Posted by João Tunes under
Testemunhos
Comentários Desativados em Um voo sem janela, rumo a Guileje

O Tenente Aviador Aparício, lenço azul ao pescoço e ar de quem está meio cá meio lá, entre a terra e o céu, aterrou a Dornier na pista de terra batida de Catió. Quando o primeiro militar que o foi receber o saúda, dispara, rindo-se, “Então, aqui bebe-se?”. Claro que sim. Quem ia deixar o Tenente Aparício morrer de sede? O aviador é levado, de jipe, ao bar de oficiais e são-lhe servidas as melhores iguarias disponíveis, acompanhadas de cervejas bem geladas. Sabia-se deste voo que era, aliás, aguardado ansiosamente há vários dias. Os aviadores eram sempre recebidos como VIPs na messe de oficiais do batalhão de Catió, quartel que, na maior parte do ano, só tinha ligações com o exterior pelo ar. Na época das chuvas, o aterrar de um avião ou de um heli era sempre motivo especial e comportava a emoção de confirmar que Catió existia no mapa. Entre todos os aviadores militares em serviço na Guiné, o marado do Tenente Aparício era o mais festejado e o mais bem-vindo. Não por ser marado mas por ser o mais marado de todos, tanto que era o único que se dispunha a aterrar de Dornier em Guileje. E este quartel era a posição mais martirizada e mais isolada da área de intervenção do batalhão e em toda a Guiné. Por causa disso, a tropa de Catió encaixava bem as risadas sem motivo deste aviador e uma ou outra frase desconexa que ia largando, pelo valor único que ele representava para o batalhão e para o pessoal de Guileje. Após menos de meia hora a descansar, a comer e a beber, o Tenente Aparício ajeitou o lenço azul e levantou-se. “Vamos a isto!”, disse com os olhos a brilharem. Se era o único que aterrava de avioneta em Guileje, aquele era o sítio onde ele mais gostava de ir. Cada viagem era uma aventura. E o Aparício adorava aventuras.
Carregado o correio, medicamentos, algumas peças e acessórios, tudo em quantidade limitada por causa do pouco peso que a aeronave podia transportar, o Tenente Aparício despediu-se. E mandou-me subir. Naquele dia eu ia ser seu companheiro de viagem até Guileje. “Vamos a isto!”, repetiu, replicando mais uma versão das suas risadas. Eu ia para passar uma semana em Guileje, como fazia quase todos os meses, para tratar de problemas com as transmissões e trocar os códigos das cifras da criptografia. E, por isso, seria companheiro de viagem do Tenente Aparício. E uma ida a Guileje era sempre uma emoção, pelo risco e por rever os camaradas martirizados e isolados bem junto da fronteira com a Guiné-Conacri. Para mais, conduzido pelo aviador mais marado da Guiné. O aviador conduziu a aeronave com os jeitos e o ar de condutor habituado a uma estrada de todos os dias. E ia sempre a rir-se, na maior parte das vezes sem se entenderem os motivos. De repente, a janela da Dornier do meu lado salta e desaparece no céu. O ar entra em turbilhão e faz esvoaçar toda a papelada solta. O aviador riu-se ainda mais. Como tendo achado que aquele incidente só ia tornar mais insólita e mais típica aquela viagem e ainda dava para gozar com a cara azulada da preocupação do seu companheiro inquieto e que duvidava que, sem janela, aquela geringonça se pudesse aguentar no ar. O aviador comentou, sem conter o riso: “Eu bem disse na Base que essa merda estava mal apertada, mas não faz mal, o avião não cai, ficamos é com as ideias mais frescas.”. A viagem decorreu, num regalo de vista sobre as matas luxuriantes de verde intenso como era típico do sul da Guiné, permanentemente atravessadas por enormes e serpenteantes cursos de água. Debaixo de nós, o fabuloso Cantanhez expunha a sua beleza única. Sempre a sobrevoar uma zona controlada pelo PAIGC. É que, no sul, tirando os quartéis isolados e sitiados de Catió, Guileje, Gadamael e Cacine, mais uns tantos destacamentos, todos sob o comando militar de Catió, a zona era inteiramente controlada pelos guerrilheiros. Estes, só eram contrariados no seu domínio pelo exército português através de bombardeamentos aéreos, fogo de artilharia e surtidas temporárias das forças especiais. E isto durou até o PAIGC receber os mísseis terra-ar soviéticos, porque, a partir daí, quase todos os aviadores se recusaram a voar no sul. Mas isso foi mais tarde, já o Aparício de lá tinha saído. Voar, naquela zona, era um desafio permanente às antiaéreas da praxe e, quanto a isso, havia que confiar na divina providência ou coisa do género. Naquela viagem, o risco era o costume, a beleza da paisagem idem, só a ventania dentro da cabine estava fora da rotina.
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