Muito trabalho nos requereu trazer o Duarte “ao partido”. Ele alinhava, comprava os materiais, votava “connosco” nos plenários e nas listas, mas de cada vez que se abeirava a concretização da filiação, o Duarte invocava a sua forte razão de resistência: “não quero ter chatices com a minha mulher” e, aí chegados, suspendia-se a sedução partidária porque não se pretendia escarafunchar os mistérios domésticos de cada um. Mas, após o 11 de Março (1975) e com a nacionalização da empresa, foi o próprio Duarte que tomou a decisão de pedir “a ficha”, fazendo questão de a requerer à sua chefia, um dos militantes mais antigos e activos na célula. Mas foi uma mera resolução formal pois não contassem com ele para qualquer participação cívico-revolucionária pós-laboral. Só acrescentou à sua rotina anterior de participação política o pagamento pontual das quotas. Era a forma, respeitável como qualquer outra, como ele geria as suas inclinações, entre os incêndios do PREC, mas sem “ter chatices com a mulher”.
No fim de tarde de 24 de Novembro (1975), a orientação veio rápida e sem dar margem para hesitações: “Chegou a Hora”. Tudo ia estar em jogo para se ganhar ou se perder. Não havia lugar para meias tintas. Ou se ia para o socialismo a sério ou se regredia para a longa noite. A sentença dilemática estava traçada. Portugal tinha a sina do tudo ou nada, fascismo ou socialismo real, democracia parlamentar burguesa é que não tinha cá cabidela (uma “impossibilidade” fartamente teorizada por Cunhal). Aquecida a luta de classes, a solução estaria agora nas espingardas. Pois, 1917 em Petrogrado, 1948 em Praga, etc e tal, lembram-se? Ou nós ou eles. Trazida pela controleira da zona, a instrução era para se saber rapidamente quem tinha feito a tropa mais a guerra colonial e em que especialidade. Levantamento feito, pelotão constituído em duas penadas. Tudo analisado e decidido de trinta e um de boca mas era o que se podia arranjar. É esta noite. Mais vale improvisar e atamancar que perder o comboio expresso da história. Vamos a isso. É esta noite. Ou nós ou eles. Antigo alferes miliciano, com os galões suplementares de ter andado na Guiné, calhou-me o comando do pelotão improvisado na minha fábrica. Que incluía o Duarte que tinha feito a guerra em Moçambique onde lidou com as chamadas armas pesadas de infantaria, ao qual, em termos de tarefas milicianas e revolucionárias, foi confiada a missão de lidar com a bazuca.
Os pelotões improvisados foram encaminhados para uma Escola Primária em Marvila, onde se foi chegando por vagas. No escurecer, as sombras dos vultos movem-se. Senhas e contra-senhas. A sede do PS local inquieta-se com a proximidade dos movimentos. O que é isto? Há emboscada? E lá teriam as suas informações da outra banda. Montam-se vigilâncias reforçadas dos dois lados. Vultos para cá, vultos para lá. No ginásio da Escola, aguarda-se. Esperar, aguentar. As armas de Braço de Prata vão chegar a qualquer momento, preparadas e prontas a disparar socialismo. Depois era só saber-se onde ficava o Palácio de Inverno a conquistar. Esperando o sinal do cruzador Aurora das terras lusitanas. E avançar, avançar. Os caboucos do Exército Vermelho lusitano estavam metidos dentro do terreno. Melhor, enterrados naquela Escola Primária de Marvila e em muitas outras trincheiras. Os dirigentes sabem o que fazem. São revolucionários experimentados, isto para eles é o b, á, bá. As horas passam. E ouvem-se os barulhos dos movimentos dos gajos do PS. Surgem os primeiros sinais de impaciência. O Duarte, desarmado de bazuca, insiste em ir para casa porque tinha a mulher em polvorosa. Aguenta que isto está quase. Não vais ficar fora do retrato do momento decisivo da história do proletariado português. “Não aguento nada, vou para casa, senão não consigo aturar a mulher”, insistia o Duarte. Calma, isto está por pouco. Vamos trocar as voltas aos gajos que se deixaram embalar com a história da retirada da ditadura do proletariado do programa. A burguesia vai ver como elas lhe mordem. Antes que nos mordam a nós. Agora só se pode ganhar ou perder. Não há direito a empates. Está mesmo a chegar o material de Braço de Prata. Depois é que vão ser elas. Ou nós ou eles. Lá fora, na escuridão, só se ouvem os barulhos dos gajos do PS. Repentinamente, a nova ordem chega, trazida por um “alto responsável” do Comité Local: “Camaradas, é preciso é calma, vamos todos retirar em grupos e sem dar nas vistas. Não é desta. Aqui não esteve ninguém. Ou, então, foi só um convívio de solteiros e casados. Fica para a próxima. Não há relógio que marque a hora da revolução. A ocasião soará. Mas não é desta.” O Duarte foi o primeiro a zarpar, rápido e direitinho, a tentar recuperar o sossego da mulher. Os outros foram saindo, evitando passar junto aos gajos do PS de Marvila. Pensa-se que os camaradas de Braço de Prata devem-se ter cortado. Mas se eles se baldaram, houve muitas mais baldas. Se calhar, foi o proletariado, pela voz dos que em seu nome falavam, que tinha mais olhos que barriga.
Demorou-me tempo até perceber quanto foi bom para o regime, a democracia e para todos, nós e eles, que as tais armas de Braço de Prata não tivessem chegado até à Escola Primária de Marvila na noite de transição para 25 de Novembro de 1975. Ali e noutros poisos onde se aqueciam os motores da guerra civil. Até porque não consigo imaginar como é que o Duarte ia acertar os seus tiros de bazuca com a mente perturbada pelo desatino da mulher.
(A partir de texto já publicado no blogue Água Lisa.)
Terça-feira, 06.Abr.2010 at 06:04:17
é meu amigo vcs comunistas vcs teem sempre razao mas a historia nao fala isso só sei que vale mais um comunista sozinho do que um milhao de qualquer outro partido sei que vcs sao ditadura e brava tanto que o comunismo acabou no mundo ou melhor faliu e fui abraços nunca fui comunista nem outro partido sempre vivi com com a politica que o pais tinha ok
Quinta-feira, 08.Abr.2010 at 08:04:56
e sabe quem foi esse homem se me nao engano foi um senhor chamado jaime neves porque o senhor alvaro cunhal queria uma ditadura esquerda que foi muito tarde promovido a general
Segunda-feira, 12.Abr.2010 at 08:04:06
Excelente post.
es a partir de memorias como esta que se puede reconstruir la densidad de las vivencias revolucionarias de 1975.
Segunda-feira, 12.Abr.2010 at 01:04:22
Não resisti a comentar este “post”.
Também eu me vi metido naquele “assado”, não consigo já recordar se na noite de 24 para 25 ou de 25 para 26, mas recordo-me bem de que estava já decretado o recolher obrigatório; aliás, essa circunstância foi o motivo indicado para justificar a não entrega das munições, a qual (não entrega) fez com que tivesse abortado o “ataque” ao quartel-general da reacção, que, já com as armas prontas, o grupo que eu capitanearia (!!!), numa coligação inter-partidária, se aprestava para levar a cabo.
Muita gente se “cortou”, naquela noite. Felizmente. Evitou-se um massacre, e, a não ter sido assim, com toda a probabilidade, eu não estaria aqui para o recordar.
O 25 de Novembro permanece como o mais obscuro episódio do PREC. O papel do Partido Comunista, naqueles dias em que a coluna militar sul-africana que esteve às portas de Luanda subitamente recuou, está carregado de enigmas. Tal como a “reviravolta” dos paraquedistas.
De todo o modo, é minha convicção que, apesar de passados 35 anos sobre aqueles sucessos, é cedo ainda para se inventariarem factos e reconstituirem-se, historicamente, aquelas horas. Há demasiadas personagens envolvidas, algumas delas figuras de primeiro plano na presente vida política e social do nosso país.
E há segredos que, como calculo que se passará com outras pessoas, levarei para a cova.
Uma palavra de apreço para o “recorte” literário deste “post”, que tem o mérito de nos impedir de esquecer que, por dentro da frieza dos factos históricos, é sempre a vida, concreta e real, que pulsa.
Terça-feira, 13.Abr.2010 at 03:04:16
Excelente post. Em todos os sentidos.
Terça-feira, 20.Abr.2010 at 12:04:10
Boa prosa meu malandro. Empolgante. Desconhecia isto tudo ou quase. Abraço
Quarta-feira, 21.Abr.2010 at 08:04:08
João Tunes,
ando a investigar este período e gostaria de obter dados mais precisos sobre estes acontecimentos. Importa-se de, se o achar necessário sem mecionar nomes de pessoas, dar-nos mais precisões?
Tratava-se dos CDRs, da FUR, ou de um organismo ‘militar’ do PCP?
Estou muito às escuras neste assunto. É que sendo, na altura, militante há mais de dez anos do PC, nunca me apercebi de tal organização. Lembro-me de uma incaracterística reunião de um anémico CDR sem continuação, e da desmobilização na noite de 24.11 do’pessoal’ que se amontoara na célula dos bancários, na Rua dos Fanqueiros.
Sempte tive a sensação que o PCP teve, então, uma actuação aventureira e oportunista, e que a terminou por uma traição aos militantes que estavam dispostos a ir para o combate, e a quem prometera o socialismo.
Senti-me traído. E esse sentimento nunca se esquece, tem consequências.
Cumprimentos.
Armando Cerqueira
Quinta-feira, 22.Abr.2010 at 01:04:24
O texto não pretende, nem para esse plano se inclinará, ser uma análise ou julgamento à intervenção do PCP no 24/25 N 75. Apenas procuro reflectir e partilhar o que foi a minha experiência concreta nessa noite e sem ficção, apenas vendo-a através da distância no tempo e no envolvimento. A convocação, apressada e atamancada, totalmente voluntarista e aventureira, mas efectiva e comprometendo o PCP nos acontecimentos do 25N, veio por via orgânica e através da estrutura partidária do PCP na 7ª Zona (Marvila, Beato, Olivais) do Comité Local de Lisboa, a que pertencia a célula da empresa em que então trabalhava. E a concentração dos “pelotões” deu-se numa escola primária em Marvila. Pela minha parte, não considero que “terminou por uma traição aos militantes que estavam dispostos a ir para o combate, e a quem prometera o socialismo” mas antes que a correlação de forças ou a força do bom senso, evitou uma tragédia.
Quinta-feira, 22.Abr.2010 at 09:04:15
traição, correlação de forças, bom senso… talvez de tudo um pouquinho, mas tudo isso junto ainda assim estás apenas morno na aproximação à verdade.
ter-se-á que ver mais longe. no meu comentário anterior, deixei uma pista… que é mesmo isso, apenas uma pista.
uma coisa é certa: naquela noite, e no dia que se lhe seguiu, muita gente, e não apenas do pcp, se sentiu traída.
Quinta-feira, 22.Abr.2010 at 11:04:24
Caro Miguel Teotónio Pereira,
Pelo que percebi, a sua tese é que houve, para além dos “peões” daqui, “torres”, “bispos”, “cavalos”, “reis” e “rainhas”, alguns deles com alto coturno geoestratégico, a jogarem e a misturarem tabuleiros em acontecimentos cruzados. Ultrapassa-me o conhecimento e o entendimento, mas não estranhando que tenha sido assim, para onde aponta a sua pista. Eu nunca passei de “militante de base” e cumpridor do centralismo democrático, portanto nunca querendo saber mais do que o estritamente necessário e que significava saber sempre pouco ou nada, por confiança cega na alta direcção que lia os signos e os livros sagrados do marxismo-leninismo, trocando sinais de fumos com o Além. Como não celebrei, com outros ou comigo, qualquer “pacto de silêncio”, sobre o PREC falo do que vivi, o que é curto para interpretar mas suficiente, em alguns aspectos, para contrariar mentiras, mitos e tabus, difundidos para alimentar a “história conveniente”, sobretudo servindo, ainda hoje, um partido com representação parlamentar e pretendendo ser dono da esquerda, das lutas e das ruas, justificando-se ideologicamente, face ao seu declínio eleitoral, na alimentação da miragem revolucionária. E a minha experiência desmente uma versão “oficial” de que o PCP nada teve a ver com o 25 N, coisa entre a “extrema-esquerda” e a “direita”, até porque o PCP nunca admitiu que tinha uma organização para o sector militar e que se movia organicamente dentro do MFA, muito menos revelando as formas, as influências e o nível de penetração. Aliás, tanto quanto sei, o conhecimento em toda a sua extensão e cordelinhos da penetração do PCP no MFA terá ido com Cunhal para dentro do crematório do Alto de São João, pois se havia outros dirigentes (e vários – Jaime Serra, Raimundo, Blanqui, pelo menos – para garantir que cada um só sabia da sua “parte”), Cunhal controlava não só estes dirigentes como algumas “figuras militares” directa e exclusivamente e só ele conhecia toda a militância e toda a organização entre os militares.
Como já disse, o meu textozinho não pretendeu ir por aí, para onde me falta saber e arcaboiço. É apenas uma partilha de memória e experiência, localizada no alcance. E, à distância, uma nota dos paradoxos que qualquer revolução arrasta, nomeadamente um alívio retroactivo por ter falhado aquele “levantamento armado”, o que, na época, com a ingenuidade própria dos ignorantes e peões das nicas, vivi como uma enorme frustação de ter falhado, aqui, a oportunidade de participar na conquista do nosso Palácio de Inverno. Não permitindo que outros digam que eu não estive onde estive.