
O que se segue é a narrativa de uma prisão atípica, a de uma das redactoras deste blogue, há exactamente quarenta anos. Diana Andringa entrava cedo num emprego distante de casa. Quando a PIDE a procurou, já tinha saído. Teve pois tempo de se preparar para a prisão. Foi uma primeira vantagem, mas não a única: histórias de amigos presos, visitas a Caxias, ajudavam a evitar-lhe o choque do desconhecido; a sua ligação, mais afectiva do que efectiva, a uma organização, encaixava mal no quadro mental dos inquiridores; mas, sobretudo, confiava em que – tendo o director da PIDE a filha em Cuba – as suas ligações familiares travariam eventuais excessos policiais. Não tendo que enfrentar as torturas bárbaras que tantos outros suportaram, pôde verificar algo que a tortura impedia de observar: que, privada dessa arma, a polícia política se tornava ineficaz e até, por vezes, caricata. O que, a seus olhos, torna ainda mais sórdida a utilização da tortura e mais dignos de respeito aqueles que a sofreram. Joana Lopes
O carro, um Wolkswagen, passou do outro lado do largo onde esperava o autocarro. Contornou-o na direcção da rua onde morava. Pareceu-me reconhecer um dos homens no interior: o chefe de brigada Inácio Afonso. Avistara-o durante uma ida à PIDE, na António Maria Cardoso, requerer o direito de visitar o então meu namorado.
O autocarro que chegava ocultou-me da vista dos passageiros. Entrei, o coração a bater mais rápido que o habitual: há muito tempo que era notória a vigilância à nossa casa, dez dias antes fôra preso o Álvaro. Teria chegado a minha vez?
O trajecto até à agência de publicidade onde trabalhava levava cerca de uma hora. Fui passando em revista as possibilidades: ir trabalhar, como se nada se passasse, e aguardar o desenrolar dos acontecimentos? Apear-me a meio do percurso, ocultar-me durante algum tempo, deixar o país? Mas esconder-me onde, se aqueles que mais facilmente me acolheriam poderiam estar também vigiados e ser postos em perigo pelo meu aparecimento? E se a vigilância sobre nós durava há tanto tempo e era tão ostensiva, seria possível que os meus dados não estivessem já em todas as fronteiras? Talvez, no entanto, a PIDE fosse menos eficiente do que pensávamos… Mas se abandonasse o país e não pudesse mais voltar, seria isso mais útil do que arriscar a prisão, uma vez que não fazia parte de nenhuma organização e não tinha qualquer importância, nem informações que pudessem fazer perigar a segurança de outros? E se o carro tivesse passado ali por simples coincidência, ou reforço de vigilância, ou intimidação, fugir não iria piorar a situação dos que ficassem?
Ao fim de uma hora a pesar prós e contras, acabei por me apear na paragem do costume. Olhei em volta: não vi nada de inabitual. Entrei na agência. Estava há poucos minutos no gabinete quando o telefone tocou. Era a Nita: “A Zé foi presa. A mãe dela foi a tua casa avisar-te e a PIDE estava lá, prenderam também o Zé.”
As dúvidas voltavam: que fazer? Sabia que vários dos meus colegas, se não todos, estariam dispostos a ajudar-me, mas tinha o direito de os pôr em risco? Valeria a pena? Certamente a PIDE estaria já a vigiar o edifício…
Telefonei ao José Augusto Rocha: “A PIDE está em minha casa. Devo estar a ser presa. Posso deixar-te uma procuração?” Surpreendido, talvez ainda ensonado, o Zé Augusto explicou-me o que fazer. Escrevi a procuração e deixei-a à Maria, com o Bilhete de Identidade necessário ao reconhecimento da assinatura. Expliquei-lhe tudo e pedi-lhe que a entregasse depois à minha mãe, a quem deveria também confirmar a minha prisão. O Plínio, que dividia o gabinete comigo e era familiar de um dirigente da PIDE, abriu as suas gavetas aos papéis que, mesmo inócuos, a polícia poderia querer apreender-me. Desci as escadas e pedi à recepcionista que me avisasse quando os agentes entrassem à minha procura. Telefonei então à minha mãe, pedindo-lhe que aguardasse o telefonema de confirmação da Maria para me levar à sede da PIDE, na António Maria Cardoso, um pijama e uma escova de dentes. Liguei para o emprego do meu pai e pedi à secretária que lhe desse a notícia com cuidado, para evitar um possível problema cardíaco. Sem saber que mais fazer, arrumei a secretária. O telefone tocou e ouvi a voz soluçada da recepcionista: “Já entraram. Foram à Secção de Pessoal.”
Fui à casa de banho. Quando regressava, vi-os chegar: o homem do carro e uma mulher, a também chefe de brigada Madalena Oliveira. Traziam um mandado e tinham avisado a Secção de Pessoal. Ninguém meu conhecido fora preso com tamanha legalidade.
Pedindo desculpa pelo incómodo ao Plínio, passaram rapidamente busca à minha secretária, detendo-se a observar alguns exemplares do Le Monde diplomatique. A seguir pediram-me que os acompanhasse.
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