A revolução ainda acordava para vigílias sem sono e tarefas sem fim, havendo tudo para fazer sem que nada parecesse impossível de mover e mudar. O “Avante” passar a ser legal e circular de mão em mão, vendido em papelarias e quiosques, difundido às escâncaras, com orgulho e alegria, em fábricas, escolas e escritórios, era o sinal maior do tamanho enorme do tanto que tinha mudado. Mas se, em energias descarregadas, parecia que o vento da história movia os moinhos da utopia, a causa sentia-se como só podendo ter a forma de um monolito. Relativamente ao património e à mitologia épica associada à gesta da imprensa clandestina, era difícil aceitar que outros, para mais rivais, chegada a revolução, a quisessem ultrapassar em ressonância no reconhecimento popular dos alvarás da resistência antifascista e da capacidade de andar para a frente. Assim, a forma atrevida e altissonante como a rapaziada fanatizada do MRPP anunciava e difundia o “Luta Popular”, só podia ser entendida, além de uma provocação, como um atrevimento concorrencial de decoro e pergaminhos, uma ofensa aos heróis que, contra ventos e perseguições, tinham mantido as tipografias artesanais e disfarçadas que alimentaram a voz dos reprimidos. Aquela revolução, como as outras, só permitiam aceitar-se um ser e um estar que se confundissem com os méritos do passado que a tinham tornado possível.
Entretanto, o futebol continuava, inamovível, ao lado da revolução, disputando paixões e multidões. E, à beira de casa, muitas vezes emitindo sons estridentes que me entravam pelas janelas, condensando a ânsia e o festejo do golo, em orgasmos colectivos, multidões juntavam-se às tardes de domingo em grandes missas de histeria colectiva no Estádio da Luz. Daí ao desafio foi um pequeno passo. Organizado um grupo de vizinhos camaradas, requisitado um bom molho de avantes, montaram-se bancas improvisadas no caminho de maior tráfego apeado da multidão rumo ao estádio, na Segunda Circular, uns poucos metros antes do perímetro de feira onde se vendiam couratos, bonés e bandeiras. Jornal estendido e mostrando o cabeçalho, ali nos esforçámos, domingos a fio, enfrentando o fluxo contrário e apressado apostado na conquista de um lugar nas bancadas, gritando-lhes até enrouquecer “Olha o Avante, órgão central do Partido Comunista Português!”. Os resultados foram sempre escassos, o jornal saía à quinta e os da romaria (vermelha!) de passo apressado segurando bandeiras ou só paixão ansiosa ou já o tinham comprado ou estavam concentrados em preocupações que metiam outras balizas. Mas ganhámos sempre no campeonato do ritual do insólito genuíno, com uma sensação de desforra perante outros atrevidos da concorrência, pois reposta tinha sido a honra dos pergaminhos. Fechadas as portas do estádio, comportando multidões alienadas em disputa de paixões periféricas, uma heresia em tempo de revolução, recolhidas as sobras, contados e registados os magros tostões recolhidos, gargantas gastas, achávamos que a honra revolucionária tinha marcado golo. Para nós, então, era mesmo assim.
Sexta-feira, 05.Mar.2010 at 01:03:00
caro joão tunes,
e por que razão é que foram vender jornais aos macacos ululantes?
saudações provocatórias
Domingo, 07.Mar.2010 at 12:03:42
Os fanatismos eram vários, não apenas da tal “rapaziada”.Só mais tarde o pluralismo político seria reconhecido como um bem mas ainda hoje alguns o carregam como um fardo.O problema fundamental é que todos se julgavam senhores da verdade suprema e da legitima exclusividade da “representação” das massas o que felizmente não chegou a traduzir-se no exercício do poder político.
Não duvido da generosidade e sinseridade do João Tunes, que conheci em 1967 e a quem desejo o melhor para a sua vida, mas penso que nesse tempo todos estavamos bastante enganados.
Domingo, 07.Mar.2010 at 01:03:00
Meu caro homónimo,
Hoje – repito: hoje – penso que péssimo teria sido não termos consumido grande parte do arsenal dos “fanatismos” durante o PREC, com festa e convicção, muitas vezes sob formas lúdicas de infantilismo político, resolvidas segundo os brandos costumes. É que se concordo que ainda bem que não ganhámos, válido para todas as bandas dos fanatismos (e tem toda a razão quando sublinha que os fanatismos se aninhavam em todas as bandas, embora do ponto de vista dos fanáticos os fanáticos são sempre os outros, afinal o que prentendi dizer no meu texto), impedindo-lhes serem poder político, gozámos que nos fartámos, tornando muita coisa irreversível depois, incluindo a falta de condescendência para com o fanatismo. Mas faltará, julgo, o mesmo rigor de nojo para com o fanatismo, hoje vulgar, de considerar uma normalidade democrática o mar de azeite em que o desemprego é um número e a cidadania é um voto de quando em vez. Esta sim, a nossa grande falha: deixámos o clorofórmio como herança política revolucionária, gozando mas esgotando o gozo em gozar.
Obviamente que, pela curta identificação, não o localizo na minha memória (longínqua) de 1967 (no Porto?). O que não impede de lhe agradecer os simpáticos votos e retribui-los com toda a sinceridade.
Segunda-feira, 15.Mar.2010 at 02:03:25
Olá João Tunes. Agora que te “apanhei”, vou seguir-te…
Abraço
Segunda-feira, 15.Mar.2010 at 03:03:21
Estou feito. Vou voltar a fazer pausas, fingindo espreitar montras e usar os efeitos de espelho como retrovisores. Pode ser que seja seguido por algum amigo a quem devo abraços em atraso.
Terça-feira, 16.Mar.2010 at 11:03:43
Reposto o atraso e cobradas as dívidas com abraços virtuais, lembro o nosso encontro, em noventa e poucos, no aeroporto Sá Carneiro. Então a “escrita” foi posta em dia. Agora, vamos ao reencontro de ideias e ideais?
Quarta-feira, 17.Mar.2010 at 12:03:08
Seja o que isso for, esse reencontro, claro que sim. E com todo o entusiasmo. Manda-me mail (está escarrapachado no meu blogue) para combinarmos uma almoçarada a preceito.
Abraço.