no conflito mundial, a judicialização formal da justiça política fez parte do pacote adaptativo do regime salazarista aos “ventos da vitória” das democracias. Em 1945 surgiram, assim, os Tribunais Plenários, tribunais judiciais da confiança política do regime que nunca deixaram de funcionar como verdadeiro apêndice judicial da PIDE, sigla do novo nome com que foi crismada a polícia política no âmbito, também, das alterações essencialmente cosméticas do pós-guerra.

Acerca de cada um destes tipos de tribunais políticos especiais, o trabalho debruça-se sobre a conjuntura histórica em que surgiram e sobre a evolução dos seus regimes jurídicos e funcionamento; estabelece a lista dos réus e analisa as suas características sociológicas, bem como os tempos de prisão e as sentenças de que foram alvo. Apura ainda a lista dos juízes e de outros magistrados, estuda a sua actuação; faz a lista dos advogados de defesa escolhidos pelos réus e debruça-se sobre o seu papel na defesa dos direitos e liberdades fundamentais, nas mais difíceis e arriscadas condições. Finalmente, divulga-se, quer para o TME, quer para os TP, o decorrer, em concreto de alguns processos mais significativos.

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Pouco depois de receber o prémio Pessoa, passei de pessoa vulgar, a Persona, no sentido de me ter transformado numa máscara, por onde se esperava que saísse uma voz a manifestar posições públicas. De repente pediam-me a opinião sobre tudo e nada. Desde logo, recusei dizer qual era a minha cor preferida, o meu signo, se gostava ou não de café com leite de manhã ou um copo de whisky à noite, ou dar as minhas opiniões políticas sobre as primárias do Partido Democrata nos EUA ou sobre as vicissitudes do PSD.

Decidi apenas falar de história e de memória, do nosso passado recente ditatorial e, nesse sentido, dei prioridade a deslocações a escolas. Quase que me transformei numa caixeira viajante a quem perguntavam sobre a PIDE/DGS, o Estado Novo e a situação das mulheres durante a ditadura. E o certo é que – agora a sério – tive excelentes surpresas, totalmente contraditórias com o que consta sobre a Escola e os professores, nomeadamente de História.

Em todos os estabelecimentos de ensino aonde me desloquei, verifiquei o dinamismo dos professores de História, acompanhados pelo entusiasmo organizativo de alunos. Na Escola Secundária de Rio Maior, estava organizada uma exposição sobre o Estado Novo, com objectos e textos sobre o período provenientes das famílias dos alunos. Na Escola da Merceana, perto de Alenquer, os alunos tinham feito, com a professora, um «powerpoint» sobre a ditadura salazarista e o 25 de Abril de 1974. Em Évora, três alunos do 12.º ano da Escola organizaram eles próprios uma conferência, muito bem preparada.

Em todos os locais, os alunos tinham um rol de perguntas «em carteira», que nunca se repetiam, o que indicava que aquelas sessões para onde me tinham convidado apenas constituíam um culminar de outra espécie de trabalho prévio realizado. Em todas as escolas, sentia-se a curiosidade e a incredulidade relativamente a um passado recente, vivido pelos pais e avós. Entre os temas mais abordados, contavam-se a existência de informadores da polícia política, bem como a situação das jovens na Mocidade Portuguesa Feminina e a das mulheres, privadas de direito, no período até 1974. Para as alunas – estas eram de longe as que mais perguntas faziam – e os alunos, aquele passado tão recente parecia afinal outro mundo, bem longínquo.

Sei que provavelmente essas escolas constituem excepções, mas basta a sua existência para se perceber que em todo o lado onde há iniciativa, preparação, conjunção de esforços de professores e alunos, a História se torna em algo de apetecível. Em muitos casos, perguntavam-me como se investiga em Portugal. Ou seja, os alunos sentiam uma curiosidade renovada e até… a apetência pela investigação histórica. Sentia-se que, longe de ser uma «seca», a História surgia como um conjunto de histórias contadas e de memórias vividas a contribuírem para um sentido de identidade, baseada num passado comum, que reforçava a cumplicidade no presente.

Bem a propósito: