am2Adriano Moreira, ex-ministro do Ultramar no período mais negro da guerra colonial, opositor de Marcelo Caetano em relação ao destino das colónias – sem ser exactamente um ultra mas opondo às «ambiguidades» de Marcelo Caetano ambiguidades ainda maiores -, é uma personagem central na história contemporânea portuguesa. Antes e depois do 25 de Abril, mas não por se ter ilustrado na oposição ao antigo regime. 

O seu percurso é único: vemo-lo passar (sem que nos explique porquê) da situação de estudante com origens modestas, que tinha conseguido entrar para a exclusiva universidade dos anos 50 e preocupado apenas com a conclusão do seu curso, para advogado nos escritórios que eram a sede da oposição ao regime. 

Acácio Gouveia, Teófilo Carvalho Santos, Abranches Ferrão acumulavam uma advocacia próspera com a liderança virtual da oposição democrática ao regime e Adriano Moreira fez aí o seu estágio, não pela escolha consciente de quem escolhe um patrono ideologicamente próximo, mas, como nos explica, pela dificuldade de encontrar um patrono para o seu estágio.    

Como é sabido, as más companhias têm os seus efeitos: pouco tempo depois, ao jovem advogado Adriano Moreira era confiada a defesa dos generais no golpe falhado de 1947, uma história ainda mal conhecida com contornos únicos. O Golpe militar – não realizado porque à última hora, como quase sempre sucedia, os oficiais menos comprometidos recuavam – tinha uma capa legal.

O Gen. Marques Godinho, Almirante Mendes Cabeçadas (do 5 de Outubro e do 28 de Maio) e outras altas patentes que se tinham passado da ala republicana do regime para a oposição ao mesmo iriam, em conjunto, falar com o Marechal Carmona e pedir-lhe que demitisse Salazar. Era meio verdade (em Belém, de Carmona a Craveiro Lopes, havia sempre uma conspiração latente e nunca realizada) e era a história para contar no tribunal depois do golpe falhar.

A reacção do regime – o semi-envolvimento de Carmona e as suas patentes davam aos envolvidos a convicção que não seriam tratados como os comunistas ou os anarco-sindicalistas – foi inesperadamente  feroz. Carmona (com uma longa história de recuos e traições aos seus antigos companheiros) deve-se ter acobardado. Um seu primo (o almirante Carmona) foi testemunha dos conspiradores com uma posição muito incerta. 

O homem forte do regime para os militares, o então Cor. Santos Costa, manda transferir os militares presos do Hospital Júlio de Matos (ainda por inaugurar e transformado numa centro de detenção adequado para os galões dos militares envolvidos) para a Prisão Militar da Trafaria. Não para Caxias, como no caso de Beja, mas para uma prisão militar. O drama surge porque o Gen. Marques Godinho está com problemas cardíacos e os médicos desaconselham a transferência. Adriano Moreira tenta obter das autoridades militares o adiamento da transferência, mas já ninguém tem coragem para fazer frente a Santos Costa: a tolerância tradicional em relação a militares envolvidos em conspirações tinha acabado. Com Santos Costa na defesa, os militares iriam transformar-se na guarda pretoriana do regime e não havia lugar para mais divergências ou tolerância para conspiradores.

O Gen. Marques Godinho é transferido e morre com um ataque de coração.

Aqui tem Adriano Moreira o seu momento de verdade: os filhos do defunto general (dois dos quais oficiais do exército) querem apresentar uma queixa crime contra Santos Costa que responsabilizam pela morte do seu pai. Adriano Moreira concorda e trata das questões jurídicas que suportam a queixa (que deveria ser apresentada na Polícia Judiciária) e oferece-se como testemunha.

A reacção do regime é brutal e o que se segue é a debandada: os filhos do Gen. Godinho, ameaçados com o fim imediato das suas carreira militares, deixam de ser autores da queixa que é apresentada pela sua mãe, a viúva do Gen.. Godinho, supostamente ao abrigo da repressão do regime. Quando esta é presa pela PIDE, toda a gente percebe que a dissidência no regime de Salazar implica risco e riscos muito sérios.

Aqui entra Marcelo Caetano cuja rivalidade com Santos Costa data desse tempo. Segundo Adriano Moreira, o Gen. Godinho tinha em seu poder cartas de Santos Costa do tempo da II Guerra Mundial, que este não queria ver divulgadas por terem posições «germanófilas». Seria interessante saber-se onde param estas cartas. Adriano Moreira revela também que os militares, em retirada completa perante a ferocidade de Santos Costa, terão pedido desculpa ao ministro porque teria sido Marcelo Caetano quem teria induzido o autor a apresentar a tal queixa contra ele. Tudo isto seria parte da guerra palaciana entre os dois. Marcelo Caetano (As Minhas Memória de Salazar, Viseu, 1977) tem uma versão distinta destes acontecimentos. Nega, naturalmente, que tivesse sido o autor moral da queixa que terá explicado Santos Costa (embora este achasse que sim). Conta que ele próprio teve de explicar ao Ministro do Interior qual o seu papel em tudo isto. E fala-nos de uma visita de um Adriano Moreira em pânico perante o recuo dos seus antigos constituintes em que ele, Marcelo Caetano, censura paternalmente o jovem advogado pela sua atitude precipitada e sem observância das devidas formas legais.

Tudo isto vai acabar com Adriano Moreira no Aljube e com Marcelo Caetano (segundo a versão deste) a pleitear pelo jovem advogado inexperiente junto do Ministro do Interior (Cancela de Abreu). A prisão durou pouco mas realizou plenamente a sua função dissuasória: Adriano Moreira parece ter tirado as suas conclusões sobre as vantagens e desvantagens de defender gente com problemas com o regime e dá novos rumos à sua carreira. Os implicados no golpe iriam encontrar outros defensores. O autor iria iniciar, passo a passo, o caminho que o conduziu ao poder na pasta do ultramar. Porque um outro golpe que também nos descreve bem – o golpe obstinadamente legal e falhado de Botelho Moniz em 1962 – foi derrotado por Salazar, no Diário de Governo, com a demissão dos conspiradores.

Tudo isto está ainda mal estudado e insuficiente descrito. As memórias de Adriano Moreira ajudam-nos a perceber melhor a época. Mais do que a perceber o memorialista cujas ambiguidades essenciais estão tão bem ilustradas por este livro.

 
Adriano Moreira, A Espuma do Tempo. Memórias do Tempo de Vésperas, Almedina, 2008, 544 págs.

Biografia de José Luís Saldanha Sanches.