O Zé Luís foi um dos primeiros heróis que conheci. Meses antes de eu chegar à Faculdade, fora apanhado pela polícia durante uma distribuição de comunicados, resistira à prisão e fora baleado. Foi aos gritos de “Liberdade para o Saldanha Sanches” que pela primeira vez participei numa manifestação, no dia do seu julgamento.

Condenado à prisão já sofrida de dez meses, saíu imediatamente. Algum tempo depois, voltaria a ser preso, por poucos dias, na Cantina da Cidade Universitária, e expulso da Universidade por quatro anos.

Passou então à clandestinidade e voltou a ser preso e condenado a três anos de prisão e aplicação de medidas de segurança. Reencontrei-o durante as minhas visitas ao Alexandre Oliveira, em Peniche. Por vezes ouvia, do outro lado do vidro, as suas gargalhadas inconfundíveis.

Depois do 25 de Abril, durante as perseguições ao MRPP, passou alguns dias em minha casa. Era um clandestino exemplar: ajudava na cozinha, lavava a louça e, embora tivesse uma arma, deixava-a fora do quarto que partilhava com a minha filha de poucos meses.

No início dos anos 90, entrevistei-o para a série “Geração de 60”. Tinha mudado bastante, mas afirmava a sua alegria ao olhar para trás e saber que tinha participado na luta para mudar o país: “Acho isso uma alegria permanente na vida de uma pessoa.” Mesmo se o impediu de outro passado: “Namorar, sair à noite, beber um copo de vez em quando.” “Mas”, terminou, “a vida é sempre uma coisa finita, há sempre um número infinito de formas de a usar bem e só se pode usar de algumas formas, não é?”

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Pela mão de um amigo, recebo o link para um filme que não tinha visto: “Quem é o Ricardo?”, realizado por José Barahona, com argumento e diálogos de Mário de Carvalho.

Chega-me um dia depois do 25 de Abril, um dia depois de ter ouvido um velho resistente antifascista dizer-me – talvez com mais gentileza do que verdade – que tinha aprendido muito ao ouvir os depoimentos dos africanos presos na Campo de Concentração do Tarrafal entre 1962 e 1974, que recolhi em “Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta”. E gostaria de o ter visto projectado ontem, caída a noite, na Rua António Maria Cardoso, no muro em frente à sede da PIDE, finalmente assinalada com uma placa, para que se não esqueça os muitos que por ali passaram e, sobretudo, o que foi o regime deposto a 25 de Abril de 1974.

Lamento só o ter visto hoje – mas, mesmo correndo o risco que todos o conheçam já, não quero deixar de o partilhar convosco. E de agradecer ao José Barahona, ao Mário de Carvalho e à Cinequanon por o terem feito.

Em Abril de 61 tinha 13 anos.

Nascida em Angola, seguia com inquietação as notícias que dali chegavam, acompanhadas de fotografias de cadáveres decepados, mulheres fugindo com crianças nos braços. Uma ideia terrível: podia ter sido eu, podia ter sido a minha mãe ou o meu pai, a minha irmã, uma das minhas maiores amigas. Outra ainda: não tenho direito à terra em que nasci. E a tentativa de encontrar explicações, de compreender uma violência à partida incompreensível. Recordações de outras violências, comentários, exemplos. E a evidente perturbação dos adultos a aumentar a minha, a tornar difícil qualquer pergunta, qualquer resposta.

Angola, os acontecimentos no Congo, a prisão e depois a morte de Lumumba, a violência, a dúvida, a insinuarem-se entre as aulas, os livros escolares, as conversas à mesa, as próprias brincadeiras no quintal.

E, de repente, Gagarine. O primeiro homem no espaço.

“Um rosto extraordinariamente jovem e simpático, sob o capacete de couro maleável dos aviadores soviéticos”, assim o descrevia a notícia do Diário de Lisboa, e continuava: “Tem olhar vivo e inteligente, nariz direito, ligeiramente grosso, junto à testa, como o dos pugilistas, lábios carnudos e bem desenhados. Gagarine tem uma covazinha quase imperceptível no queixo.”

Essa covazinha no queixo aproximava-nos, tornava-mo quase familiar. E o primeiro homem a viajar no espaço, o filho de um carpinteiro, a quem a invasão alemã interrompera os primeiros estudos, devolvia a alegria e o sentido a um mundo perturbado. Já não olhava para a terra lembrando-me da minha, manchada de sangue, mas o céu, esse céu onde Gagarine dera a volta à Terra em “exactamente 108 minutos” (volto a citar o DL). A minha cadela, cúmplice de todos os minutos, já há algum tempo era, de quando em vez, rebaptizada de Laika. E eu, eu, por esses dias, adoptei um nome especial, que me permitia recriar com ela, no quintal, fantásticos passeios pelo espaço: Yuri Gagarine, pois claro.

Então eu era o herói e a minha cadela só falava russo…

Ousado e com conteúdos históricos fundamentais:
talvez todos os alunos devessem ser obrigados a ver o filme
de Susana de Sousa Dias (Enric Vives-Rubio)

 
Público, 29.03.2010 – por Vanessa Rato

«Não foi o filme a vencer cá o DocLisboa, o grande evento português para o documentário, mas foi o filme a ir “lá fora” e a voltar a casa com o Grande Prémio do festival Cinéma du Réel (Paris), um dos mais importantes do mundo. Estamos a falar de “48”, de Susana de Sousa Dias, uma aproximação de 93 minutos ao que foram os anos da ditadura fascista portuguesa e ao que esta implicou para os que lhe resistiram.

Estamos a falar, também, daquele que foi “provavelmente o mais ousado e vanguardista” objecto cinematográfico a passar pela edição de 2009 do Doc (palavras de Novembro último de Sérgio Tréfaut, o director do festival).

No Cinema du Réel, o prémio é de oito mil euros, mas, como sempre, há um mundo para lá do retorno financeiro – a começar pelo reconhecimento e a visibilidade acrescida. “O que é que posso dizer? Estou muito contente. É isso, basicamente”, dizia ontem ao P2 a realizadora. “Posso acrescentar que fiquei muito surpreendida com a muito boa adesão não só de profissionais -o júri, claro, outros realizadores… – mas também do público, em geral. Não é um filme, à partida, muito fácil.”»

Continuar a ler aqui.

Como nos lembrou o excelente título do filme de Beth Formaggini, a melhor forma de honrar a memória é não a atraiçoar no dia a dia.

Por isso, em vésperas do tradicional jantar de aniversário da crise académica de 62, aqui trago uma notícia sobre o Dia do Estudante, 48 anos depois.

 
Assunto: 24 de Março, Dia do Estudante

Boa noite,

Venho por este meio informar que no próximo dia 24 de Março, Dia do Estudante, haverá uma manifestação em Lisboa que juntará estudantes dos distritos de Lisboa e Setúbal. Esta, organizada pela Delegação Nacional de Associações de Estudantes do Ensino Secundário e Básico, tem início marcado para as 10h na praça do Saldanha, devendo estar pronta para partir por volta das 11h00, e percorrerá a Av. da República até à Av. 5 de Outubro, onde se concentrará à frente do Ministério da Educação.

Já lá, alguns estudantes e Associações de Estudantes de várias escolas organizarão um protesto teatral simbolizando a falta de possibilidade de participação democrática nas escolas. Pretende também apelar aos alunos conscientes em todo o país que se organizem na luta pelos seus direitos. A ideia geral desta acção é montar uma sala da aula em frente ao Ministério, os seus pormenores só poderão ser conhecidos na altura.

As razões para estes protestos são várias, mas podem resumir-se ao combate aos ataques que têm sido feitos a um ensino que queremos que seja realmente público, gratuito e democrático:

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   Carta a Mário Pinto de Andrade – Clicar para ler
   (Arquivos da Fundação Mário Soares)

 
Conheci-a em S. Tomé, no início dos anos 90, quando a entrevistei para a série “Geração de 60” – mas já há muito conhecia o seu nome e alguns dos seus poemas.

Filha de uma professora primária e de um funcionário dos Correios, Alda do Espírito Santo vem, em meados da década de 40, estudar para Lisboa, onde priva de perto com alguns dos futuros dirigentes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas de Áfica, como Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade e Agostinho Neto.

A casa onde vive em Lisboa, no nº 37 da R. Actor Vale, é, aliás, um dos centros de reunião dos jovens patriotas africanos em Portugal. Aí se passa grande parte da actividade do Centro de Estudos Africanos, idealizado por Francisco Tenreiro e Mário Pinto de Andrade, aí decorrem as regularmente palestras que, sobre temas tão diversos como a Linguística, a Geografia ou a História, visavam uma consciencialização cultural e política em torno das questões coloniais, do assimilacionismo e da defesa do colonizado.

Mário Pinto de Andrade explicava com ironia as vantagens que a casa da família Espírito Santo oferecia aos activistas anti-coloniais:

“As actividades no 37 da rua Actor Vale tinham um ar de família. Primeiro, porque se passava numa família conhecida, a família Espírito Santo. E todos os pretos eram família, não é? E era ao Domingo, ao Domingo à tarde. Estava camuflado por reuniões de pretos em família. Na família Espírito Santo. Não levantou, durante algum tempo, nenhuma suspeita da parte dos informadores que pululavam certamente por essas ruas da Praça do Chile. Mas, quando em 1953 se operou a resistência dos santomenses às medidas do governador Carlos Gorgulho, sobre o trabalho obrigatório dos nativos, aí sim. Houve evidentemente uma revolta, conhecida, que se materializou no massacre de 3 de Fevereiro, dos primeiros dias de Fevereiro de 1953, e os elementos da família Espírito Santo foram presos e houve aí uma pausa nas nossas actividades. Foi então que, retrospectivamente, a polícia fez a relação entre as reuniões de Domingo, culturais e a resistência dos santomenses em Fevereiro de 1953.”

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Notícia no Diário de Lisboa, 10/3/1933, que pode ser lida aqui em formato pdf.

(Arquivo da Fundação Mário Soares)

Melhor documentário Festival do Rio 2007 pelo júri popular e do pelo júri da ABDec. Direção: Beth Formaggini Produção 4Ventos / GTNM-RJ
Exibido e apresentado pela realizadora, em Lisboa, no passado dia 6 de Março, durante o seminário «Que fazer com estas memórias?»

 
Um texto de Edu Passos, membro do Grupo Tortura Nunca Mais-RJ

 
É preciso dizer da alegria de assistirmos o filme Memória para uso diário. O GTNM tem agora um filme que documenta a sua luta, que dá a imagem de seu movimento. O cine documentário talvez seja mesmo o meio apropriado para acompanhar e expressar a militância de um movimento social. Por quê? Porque o cinema é imagem-movimento – um estranho movimento, é verdade, já que é produzido por fotogramas, por uma série de quadros que postos lado a lado em um certo ritmo dão a sensação do movimento: um falso movimento? Do ponto de vista da experiência subjetiva não há diferença entre movimento real e falso movimento. O que assistimos na tela experimentamos como movimento. Vivemos como um movimento.

Por isso o cinema pode ser tão diferente da fotografia: a foto muito frequentemente quer registrar, quer dar testemunho de uma realidade vivida no passado, deixada no passado. Dessa realidade passada, a foto pode ser como um monumento que aponta para trás, que indica o que já era (um álbum de fotografia tem sempre um aspecto nostálgico, triste, até mesmo melancólico). O cinema, por outro lado, mesmo quando é documentário, porque é imagem-movimento editada, cria aquilo de que trata, sendo menos um retrato do que uma versão do passado. É o caso do documentário Memória para uso diário que vai ao passado sem olhar para trás (tal como Orfeu), recuperando imagens de uma história só vivida e não narrada (grande mérito do trabalho de pesquisa das imagens de arquivo). O filme faz o gesto da abertura dos arquivos, nos indicando que não basta abri-los, sendo ainda preciso completar a tarefa contando uma outra história. O filme faz o gesto e registra o gesto como este movimento tão delicado das mãos de Lola e Cléa ao folhear o passado. Só o cinema pode ter a realidade do gesto, acompanhando-o ao mesmo tempo em que o reinventando. Neste sentido, o cine documentário não está no tempo passado, não tem a nostalgia do vivido. Ele está neste tempo da invenção que é o tempo do porvir, do que poderá ser, não do que já era, mas do que já é. Do que já é como potencialidade, como abertura para outras realidades possíveis. No documentário filmamos o futuro, ou melhor, filmamos no horizonte do futuro.

Como pode ser um filme sobre a memória? O que este filme quer nos dizer quando afirma ser um documentário sobre a memória? O seu título nos dá uma pista: Memória para uso diário. Fala-se de memória enquanto uso. Está se indicando que há um sentido pragmático da memória. Daí as perguntas: para quê serve a memória? Para quem serve esta memória? O GTNM desde 1985 tem feito estas perguntas, indicando que há uma luta a ser travada no campo da memória. Há uma história oficial contada, há uma versão hegemônica acerca das lutas, sejam as lutas de resistência ao terrorismo de Estado durante os 20 anos da ditadura militar no Brasil, sejam as lutas atuais, tão cotidianas, que transferem a tecnologia da violência daqueles tempos para as periferias pobres da cidade. Dar uma outra versão para os eventos vividos é não só buscar reparação aos atingidos pela violência do Estado, é não só denunciar e levar ao julgamento os responsáveis pela violação dos direitos humanos, é, sobretudo, poder ser protagonista na narrativa da história, é poder também dar a sua versão, é poder dar um outro sentido para o passado, apostando em outros mundos possíveis, apostando no futuro. Uma memória que aponta para o futuro.

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Entre os países da CPLP, para lá da Língua e da História comuns, há um traço de união que, embora muito próximo de nós em anos, é normalmente esquecido: a tortura sofrida pelos seus povos sob regimes de ditadura, fossem estes nacionais, como nos casos de Portugal e do Brasil, colonizadores, como nos casos dos países que atingiram a independência em 1974/75, ou invasores, como no caso de Timor-Leste.

E, no entanto, essa é uma memória traumática que urge enfrentar, não apenas pelo que representa para os que a sofreram, quer pelo que dela se prolonga, muitas vezes, numa desatenção aos Direitos Humanos indigna de povos que por eles se bateram em condições de extrema dificuldade.

É no sentido de pensar essa memória, não apenas enquanto passado, mas enquanto sombra pesando sobre o presente, que a Associação Movimento Cívico Não Apaguem a Memória (NAM) e o Centro de Estudos Sociais (CES-Lisboa) entenderam levar a cabo, em Lisboa, um Seminário subordinado ao tema “Que fazer com estas memórias?”, a ter lugar nos próximos dias 5 e 6 de Março de 2010, no CES-Lisboa (Picoas Plaza, R. Viriato, perto a Maternidade Alfredo da Costa, do jornal Público e do hotel Sheraton; no 1º andar, sobre o pátio com restaurantes, pintado de vermelho e com grandes letras a dizer CES.).

Queremos ouvir testemunhos de quem sofreu a tortura, comentários de médicos que trataram os torturados e de cineastas que recolheram a sua memória.

Queremos que a memória não se perca, para que o futuro seja melhor.

Programa detalhado e definitivo, e mais informação, aqui.

Em qualquer outro, quem não se sentiria honrado de viver numa rua histórica, uma rua em que, nesse “dia inicial, inteiro e limpo” de que falava Sophia (*), houve pessoas que deram a vida, pessoas que foram feridas, para exigir o fim da polícia política?
Quem não gostaria de ter, na sua rua, uma placa que dissesse o nome desses lutadores pela Liberdade, que lembrasse que ali – tão perto e tão longe da polícia política portuguesa, na Embaixada do Brasil – esteve asilado o General Sem Medo que se propunha, se eleito Presidene da República, demitir Oliveira Salazar? Quem não se bateria por as ter, bem à vista, no local que habita?
Em Portugal, no entanto, essas memórias, longe de orgulharem, envergonham. Jovens mortos pela Liberdade, militares refugiados para continuarem a luta contra o poder autoritário, em vez de inspirarem, incomodam. E vá de, sornesmente, escamoteá-los, evitando ou escondendo as placas que os recordam. Sem perceber que, ao fazê-lo, escolhem para a sua publicidade o campo pouco glamouroso dos vencidos.
Um cínico diria: “O problema já não é político, mas de marketing!”
Alguém poderia tentar explicar isso à imobiliária?

 
(*) «Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitámos a substância do tempo.»

O que se segue é a narrativa de uma prisão atípica, a de uma das redactoras deste blogue, há exactamente quarenta anos. Diana Andringa entrava cedo num emprego distante de casa. Quando a PIDE a procurou, já tinha saído. Teve pois tempo de se preparar para a prisão. Foi uma primeira vantagem, mas não a única: histórias de amigos presos, visitas a Caxias, ajudavam a evitar-lhe o choque do desconhecido; a sua ligação, mais afectiva do que efectiva, a uma organização, encaixava mal no quadro mental dos inquiridores; mas, sobretudo, confiava em que – tendo o director da PIDE a filha em Cuba – as suas ligações familiares travariam eventuais excessos policiais. Não tendo que enfrentar as torturas bárbaras que tantos outros suportaram, pôde verificar algo que a tortura impedia de observar: que, privada dessa arma, a polícia política se tornava ineficaz e até, por vezes, caricata. O que, a seus olhos, torna ainda mais sórdida a utilização da tortura e mais dignos de respeito aqueles que a sofreram. Joana Lopes

   
O carro, um Wolkswagen, passou do outro lado do largo onde esperava o autocarro. Contornou-o na direcção da rua onde morava. Pareceu-me reconhecer um dos homens no interior: o chefe de brigada Inácio Afonso. Avistara-o durante uma ida à PIDE, na António Maria Cardoso, requerer o direito de visitar o então meu namorado.

O autocarro que chegava ocultou-me da vista dos passageiros. Entrei, o coração a bater mais rápido que o habitual: há muito tempo que era notória a vigilância à nossa casa, dez dias antes fôra preso o Álvaro. Teria chegado a minha vez?

O trajecto até à agência de publicidade onde trabalhava levava cerca de uma hora. Fui passando em revista as possibilidades: ir trabalhar, como se nada se passasse, e aguardar o desenrolar dos acontecimentos? Apear-me a meio do percurso, ocultar-me durante algum tempo, deixar o país? Mas esconder-me onde, se aqueles que mais facilmente me acolheriam poderiam estar também vigiados e ser postos em perigo pelo meu aparecimento? E se a vigilância sobre nós durava há tanto tempo e era tão ostensiva, seria possível que os meus dados não estivessem já em todas as fronteiras? Talvez, no entanto, a PIDE fosse menos eficiente do que pensávamos… Mas se abandonasse o país e não pudesse mais voltar, seria isso mais útil do que arriscar a prisão, uma vez que não fazia parte de nenhuma organização e não tinha qualquer importância, nem informações que pudessem fazer perigar a segurança de outros? E se o carro tivesse passado ali por simples coincidência, ou reforço de vigilância, ou intimidação, fugir não iria piorar a situação dos que ficassem?

Ao fim de uma hora a pesar prós e contras, acabei por me apear na paragem do costume. Olhei em volta: não vi nada de inabitual. Entrei na agência. Estava há poucos minutos no gabinete quando o telefone tocou. Era a Nita: “A Zé foi presa. A mãe dela foi a tua casa avisar-te e a PIDE estava lá, prenderam também o Zé.”

As dúvidas voltavam: que fazer? Sabia que vários dos meus colegas, se não todos, estariam dispostos a ajudar-me, mas tinha o direito de os pôr em risco? Valeria a pena? Certamente a PIDE estaria já a vigiar o edifício…

Telefonei ao José Augusto Rocha: “A PIDE está em minha casa. Devo estar a ser presa. Posso deixar-te uma procuração?” Surpreendido, talvez ainda ensonado, o Zé Augusto explicou-me o que fazer. Escrevi a procuração e deixei-a à Maria, com o Bilhete de Identidade necessário ao reconhecimento da assinatura. Expliquei-lhe tudo e pedi-lhe que a entregasse depois à minha mãe, a quem deveria também confirmar a minha prisão. O Plínio, que dividia o gabinete comigo e era familiar de um dirigente da PIDE, abriu as suas gavetas aos papéis que, mesmo inócuos, a polícia poderia querer apreender-me. Desci as escadas e pedi à recepcionista que me avisasse quando os agentes entrassem à minha procura. Telefonei então à minha mãe, pedindo-lhe que aguardasse o telefonema de confirmação da Maria para me levar à sede da PIDE, na António Maria Cardoso, um pijama e uma escova de dentes. Liguei para o emprego do meu pai e pedi à secretária que lhe desse a notícia com cuidado, para evitar um possível problema cardíaco. Sem saber que mais fazer, arrumei a secretária. O telefone tocou e ouvi a voz soluçada da recepcionista: “Já entraram. Foram à Secção de Pessoal.”

Fui à casa de banho. Quando regressava, vi-os chegar: o homem do carro e uma mulher, a também chefe de brigada Madalena Oliveira. Traziam um mandado e tinham avisado a Secção de Pessoal. Ninguém meu conhecido fora preso com tamanha legalidade.

Pedindo desculpa pelo incómodo ao Plínio, passaram rapidamente busca à minha secretária, detendo-se a observar alguns exemplares do Le Monde diplomatique. A seguir pediram-me que os acompanhasse.

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Por ocasião de mais um aniversário da morte de Amílcar Cabral.

 
Aqui, «Amílcar Cabral» pelo grupo Korda Skrabu Kauguiamo

Um vídeo com declarações de Amílcar Cabral. Clique na barra:

retrouver ce média sur www.ina.fr

ou ver excertos legendados em português aqui.

 
Crónica publicada no jornal Público em Janeiro de 1993:

Para a gente que, no início dos anos 60, frequentava a Casa de Estudantes do Império – e, depois do seu fim, se refugiou nos cafés mais próximos, como a Mimo ou o Rialva, o nome de Amílcar Cabral surgia como quase mitológico. Talvez por isso, pelas conversas e histórias em seu redor, a sua morte causou-me, não só a natural indignação perante o assassínio de um grande dirigente, mas também a mágoa de quem perde um amigo que não chegou a conhecer. Por tudo isso, Amílcar Cabral e os factos do 20 de Janeiro surgiam, naturalmente, sempre que falava com gente que com ele se tinha cruzado, no PAIGC. Dessas conversas se tece este relato:

“Quando o conheci, numa casa da Rua Actor Vale, em Lisboa, não o associei a esse Amílcar Cabral de cujo trabalho na Guiné já tínhamos ouvido os ecos. O engenheiro que me apresentaram não parecia capaz de fazer nada disso…”

Ana Maria Cabral riu-se, quando me contou esta história, em Cabo Verde, há já alguns anos. Ri-me também: porque já ouvira comentários semelhantes, mas também porque talvez fosse essa qualidade, fazer sem tornar evidente que fazia, que lhe tivesse permitido estar entre a escassa dezena e meia de guineenses a ascender a um curso superior, em Portugal. Talvez fosse ainda essa qualidade que lhe permitiu, durante dois anos, correr a Guiné de lé a lés, na sua qualidade de agrónomo: fazendo um trabalho científico (que seria depois publicado pela Imprensa Nacional), mas também adquirindo um conhecimento que esteve na base da luta vitorosa do PAIGC, semeando ideias, cultivando cumplicidades. Até que finalmente o disfarce caíu e foi proibido de permanecer na terra natal, onde só era autorizado a entrar uma vez por ano, para uma curta visita a sua mãe.

Nessa altura tinha já uma ideia muito clara sobre os problemas que levantaria, à luta de libertação, a existência de múltiplas etnias, sem laços entre si. Mas dizia: “É com esta gente, como ela é, que temos de fazer a luta. Será a própria luta que os fará avançar.” Conseguiu assim que os Balantas, depois de combaterem no seu próprio terreno, admitissem ir dar uma mão aos Fulas, no chão destes. Tal como deixou que fosse a prática a combater as superstições: “Se um chefe está tão carregado de amuletos que pecisa de carregadores para o ajudar a transportá-los e, por isso, não se precipita para o abrigo em caso de bombardeamento e morre, e outro sem amuletos, que está no abrigo, escapa, as pessas começam a perceber que é o abrigo o melhor dos amuletos…”

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Chegado ao poder em 5 de Julho de 1932, Salazar cuidou de preparar a base constitucional e legislativa do Estado Novo. A Constituição de 1933 incluia, no artigo 39º, a proibição da greve e do lock-out – já constante do Decreto-Lei nº 13.138 de 15 de Fevereiro de 1927 e reafirmada no artigo 9º do Estatuto do Trabalho Nacional (Decreto-Lei nº 23.048 de 23 de Setembro de 1933). O Decreto-Lei nº 23.050 de 23 de Setembro de 33 vai por sua vez instituir o princípio do Sindicato único.
E é contra este edifício legislativo, contra a “fascização” dos sindicatos e a ilegalização das organizações existentes, que se prepara, para o dia 18 de Janeiro do ano seguinte (1934), uma “greve geral revolucionária”.
Na véspera, no entanto, a PVDE prende alguns dos principais dirigentes sindicalistas e outros activistas ligados ao movimento. Ainda assim, em Lisboa, na noite de 17, explode uma bomba no Poço do Bispo e e o caminho de ferro é cortado em Xabregas, enquanto que, em Coimbra, explodem duas bombas na central eléctrica. Há ainda movimentações em diversos outros pontos do país, como Leiria, Barreiro, Almada, Sines e Silves, sendo a mais forte na Marinha Grande, onde grupos de operários ocupam o posto da GNR e os edifícios da Câmara Municipal e dos CTT.
A repressão não se faz esperar. Diversos participantes do 18 de Janeiros estão entre os prisioneiros que inaugurarão, dois anos depois, a colónia penal do Tarrafal, onde vêm a morrer Pedro Matos Filipe, Augusto Costa, Arnaldo Simões Januário, Casimiro Ferreira, Ernesto José Ribeiro, Joaquim Montes, Mário Castelhano, Manuel Augusto da Costa e António Guerra.

  
Aproveitamos para divulgar hoje algumas páginas do Diário de Lisboa, que relatam os acontecimentos e as reacções oficiais à tentativa insurreccional ocorrida há 75 anos.

DL, 18/1/1934 – (1), (2) e (3)

DL, 19/1/1934 – (1) e (2)

(Documentos da Fundação Mário Soares)

 
A Nota Oficiosa emitida pelo Ministério do Interior é bem reveladora da gravidade dos factos:
«Pelos relatos dos jornais viu o país os sucessos das últimas vinte e quatro horas. Por eles poderá facilmente supor os que haveria, se o governo, conhecendo bem os preparativos da acção, não tivesse tomado as medidas requeridas pelas circunstâncias. Cessação do trabalho nas fábricas, paralisação de serviços de interesse colectivo e vitais para a população, atentados pessoais e manifestações de terror estavam previstos por parte de elementos que supunham poder arrastar para a projectada revolução social as massas trabalhadoras.
A apreensão de armamento, a oportuna prisão dos principais dirigentes e instigadores, a apertada vigilância exercida por todos os elementos e forças de segurança pública, do Exército e da Armada, a consciência cívica do País e o magnífico espírito de ordem dos trabalhadores em geral fizeram fracassar por toda a parte os planos extremistas em condições de não ser já possível a sua repetição. Não foi perturbada a tranquilidade pública nem a vida normal da população. Seguem-se agora naturalmente as sanções.

(Continuação nesta página do Diário de Lisboa.)

Brasil - Exposição «Direito à Memória»

CES-Lisboa/CIUL
Picoas Plaza, Rua do Viriato, nº 13 (estação de metro Picoas)
3 de Dezembro de 2009 a 31 de Janeiro de 2010, das 10:00 às 20:00.

 
Apresentação

O CES acolhe, nas suas instalações em Lisboa, a exposição fotográfica “Direito à Memória e à Verdade”, organizada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República do Brasil.

A exposição, concebida originalmente para comemorar os 27 anos da promulgação da Lei da Amnistia do Brasil, foi aberta ao público, pela primeira vez, em Agosto de 2006, na Câmara dos Deputados em Brasília.

Segundo o Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República do Brasil, Paulo de Tarso Vannuchi, “a exposição traz uma ambientação sonora e visual que conduz o público numa ‘Viagem no Tempo’ […] até aos anos da ditadura no Brasil. A exposição é mais uma forma de conhecer o que aconteceu nesse lamentável período da vida republicana brasileira. Só de posse desse conhecimento o Brasil saberá construir instrumentos eficazes para garantir que as violações dos direitos humanos, ocorridas durante a ditadura, não se repitam nunca mais”.

Artigo do Público de ontem, que pode ser lido aqui.

Mário Pinto de Andrade em Havana
 
(Primeira, segunda, terceira e quarta parte deste texto.)
 
 
Entre as repercussões dessa conferência numa sala da Câmara dos Comuns, considera Pinto de Andrade o entendimento, pelos militantes do interior, de um encorajamento à passagem à luta armada: «Dois meses depois, a  4 de Fevereiro de 1961, os militantes do interior, encorajados por essa conferência de Imprensa, pelos apoios internacionais de que o movimento dispunha e aproveitando a presença dos jornalistas que pretendiam cobrir o eventual acontecimento da chegada do Santa Maria a Luanda, decidiram uma acção contra as prisões onde estavam detidos alguns dos nacionalistas e, sobretudo, dirigentes do Movimento, do MPLA, sobre os quais pesava, aliás, a ameaça de transferência para o Tarrafal. Portanto, esta conjunção de circunstâncias decidiu a acção do 4 de Fevereiro, que depois se transformou em início da luta armada, mas cujo objectivo era a libertação dos presos políticos.» 

Pouco depois, segue-se o 15 de Março, uma acção da UPA: «Há uma diferença qualitativa e organizacional. Evidentemente que há o ponto de vista de cada um dos movimentos, subjectivo, mas objectivamente pode dizer-se que a acção dos militantes do interior, enquadrados por militantes do MPLA – a acção não é exclusiva, mas enfim, é reivindicada pelo MPLA – sucedeu uma tal repressão sobre as populações que já não restava outra alternativa que organizar-se de uma maneira muito mais organizada, para fazer do 4 de Fevereiro o verdadeiro ponto de partida de uma luta de libertação nacional. Mas era necessário ainda algum tempo, porque os meios de que dispúnhamos, os conhecimentos de que éramos portadores, a difusão das próprias técnicas de guerrilha não estavam suficientemente maduras para enquadrar os angolanos nacionalistas numa verdadeira luta de libertação nacional. Entretanto a UPA considerou o 4 de Fevereiro como uma precipitação, uma iniciação precipitada nessa via, e iniciou em 15 de Março as operações nas plantações de café, o que se transformou numa acção que se pode denominar em termos técnicos de guerrilha em jacquerie, uma insurreição não controlada pelos próprios dirigentes no seu desenvolvimento. O próprio Holden Roberto disse, numa conferência de Imprensa em Nova Iorque, que as suas palavras de ordem tinham sido ultrapassadas. Mas, independentemente da discussão sobre a natureza do 4 de Fevereiro e do 15 de Março, a nossa primeira ilação e o nosso primeiro reflexo foi propor e aprofundar propostas anteriores ao movimento adverso – adverso ideologicamente – de criar uma frente unida para fazer face ao inimigo comum. Só que a parte adversa não considerou assim. A capitalização que a direcção da UPA fez do 15 de Março inviabilizou a nossa ideia de movimento unido, que nos permitiria pôr os nossos recursos em conjunto para fazer frente à repressão e à resposta do inimigo, que viria, e que naturalmente, a partir desse ano de 61, foi fatal a uma grande parte da insurreição no Norte. A nossa análise era a favor de uma Frente unitária e uma preparação da luta armada que não se assemelhasse ao ataque indiscriminado aos civis ou à transformação numa guerra de tipo racial. Essa capitalização, esse monopólio que a UPA se atribuiu do norte de Angola tornou impossível uma unidade e a própria operacionalidade daquilo a que se chamou depois a 1ª Região Político Militar do MPLA.» 

(mais…)

Mário Pinto de Andrade - Muralha da China 
 
(Primeira, segunda e terceira parte deste texto.)  

 
Pinto de Andrade troca Paris por Conacry, a primeira base africana: «Para nós, Conacry era uma estância provisória. O que queríamos era aproximar-nos do interior. Com a independência do Congo, começámos a criar novas células. Estávamos em atraso em relação à UPA, que era originária da etnia Bakongo, com clientela política nos meios da emigração em Kinshasa. E Holden Roberto tinha apoio dos dirigentes, nomeadamente de Patrice Lumumba, cujo primeiro reflexo foi apoiar a UPA e excluir o MPLA. Circulava nessa altura uma teoria, defendida por Franz Fanon, de que a UPA recrutava no meio camponês, enquanto que o MPLA era um grupo de intelectuais mestiços. Tínhamos que ultrapassar esses preconceitos para nos podermos enraizar no Congo.»

Lara é o mensageiro para reforçar o MPLA no interior: «Neto já estava em Angola e foi em torno dele que a resistência se organizou. Havia várias organizações e entendemos que a unidade interna devia ser em torno do MPLA e de Agostinho Neto, mas este foi detido em Junho de 60 e, depois dele, o meu irmão, o sacerdote Joaquim Pinto de Andrade.»

Um pouco antes, em Maio, tinham dirigido um memorando a Salazar, propondo a abertura de conversações sobre a situação das colónias: «Estávamos numa época de outorga de independências por meios pacíficos e, para iniciar a luta armada, precisávamos de responsabilizar o inimigo e provar que a contradição com Portugal se situava no campo da luta armada. Foi por isso que redigimos esse memorando ao Presidente do Conselho, a Salazar, em carta registada, para o Palácio de S. Bento. E ali dizia-se simplesmente, no essencial, que sabíamos que Portugal estava a preparar uma guerra preventiva, e que o único modo para evitar esse confronto, que se podia transformar numa autêntica guerra, era reunirmos uma mesa-redonda com os diferentes partidos políticos, para discutir o acesso à autodeterminação e independência. O memorando foi assinado pelo então Presidente do MPLA – eu próprio – Viriato da Cruz e Lúcio Lara e não recebeu resposta do nosso destinatário. Mas recebeu um comentário no jornal Novidades, que pertencia à família salazarista e católica, que o rejeitava, dizendo que nem mesa-redonda nem quadrada para discutir o indiscutível, o que não tem discussão, que era a independência.»

A ideia da luta armada já se agitava no grupo desde os anos 50. Em 59 tinham tido mesmo uma proposta de formação de elementos, de quadros para a luta armada: «Isso passou-se em Roma, na Páscoa romana, creio que em Abril, à margem do 2º Congresso de Escritores e Artistas Negros. Nessa altura já não era secretário de Alioune Diop, mas estive nesse Congresso, com Viriato da Cruz, Lúcio Lara e Marcelino dos Santos. Como conhecia bem Franz Fanon, com já tinha estado em Paris quando do 1º Congresso, servi de intermediário numa reunião que solicitou com os africanos das colónias portuguesas. E reunimo-nos num café, clandestinamente. Fanon era um homem perseguido pela Polícia, tinha sido vítima de uma tentativa de assassinato, mas era já um responsável do GPLA, Governo Provisório da Argélia Livre, um conselheiro político escutado. Defendeu a tese de divisão do imperialismo: a Argélia lutava contra o imperialismo francês, era necessário atacar outro imperialismo da família NATO, para dividir a força da NATO. Então propunha que aqueles grupos, aqueles actores dirigentes – que ainda não eram reconhecidos como tal – aqueles nacionalistas, envidassem esforços para desencadear, simultaneamente, a luta armada em Angola e Moçambique.»

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Mário Pinto de Andrade
 
(Primeira e segunda parte deste texto.) 

 
Em 1954, Mário Pinto de Andrade parte para Paris:
«Sentia-me perseguido, como toda a gente, pela PIDE. E pressenti que, não estando ligado propriamente às actividades políticas portuguesas, seria para mim um corte na minha própria formação continuar em Lisboa. Depois, já tinha ligações com o Alioune Diop, com a Présence Africaine, e havia também já dois dos elementos do nosso grupo em Paris, Marcelino dos Santos e Guilherme Espírito Santo, da família do 37 da Rua Actor Vale.»

Sendo necessário justificar a saída de Portugal, o objectivo explícito para as autoridades portuguesas foi a participação num campo de trabalho. Saiu sem dificuldades, graças também à cumplicidade de um amigo – mais tarde seu editor – João Sá da Costa, que lhe passou um documento de idoneidade moral e financeira: «Fiz o tal mês de trabalho num campo internacional no Sudeste da França, com estudantes de vários países, entre os quais argelinos, cheguei a Paris e tive a felicidade de encontrar Alioune Diop e de ter imediatamente a esperança, ou, pelo menos, o engajamento, de trabalhar na revista Présence Africaine, na dupla função de secretário da nova série da revista e de secretário pessoal do próprio director.»

Mantinha o contacto com Viriato da Cruz e os restantes compagnons de route, mas começa a ligar-se a intelectuais africanos francófonos:
«Foi um deslumbramento. Para além de me inscrever na escola Prática dos Altos Estudos – onde tive por mestre Roger Bastide – tinha o meu quotidiano preenchido pelo trabalho na Présence Africaine, onde circulava o escol da intelectualidade francófona. Nenhum intelectual importante nesse tempo deixava de frequentar essa revista. E não só africanos, também intelectuais de outras áreas, do mundo negro. Richard Wright, por exemplo, que vivia em Paris nesse tempo, James Baldwin e mesmo o Chester Himes, de uma maneira mais peregrina, mas enfim, o essencial da intelectualidade francófona não só colaborava como mantinha contactos com Alioune Diop e eu ia, evidentemente, aprofundando os meus conhecimentos e alargando os meus horizontes culturais. E devo dizer que beneficiei da amizade pessoal não só de Alioune Diop, naturalmente, mas também de Aimé Césaire e Léopold Sedhar Senghor e indico os nomes nessa ordem pela intensidade das relações.»

Pelo próprio facto da origem senegalesa de Alioune Diop, os primeiros contactos intelectuais de Mário Pinto de Andrade com o mundo francófono foram com o meio senegalês. Mas, para além disso, Mário vivia na cidade universitária e a cidade universitária desse tempo, anos 50, plena guerra fria, era um mundo de grande agitação política:
«Devo dizer que um outro elemento importante, que não teve passagem por Lisboa, não frequentou as academias de Portugal, mas que se encontrava em Paris – tinha vindo directamente de Goa para Grenoble, passando por Moçambique – foi o meu amigo, o meu cúmplice, Aquino de Bragança. Era um homem cujo destino se cruzou com o meu e teve uma influência extraordinariamente importante, na sua qualidade de grande agitador de ideias. De modo que esta vivência de Paris foi das mais ricas e mais determinantes no meu devir cultural e político.»

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Joaquim Pinto de Andrade
 
(A primeira parte deste texto pode ser lida aqui.)

 
Na viagem para Lisboa, Mário tem a companhia do irmão Joaquim e do futuro cardeal Alexandre Nascimento. A saída das Ingobotas – «mais precisamente do Quilómetro 5» – para um jovem que apenas fizera algumas curtas viagens em Angola, foi «uma separação penosa, difícil, um primeiro desenraizamento»: «Encontrei o Outono, quase já princípio de Inverno, as folhas mortas no Cais de Alcântara, foi extremamente difícil, mas essa dificuldade foi atenuada por saber que ia viver numa pensão – perto de Santo Amaro, contígua à estação dos eléctricos – onde estavam já dois angolanos que me tinham precedido nessa aventura, um colega de escola, Licínio de Assis, filho do dicionarista e antigo jornalista António de Assis Júnior, e Humberto Alves Machado.» 

Poucos dias depois, «creio que na própria semana em que cheguei a Lisboa»,  Humberto Machado, estudante de Agronomia, apresentou-lhes um colega chamado Amílcar Cabral: «Lembro-me, naturalmente, tão importante foi esse encontro, do dia exacto em que lhe apertei a mão pela primeira vez, a esse homem que foi a personalidade mais influente na minha geração. Foi na rua Luís de Camões, subindo a R. Luís de Camões ao encontro da Tapada da Ajuda, do Instituto Superior de Agronomia, que encontrei pela primeira vez Amílcar Cabral. Um homem elegante, disponível, que me considerou imediatamente como mais um elemento, mais uma unidade no grupo que depois haveríamos de formar.» 

Seguiram-se o moçambicano Marcelino dos Santos e Agostinho Neto, «que eu conhecia mal em Angola, e que, vindo de Coimbra, veio também alojar-se nessa pensão de Santo Amaro.» 

Segue-se, nesta lista de nomes que entrarão para a História, Francisco José Tenreiro, um pouco mais velho, nessa altura a estagiar com o geógrafo Orlando Ribeiro. «E depois a família Espírito Santo, no 37 da rua Actor Vale, e muitos outros, o Américo Boavida, o Diógenes Boavida, etc.» 

O número de africanos em Lisboa foi-se alargando, e foram-se constituindo novas organizações:
«Nessa altura havia pólos de congregação. O primeiro pólo para nós, estudantes,  era a Casa de Estudantes do Império, pelas facilidades de ordem social e recreativa que permitia. Mas, como africanos, organizámo-nos para lá da CEI. Começámos por ter conhecimento da Casa da África Portuguesa, dominada por um proto-nacionalista, Artur de Castro, e que estava na continuidade das várias associações que existiam em Lisboa, desde a Junta de Defesa dos Direitos de África, Liga Africana, Partido Nacional Africano, o Grémio dos Africanos… A Casa da África Portuguesa é uma organização que sucede ao Grémio dos Africanos, de 1929, é criada em 1944 e, em 49/50, pretendemos, alguns de nós, criar uma organização de reactivação, reorganizadora, da Casa de África. Não fomos bem sucedidos, porque a direcção era – para falar em termos actuais – reaccionária ou, pelo menos, conservadora e não estava disponível para aceder a uma presença e a uma infiltração de sangue novo. Sobretudo uma infiltração que, na interpretação de Artur de Castro, podia ser comunizante.» 

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Mário e Joaquim Pinto de Andrade 

Nasceu e morreu no mês de Agosto. Teria completado 81 anos no passado dia 21, se a morte não o tivesse apanhado em Londres poucos dias depois de fazer 62 anos – a 28 de Agosto de 1990. Pouco tempo depois, também, de ter tido oportunidade de conhecê-lo.

A partir dos anos 60 e durante muito tempo, Mário Pinto de Andrade foi para mim uma referência: angolano, nacionalista, intelectual prestigiado, primeiro presidente do MPLA. Mas só muito mais tarde, nos finais da década de 80, vim a conhecê-lo. Combinado um encontro à porta da Biblioteca Nacional e temendo não o reconhecer, perguntei-lhe se era parecido com o irmão Joaquim, que conhecia bem. A resposta desconcertou-me: «Não. Sou muito mais bonito!» Então, como reconhecê-lo? «Costuma ver muitos negros carregados de livros sair da Biblioteca Nacional de Lisboa?» 

Reencontrei a ironia na forma como, na entrevista que me deu, para a série documental «Geração de 60», definiu as suas origens sociais: «Não vêm na sociologia marxista. Era a lumpen aristocracia luandense.» Depois explicitou o conceito: «Caracterizava-se, nos anos 30, pela sobrevivência de pergaminhos familistas. Um grupo de gente que se reportava a um passado de participação na administração colonial, algumas funções na Igreja e no Exército e que ainda participavam das migalhas dessa existência.» 

O pai era um funcionário aposentado, os seus amigos eram também da área administrativa. Foi nesse meio que se formou a consciência nativista de Mário Pinto de Andrade: «A lumpen aristocracia se, por um lado, vivia dos seus pergaminhos, por outro veiculava aos seus descendentes uma consciência nativista. Havia uma ambivalência, um certo orgulho de ter sido parte integrante dessa vida no meio do colonizador e, ao mesmo tempo, de ter estado na vanguarda de uma luta contra as discriminações de que foram sendo vítimas, no seio da problemática de qualquer colonialismo.» 

De qualquer modo, sublinhou, «essa lumpen aristocracia não se situava ainda no extremo de sobrevivência do colonizado. Quem se situava nesse lugar era o indígena.» O meio em que Mário se inseria era considerado assimilado, com direito à escola e à ascensão social: «Em princípio. Evidentemente já se manifestavam outras formas de discriminação social – não falemos já de discriminação política, porque isso era mais vasto, era o próprio sistema já em vigor, o sistema do Estado Novo. Mas essas formas de discriminação social e racial exerciam-se já no nosso meio, no meio africano, exerciam-se já nas Ingombotas, onde vivi, no meio nativo em geral. Era já um meio de luta para ascender à vida social através da escola.» 

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Timor

Há dez anos, saíamos às ruas a manifestar-nos por Timor-Leste. Há dez anos, o povo timorense afirmava nas urnas o seu desejo de ser livre e ver partir o ocupante indonésio.
David vencia Golias: pagava-o em mortos e sangue, mas garantia a sua independência.

 

Não, não estive em Timor…

Não, não estive em Timor-Leste na altura do referendo, há exactamente dez anos.

Tudo o que sei é por ouvir dizer, pelas histórias que me contaram depois aqueles que as viveram.

As da violência sofrida, naturalmente. Mas também as outras.

A de Moisés dos Santos, por exemplo, que me serviu de motorista intérprete na primeira vez que visitei Timor, no ano da segunda proclamação de independência.

Como tantos outros nos anos da ocupação indonésia – os timorenses dizem muitas vezes «javanesa», deixando-nos na dúvida sobre se estão a ir, de repente, muito mais longe nas suas memórias e a dizer «japonesa» – Moisés trabalhava simultaneamente para o ocupante e para a Resistência. Chefe de suko, ao aproximar-se o referendo os indonésios exigiram-lhe a assinatura de um documento garantindo a adesão de toda a população às milícias Besa Mehra Puti, pró-indonésias. Obrigado a escolher a traição ou a morte, contactara Xanana, então preso em Cipinang. E Xanana respondera, sem hesitar: «Assina! Que seja feito segundo a vontade deles!»

Era a mesma linha que recomendara que se hasteassem bandeiras indonésias nas aldeias, para que Djakarta, pensando que ganhava o referendo, o aceitasse.

A mesma que – e quão terrível terá sido pensar, dar, obedecer a essa palavra de ordem! – ordenou aos resistentes que não respondessem à violência das milícias pró-indonésias, para que a opinião pública internacional pudesse não ter dúvidas sobre quem violava os direitos humanos em Timor.

«Quando o vento é forte, a erva ondula para não quebrar». A sabedoria camponesa, feita preceito maoista, é por vezes dificil de aceitar, mas foi ela que garantiu a sobrevivência e a vitória da Resistência timorense, no pequeno território da meia-ilha, sem comunicação fácil com o exterior.

Mário Caeiro Alves explicara-mo com recurso a um provérbio timorense: «Em terra de cavalos, temos de agir como os cavalos, se não levamos coices?». Fora assim que lograra obter balas que faltavam aos combatentes no mato: oferecendo veados aos indonésios que, reconhecidos, lhe davam munições para que pudesse caçar mais.

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coroneis gregos

Morreu ontem Nicolas Makarezos, membro da junta militar que, em 1967, impôs à Grécia a ditadura «dos coronéis». Formou, com Georges Papadopoulos e Stylianos Pattakos, o triunvirato (na foto) que organizou o golpe de estado de 21 de Abril de 1967, quando a esquerda tinha grandes hipóteses de ganhar as eleições que então se aproximavam.

Artigo em Le Monde.

 
«Z» de Costa Gavras (1969)

 

Enterro de Salazar 

Segunda-feira, 27 de Julho de 1970. Um inusitado toque de clarim interrompe a rotina matinal na prisão de Caxias.
Um toque diferente, desconhecido, num tom lamentoso que não lhe conhecíamos.
Numa cadeia, ganham-se mil ouvidos: habituamo-nos aos sons ciciados da chegada de um novo preso, ao esforço de distinguir qual a cela onde o colocam (da parte da frente, com o rio ao longe? Da de trás, tendo como única visão o muro e as pernas do guarda republicano andando nele?), à frase «Prepare-se para ir à António Maria Cardoso», que pode significar, para aquele a quem é dita, uma sessão de tortura, seja a pancada, o sono ou a estátua, o seu regresso («Quantas horas passou em interrogatórios? Quantas noites?»), à tosse que anuncia esse regresso, ao assobio longínquo de um camarada, identificando-se com uma canção comum (no nosso caso, uma coladera), até às crises de asma de alguém que necessita socorro, numa cela próxima. Então, um toque de clarim, a uma hora inabitual, desperta de imediato a atenção e a ansiedade. 

Lá em baixo, na guarita, o jovem guarda republicano olha, também ele, o lado de onde o som surgiu.«Que toque é este?», perguntamos-lhe, gritando.Olha-nos e encolhe os ombros. Não como quem não quer responder à pergunta gritada por aqueles que tem o dever de guardar, mas como quem não sabe. E ouvimo-lo repetir a pergunta para a guarita seguinte: «“Que toque é este?»Do outro lado chega uma resposta, para nós inaudível. Mas o jovem ouve-a e repete-a para nós: «“É o toque dos mortos!»Para que, numa cadeia, toque o clarim por alguém que morreu, é que esse alguém é pessoa de importância. E a ansiedade e a curiosidade crescem. Gritamos, de novo, para o guarda: «E quem é que morreu?»
Tal como da primeira vez, ele repete, para a guarita seguinte, a nossa pergunta. E tal como da primeira vez, a resposta escapa-nos. Mas – tal como da primeira vez – o jovem que nos guarda logo no-la repete: «Foi o velho! O velho foi à viola!» 

Não houve necessidade de perguntar mais nada. O «velho» com direito a clarim só podia ser um: Salazar. E logo nos abraçámos a rir, enquanto ouvíamos, vindos de outras celas, gritos de regozijo. Que a morte, tantas vezes desejada, do ditador, nos fosse anunciada pelo jovem que devia guardar-nos aumentava a ironia da notícia.
A cadeia explodiu em gritos, risos, murros nas paredes, comunicando de cela em cela, na velha caligrafia prisional – «Um toque é “a”, dois são “b”, três “c” e por aí adiante…» –  a morte do antigo Presidente do Conselho.
Os mais lúcidos lembraram que já havia outro, Marcelo Caetano. Mas, nesse dia, a alegria prevaleceu. Mesmo quando a visita foi cancelada, mesmo quando nos cortaram os minutos de música diária, porque «o país está de luto». «De luto?», respondemos nós. «O vosso talvez esteja, o nosso país está em festa!»

E, desafinadas ou não, ergueram-se as vozes dos presos e ouviram-se pela Cadeia,  nesses minutos sem música, canções de resistência.

 
(Publicado no nº 26 da colecção Os anos de Salazar/ O que se contava e o que se ocultava durante o Estado Novo , coordenada por António Simões do Paço.)

Tribunal Boa_Hora

Extractos de um apelo ao povo português, lido aos microfones de «A Voz da Liberdade», em 21/10/70, por Castro Lobo, representante oficial em Argel do MPLA.
 

N.B. – Trata-se do julgamento de Joaquim Pinto de Andrade e mais nove elementos acusados de pertencerem ao MPLA: Álvaro Sequeira Santos (Zefus), António Ferreira Neto, António Garcia Neto, Diana Andringa, Fernando Sabrosa, José Ilídio Cruz, Maria José Pinto Coelho, Raul Jorge Lopes Feio e Rui Filipe Ramos. 
 

Em primeiro lugar, não quero deixar de sublinhar o apreço em que temos as referências feitas pela «Voz da Liberdade» ao julgamento, em Lisboa, de alguns patriotas angolanos que respondem perante os tribunais fascistas portugueses, acusados de filiação e actividades em prol do MPLA.

É-nos grato constatar mais uma vez essa prova de solidariedade dos democratas portugueses, que reforça ainda mais os laços que desde sempre o MPLA manteve com quantos, respeitando a nossa personalidade e objectivos, connosco se irmanam na luta comum contra o fascismo.

Essa colaboração significa ainda que o nosso Movimento é totalmente desprovido do sentido racial que pretendem atribuir-lhe os arautos do terrorismo português. Não somos racistas, como não somos de forma alguma adeptos da violência pela violência, mas sim orientados pela forma de luta política que o próprio inimigo nos impõe: se a violência é um crime quando inútil, criminoso se torna desprezar essa forma de acção quando não existe outra solução.

Que outra via não existe actualmente para que o povo angolano faça respeitar pelo governo português a sua ânsia de paz e de liberdade universalmente reconhecidos a todos os povos, prova – se necessário fosse -, a farsa repugnante que se desenrola actualmente em Lisboa, e em que 10 angolanos são julgados, pela horda do regime capitalista. Sob a acusação de crime de conspiração contra a segurança do estado português, assistimos na realidade ao processo sumário de todo um povo de mais de 5 milhões de homens, nessa hora submetidos a tribunais e leis que nunca reconhecemos como legítimos.

Ao povo português é dada hoje a rara oportunidade de seguir um processo que é prova insofismável  de que a luta que se desenrola há quase dez anos em Angola não é um levantamento de negros contra os brancos: essa é a explicação simplista, pela qual os que beneficiam da exploração e da guerra sem nela verter o seu sangue, pretendem continuar a enviar o povo português para os caminhos da morte e da alienação.

Entre os réus deste processo figuram indistintamente descendentes de portugueses nascidos em Angola, uns brancos e outros mestiços, como negros de várias etnias. Hoje, são todos angolanos dignos desse nome que lutam lado a lado contra as grilhetas da escravidão.

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mpla2 

O texto que se segue é a transcrição de uma carta, datada de 1968, que foi lida numa emissão de rádio do MPLA, em Brazaville. Limitámo-nos a corrigir erros ortográficos e a introduzir pontuação, optando por manter, quase sempre, as palavras e as construções sintácticas originais, mesmo quando as mesmas são pouco «ortodoxas» em português.  

 
Soldado português! Aqui onde estou, tenho ouvido com certa regularidade programas da bendita chamada Emissora Oficial de Angola. O pretexto é distrair, mas o fim camuflado é automatizar instintos criminosos, não passa de ser capaz de matar friamente, insensível à crueldade que a tropa a que pertenço comete sobre o meu povo. Conseguiram esse objectivo? Em grande parte, sim. O exército português transformou-se num bando de carrascos que mata, tortura, a extorquir, com crueldade, mulheres, homens e velhos, crianças inofensivas, bombardeia aldeias, destrói as as lavras num puro genocídio, digno dos monstros nazis. Mas tudo se paga

 Ao fazer de ti uma máquina de destruição, o teu chefe destruiu em ti próprio tudo quanto possuías de ser humano. É o ensejo de uma máquina de destruição que nem em tempo se fez pensar. A tua desmoralização não se mete a ninguém, nem mesmo os teus próprios chefes, eles sabem, como tu, que estás destinado à morte, para que a tua morte e a dos teus camaradas sirvam para aguentar mais algum tempo. O tempo da alta finança portuguesa, e sobretudo não portuguesa, é realizar mais lucros à custa do suor e da riqueza do nosso povo-Eles preparam agora a sua ofensiva de cacimbo, eles sabem que há mais de uma larga centena de soldados, que vai perder a vida por essa Angola fora nas matas do Maiomo, como nas savanas do Moxico, na Lunda como em Malange, em Luanda e no Quanza Norte, eles sabem que o cerco inevitável se aperta tenazmente e a guerra está  perdida. Mas é preciso aguentar, aguentar cegamente contra toda a lógica, vendendo a arma ao diabo se ele corre em seu auxílio. E para isso é preciso que tu morras, que mais centenas de soldados dessem a vida em Angola e outras tantas centenas se vissem estropiados para toda a vida.É para lhes levantar um pouco o seu moral, para olhar em si as engrenagens da máquina que mata e morre sem pensar que começaram as contra-ofensivas do Cacimbo pela preparação psicológica do soldado. A nós, essa campanha psicológica com força dá-nos a medida exacta de desespero dos seus chefes, foi um tiro saído pela culatra, que vai ter tanto efeito como a famosa contra-ofensiva do Cacimbo dos vossos generais de parada. Este ano, como em 1968, não está o de esperança, ele vai ter os mesmos resultados desastrosos dos anos anteriores, por grande escala.
 
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paigc 

No dia 20 de Setembro de 1960, a Assembleia Geral das Nações Unidas admitiu, como membros, mais de uma dezena de países africanos: República dos Camarões, República Togolesa, República Malgache, República da Somália, República do Congo (Leopoldville), República do Daomé, República do Niger, República do Alto Volta, República da Costa do Marfim, República do Chade, República do Congo (Brazzaville), República do Gabão, República Centro-Africana. A estes novos membros juntaram-se, 8 dias depois, a República do Senegal e a República do Mali. A 7 de Outubro, era a vez da Federação da Nigéria. Estavam criadas as condições para que, a 14 de Dezembro desse ano, a mesma Assembleia Geral aprovasse a Resolução 1514 (XV), Declaração sobre a concessão da independência aos países e povos coloniais.

“Reconhecendo o apaixonado desejo de liberdade de todos os povos dependentes e o papel decsivo desses povos na conquista da sua independência”, “consciente dos crescente conflitos originados pela negação ou impedimento dessa liberdade, que constituem grave ameaça para a paz mundial”, “reconhecndo que os povos do mundo desejam ardentemente o fim do colonialismo em todas as suas manifestações”, a Asssembleia Geral das Nações Unidas declarava que “todos os povos têm direito à auto-determinação”, “a falta de preparação de ordem política, económica, social ou educativo não deve servir de pretexto para adiar a independência”, “nos territórios que não conseguiram ainda a sua independência devem ser tomadas medidas imediatas para entregar todos os poderes aos povos desses territórios, sem condições nem reservas, em conformidade com a sua vontade e desejo livremente expressos, sem distinção de raça, credo ou cor, a fim de lhes permitir gozar uma liberdade e uma independência absolutas.” A Assembleia expressa ainda o seu desejo de cooperação de todos os Estados membros nesses objectivos.

Algo que Portugal não se mostra com vontade de fazer. Argumentando que os seus territórios são, não colónias, mas províncias ultramarinas, recusa prestar a informação sobre as condições nesses territórios, exigida ao abrigo das disposições do Capítulo XI da Carta das Nações Unidas.

Salazar terá sido avisado que o equilíbrio internacioal era agora favorável ao eclodir da luta de libertação nas colónias. O que não o demove, nem mesmo quando alguns movimentos de libertação lhe endereçam memorandos nos termos das resoluções da ONU. Estamos em Dezembro de 1960. A luta armada de libertação inicia-se no ano seguinte.

Quando muitos culpam de todos os males acontecidos nas antigas colónias aquilo a que chamam, com desprezo, a “descolonização exemplar”, vale a pena reler o Memorandum então enviado ao Governo Português pelo Partido Africano da Independência (Guiné e Cabo Verde), que aqui se reproduz (*):

 
(*) Documento do Arquivo Amílcar Cabral/ Fundação Mário Soares. 

 
N.B. – O documento encontra-se também online em formato PDF.
 
 
MEMORANDUM ENVIADO AO GOVÊRNO PORTUGUÊS pelo PARTIDO AFRICANO DA INDEPENDÊNCIA (Guiné e Cabo Verde)
 
O PARTIDO AFRICANO DA INDEPENDÊNCIA (P.A.I.G.C.), que luta pela independência total e imediata dos povos guineense e caboverdiano no quadro da unidade africana, tem seguido com atenção todas as medidas tomadas pelo Govêrno português para tentar manter o seu dominio colonial sobre os povos da Guiné e Cabo Verde. Forçado pela opressão colonial e pela repressão policial, a agir na clandestinidade, o nosso Partido tem mobilizado e organizado as massas populares para a luta de liquidação urgente da dominação colonial portuguesa na Guiné e em Cabo Verde. 

Embora conhecendo de sobejo a posição até agora adoptada pelo Governo português em relação à descolonização, os povos da Guiné e Cabo Verde e o nosso Partido têm estado a “esperar o melhor sem deixar de se preparar para o pior”. Temos esperado, com paciência que os actuais dirigentes de Portugal se resolvam a  analisar concretamente a situação dos nossos paises e dos próprios interesses portugueses – e se decidam a reconhecer aos nossos povos o direito à autodeterminação, consagrado pela Carta das Nações Unidas e respeitado pela esmagadora maioria das potências coloniais. 

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Manifestação em CuChi, Vietname (1965)
  Manifestação anti-americana em CuCchi, Vietname (1965)

A morte de McNamara (hoje ocorrida) traz-me à memória o primeiro abaixo-assinado que subscrevi.
Tinha 17 anos. Entrara, há pouco ainda, para a Faculdade de Medicna de Lisboa – e, quase de seguida, para a CPA – a Comissão Pró-Associação dos estudantes da mesma.
A minha entrada na vida associativa revelara bem a extensão da minha inexperiência política: tendo ouvido por acaso o que me pareceu ser uma manobra para eleger o “bom” delegado de turma do 1º ano, decidi candidatar-me contra ele, explicando a razão. Penso que só não fui banida para sempre do convívio associativo pela intervenção do Luís Lemos (que, pouco depois, escaparia por pouco às prisões do 21 de Janeiro de 1965) que, quando vários me fuzilavam com o olhar, veio em meu socorro dizendo que era de jovens assim – afoitos defensores dos princípios que consideravam correctos – que a CPA precisava. Tive 2 votos. Um foi, naturalmente, o meu. Tendo o voto sido secreto, ignoro, até hoje, quem, de entre os meus colegas, depôs o voto solidário.
O certo é que, a partir daí, me integrei, melhor ou pior, na vida política estudantil. O que explica como é que alguém – julgo que um então estudante de Direito, famoso tanto pela inteligência como pela perícia nos matraquilhos – me convidou a ler e subscrever, estando de acordo, esse primeiro abaixo-assinado.
É que estava para actuar em Lisboa, salvo erro tocando jazz, uma banda da Marinha norte-americana. E a Marinha dos Estados Unidos era aquela mesma que bombardeava as costas – e o povo – do Vietnam. Poderíamos nós, jovens conscientes, anti-colonialistas e anti-imperialistas, admitir essa afronta? Seria possível para nós ouvir tocar esses homens esquecendo que, nesse mesmo momento, havia gente a morrer pela acção dos seus camaradas de armas?
Não!
Havia que mostrar aos Estados Unidos e à sua esquadra que a música não bastava para nos fazer esquecer os bombardeamentos no Pacífico. Eu gostava (e gosto) de jazz. Mas foi sem grande hesitação que assinei o documento. Até hoje, não me envergonhei de o ter feito.

Casa de estudantesdo império

Abril de 1961. A guerra em Angola começara há pouco mais de um mês. As vitrinas do Palácio Foz, então sede do Secretariado Nacional de Informação ostentam ainda as terríveis fotografias dos massacres levados a cabo pela UPA (União dos Povos de Angola), no levantamento armado de 15 de Março – que o primeiro presidente do MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), Mário Pinto de Andrade, viria a classificar de “jacquerie”. A Censura impedira os portugueses de conhecer outros massacres anteriormente ocorridos: milhares de mortos de população civil angolana, na repressão da revolta dos plantadores de algodão da Baixa do Cassange, centenas de mortos nos ataques aos muceques de Luanda e na repressão em Icolo e Bengo, na sequência do assalto pelos nacionalistas às prisões e quartéis da capital angolana, ocorrido a 4 de Fevereiro.

Os estudantes africanos em Portugal temem que também sobre eles se abata a repressão. Muitos deles – “nacionalistas progressistas” da Casa de Estudantes do Império, na classificação do inspector  Sachetti [1], baptistas e metodistas dos lares de Lumiar de Carcavelos – tinham acorrido ao aeroporto de Lisboa em Dezembro de 1960, protestando contra a deportação do médico Agostinho Neto para Cabo Verde, sendo por isso identificados e retidos para interrogatório pela PIDE. Por outro lado, a guerra que alastra em Angola dá-lhes uma oportunidade de se juntarem às forças que combatem o colonialismo português.

Com um número muito reduzido de militantes em Conacry – Mário Pinto de Andrade, Viriato da Cruz, Lúcio Lara, Eduardo dos Santos e Hugo de Meneses –  e um pequeno núcleo no então Congo-Brazaville, o MPLA apela aos jovens nacionalistas para que abandonem Portugal e reforcem as estruturas do Movimento no exterior.

O MEA, Movimento de Estudantes Angolanos, constituído sobretudo por frequentadores da Casa de Estudantes do Império, decide então enviar dois representantes a França, onde mais facilmente poderiam tentar contactar a Direcção do MPLA. Edmundo Rocha e Graça Tavares são os escolhidos. A resposta do Movimento, de que não tem possibilidade de os apoiar na saída, leva-os a procurar novos caminhos. Na Bélgica e na Alemanha, vão juntar-se a outros estudantes das colónias portuguesas – José Carlos Horta, de Moçambique, José Fret Lao Shong e Manuel Pinto da Costa, de S. Tomé, Alberto Passos, Arlindo Barbeitos, Carlos Rocha, Desidério Costa, Luís de Almeida, Luísa Gaspar e Ruth Neto, de Angola. E parte de Desidério Costa e Luísa Gaspar a sugestão de um contacto com o bispo metodista de Frankfurt, que talvez os possa ajudar. Este põe os jovens nacionalistas em contacto com outro bispo, Black, da Assembleia Mundial das Igrejas Protestantes, em Genebra. Conhecedor da realidade angolana através de um outro bispo protestante, Ralph Dodge, que vivera muitos anos em Angola, Black apoia as reivindicações dos nacionalistas. (Rocha, 2002:219). Ao responder ao incitamento do MPLA, é das igrejas protestantes, nomeadamente norte-americanas, que os jovens delegados do MEA vão receber auxílio.

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Liberdade 

Todos os anos, pela Primavera, se surpreende a olhá-los, a esses presos sobre quem – sem que sobre eles os anos passem, fixados para sempre, jovens, surpresos de liberdade e alegria, nesse ano mágico de 74 – ano após ano se abrem as mesmas portas da mesma prisão, com um olhar onde se misturam a emoção e a inveja.

A inveja, sim.

Levou muito tempo a pensar a palavra certa. Que sentimento era aquele que se somava ao outro, colectivo, obrigatório, a emoção perante as grades finalmente abertas? Demorou-lhe admitir que era a inveja. (Ainda não se tornara moda recordar que é com essa palavra que fecham os «Lusíadas».) Mas que outra coisa poderia ser, afinal, se só eles, eles, frente a quem se abriu essa última porta, esse gradão entre o interior e o pátio do Forte de Caxias, puderam sentir inteiramente o significado desse dia, a liberdade reencontrada, a liberdade política, certamente, mas também (mas sobretudo?) a física, nenhuma porta mais, nenhuma grade, entre eles e os que os esperam, entre eles e os mil gestos quotidianos cuja ausência se descobre custar tanto a suportar, tirar da estante um livro ao acaso, abrir uma cerveja, pôr um disco a tocar fora da curta hora autorizada, estiraçar-se no velho divã, discar no telefone o número de um amigo. Luxos irreconhecidos como tal até então, tomar banho em banheira, dormir sem horário, acender um fogão, comer em prato de louça, pedir uma bica escaldada, sorrir a alguém que não se conhece, apagar uma luz, rodar a chave numa porta – coisas de todos os dias, importantizadas pela ausência.

Então, o abrir da porta, essa porta que todos os anos se abre de novo sobre eles, jovens como então eram, sem que nada nos seus traços revele o cansaço ou a desilusão dos anos que se seguiram, traz-lhe a inveja do momento único e irrepetível, daquele instante fugaz em que tudo foi possível, mesmo aquilo que nunca chegaria a sê-lo.

Inveja-lhes esse momento que não teve, essa possibilidade de juntar, no mesmo abraço, no mesmo riso, a liberdade de todos e a sua própria, a festa individual e a festa colectiva.
Teria sido bom, pensa, ter saído da cadeia nesse exacto momento, sem o sentimento de culpa dos ficados para trás, porque todos estariam saindo ao mesmo tempo.

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Telefonistas

Oito de Setembro de 1969. Dez e vinte da manhã. Um conhecido oposicionista pega no telefone e marca um número.
A alguns quilómetros dali, na sede da PIDE, um zeloso funcionário escreve:
«Ligou para o 769594 e falou com um indivíduo que tratou por Doutor.»
Mais tarde, ao passar a informação à máquina, em papel encabeçado pelos dizeres PIDE/Serviços de Segurança – Secção Central (C.I.3), com a menção «Secreto» bem visível, acrescentará um novo dado: «769594 – Fundação Calouste Gulbenkian – Av. Berna – Museu – Lisboa.»
Sem o saber, o autor do telefonema lançara a polícia política numa nova pista.
A facilidade de reconhecimento imediato do número para que o telefone sob escuta ligava, aliada à naturalidade com que muitos opositores usavam o telefone, revelava-se um verdadeiro maná para os agentes policiais: não apenas identificavam, de imediato, os telefones com que directamente contactavam, como aqueles que pediam ou davam nas suas chamadas. Um exemplo:
«Do escritório de X, o Y entrou em contacto com Z, a quem pediu o número de W», lê-se num relatório de escuta. Em baixo, o telefone, identificação e morada de W.
Numa entrevista para a série da RTP «Geração de 60», o ex-inspector Álvaro Pereira de Carvalho deu um exemplo da importância da conjugação da escuta com a violação de correspondência, também praticada pela PIDE: numa carta para a família, um jovem oposicionista, radicado em França, anunciava aos pais o seu regresso a Portugal. Suspeitando das suas razões, a PIDE pôs-lhe o telefone sob escuta. Os contactos feitos, as conversas tidas, permitiram à polícia desarticular o grupo a que pertencia.
Depois de tentativas artesanais de escuta, fora Barbieri Cardoso que, usando as suas boas relações com os serviços secretos franceses, conseguira o fornecimento de 45 unidades de escuta que permitiam à polícia  uma nova eficiência: assim que o telefone escutado ligava para outro, o sistema – montado no 4º andar do edifício da sede da PIDE, na R. António Maria Cardoso –  registava o número marcado, começando um gravador a rodar no momento em que era levantado o auscultador. Evitava-se, assim,  a baixa de tensão sentida nas escutas artesanais, alertando para a entrada de outro aparelho no circuito.
A escuta era previamente comunicada ao Correio-Mor dos CTT (Correios e Telecomunicações) e, segundo Pereira de Carvalho [1], «só com a autorização deste é que a central telefónica podia fazer a ligação do telefone posto em escuta na central com a polícia».
Algumas centenas de metros, apenas, separavam a sede da PIDE e a estação dos TLP na Trindade. Em Lisboa, as ligações foram desfeitas em 26/27 de Abril de 1974, pelo corte do cabo co-axial.  Mas, segundo o relatório da Comissão de Inquérito às Escutas Telefónicas, «os cabos que serviam para escuta telefónica não foram retirados», permitindo que, mais de dois anos passados sobre o 25 de Abril, alguém recebesse um telefonema de um trabalhador dessa estação, avisando da escuta aplicada no seu telefone.
Segundo o mesmo relatório, a 25 de Abril de 1974, a PIDE/DGS «dispunha de uma capacidade máxima de escuta simultânea de 56 telefones, em Lisboa, e de 8, no Porto» [2].
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Joaquim Souza Teixeira
Em Outubro de 2008, no Colóquio
sobre o Tarrafal organizado pelo NAM!

Joaquim Souza Teixeira nasceu em Vila Real a 2 de Janeiro de 1916.Ficha José Souza Teixeira
Aos 20 anos, em 8 de Setembro de 1936, sendo grumete no aviso de 1ª classe Bartolomeu Dias, foi acusado de insubordinação e entregue pelas autoridades da Marinha à PSP. A 18  do mês seguinte, julgado sob acusação de ligação à Organização Revolucionária da Armada, ORA, foi condenado a 5 anos de prisão celular, seguidos de 10 anos de degredo – ou, em alternativa,  na pena de dezassete anos e meio de degredo «em possessão de 2ª classe».
Deportado para o Tarrafal, ali ingressou a 29 de Outubro do mesmo ano. Em 1942, sofrera já três permanências na «frigideira».
Em Agosto de 1944, foi transferido para o Aljube e, em 25 de Abril de 1945, baixou ao Hospital de S. José, de onde veio a evadir-se, permanecendo a partir daí na clandestinidade.
Morreu ontem, em Lisboa.