
A Universidade Lusófona realizou recentemente um seminário com o tema “Memórias do associativismo e sindicalismo docentes”. Propuseram-me, então, que aí deixasse o meu testemunho, as minhas recordações, acerca de como nasceram os sindicatos dos professores. Acedi, com a satisfação de poder, deste modo, legar memórias. Memórias que, ao que sei, nem nas comemorações dos 30 anos dos Sindicatos dos Professores nascidos em Abril de 74, nem agora, na passagem do 40º aniversário do Grupos de Estudo (que estiveram na base da sua criação), interessaram às direcções sindicais. Desdobramos essa intervenção em três partes – 1, 2 e 3 – para que se torne mais fácil a sua leitura nestes CAMINHOS DA MEMÓRIA.
Sigo por onde me permitem as minhas lembranças, os documentos que guardo, e a minha capacidade de interpretar o que vivi no movimento docente, até 1974. Talvez me alongue demasiado no entrelaçar de factos e de desenvolvimentos que, hoje, a 40 anos de distância, me parecem interligados e importantes na sua relação. Talvez a memória me traia em algumas situações. Talvez não devesse trazer ao conhecimento o que sempre foi desconhecido, (guardado no ainda hoje secreto da vida clandestina da luta anti-fascista). Proponho-me, simplesmente, dar uma achega para a história do sindicato de que sou sócia nº 3, deixando claro que não pretendo fazer a reflexão que cabe aos investigadores.
Os primeiros passos do movimento docente, em 1969 – o Congresso Republicano e as CDE
Creio que seria bom começar pelo princípio.
A meu ver, o movimento gerador dos sindicatos de professores teve início no período de preparação das eleições legislativas de 1969, e não seria capaz de o historiar sem abordar, ainda que com alguma ligeireza, a evolução da situação política e do movimento democrático de oposição ao regime, nos cinco anos que antecedem o 25 de Abril.
Em Maio desse ano, decorria a crise académica de Coimbra, quando se realizou o II Congresso Republicano de Aveiro. Teve grande impacto e uma dinâmica que viria a deixar marcas no movimento oposicionista. Ali acorreram inúmeros democratas de diversos pontos do país, apresentaram-se moções e aprovaram-se propostas/teses que visavam a continuação da luta. Teses sobre a Promoção do Ensino e da Prática Desportiva, sobre Alojamento dos Trabalhadores nos Centros Urbanos, sobre política cultural, sobre Habitação Social, sobre a Democratização da Educação, sobre a Previdência Social, sobre Desenvolvimento económico. Outras “teses” propunham a constituição de Grupos de Estudo e Acção, ou, ainda, de Comissões Promotoras do Livre Acesso à Cultura. A esta distância, estranha-se que a guerra colonial, iniciada quase uma década antes, tenha sido, contudo, muito timidamente abordada nesse encontro, mas assim foi.
Por essa altura, na organização clandestina do PCP (a que eu pertencia), discutia-se já a questão das eleições legislativas que se avizinhavam, na perspectiva de que mereciam um tratamento diferente do habitual. Tratando-se de mais uma “farsa eleitoral”, não se podia deixar que o aproveitamento desse momento político se limitasse, como sempre, à apresentação de uma candidatura da oposição, entregue às personalidades habituais, e com meia dúzia de comícios – à semelhança do que, tradicionalmente, acontecia nas campanhas eleitorais – com um reduzido interesse na estratégia de combate ao fascismo. Sabia-se de antemão que se assim fosse, o movimento que se gerasse estaria condenado a estiolar a curto prazo. E se era facto que com a chegada de Marcelo Caetano ao governo o fascismo se mantinha intacto, que a PIDE continuava a prender e a torturar democratas, que a liberdade de expressão se mantinha muito estreita (a Sociedade Portuguesa de Escritores acabava de ser encerrada) e que a guerra colonial prosseguia, a verdade era que, apesar de tudo, na aproximação das legislativas, se sentia alguma aragem de “liberalização”. Ora, no entender da direcção comunista, esta situação deveria ser aproveitada, nomeadamente, para “a luta contra a repressão, pela libertação dos presos políticos e por objectivos concretos imediatos, pelo direito de expressão de pensamento, pelo direito de organização e de reunião.” Tratava-se de implementar um processo de combate político que aproveitasse realmente, ao máximo, a situação de maior abertura que o período eleitoral propiciava, no respeitante a liberdades de reunião e de expressão. Nessa perspectiva, havia, pois, que sensibilizar os democratas de outras correntes políticas, para, paralelamente aos contactos com figuras públicas de diferentes ideologias, nos empenharmos em outros objectivos que ultrapassassem a constituição de listas, com vista à apresentação de candidaturas. A verdade é que foi grande a receptividade conseguida no seio da oposição para esta estratégia e, rapidamente, se pôde contar com diversas personalidades de prestígio político ou intelectual, conotadas com várias correntes ideológicas, que desde logo se envolveram nesse projecto.
Em Lisboa, bastante antes do período da campanha eleitoral, já se promoviam reuniões – por sectores profissionais e em diversos concelhos – com o objectivo de discutir e de listar reivindicações destinadas a integrar o programa de candidatura. A base das “CDE”s estava em marcha. Pretendia-se conseguir aglutinar descontentamentos, despertando nas populações consciência política, e criando bases de organização que, mais tarde, pudessem vir a ser aproveitadas para dar passos em frente, em matéria de movimentos populares unitários. Para a memória do sindicalismo docente nascido na década de 70, acho indispensável recordar o que foram essas Comissões Democráticas Eleitorais. Porque constituíram um movimento ímpar na luta anti-fascista, ao longo dos quase 50 anos de ditadura – um acontecimento com características e uma dimensão que, em minha opinião, se deve “espreitar” sempre que se quer compreender melhor algumas batalhas sectoriais travadas mais tarde, até à revolução; mas, também, nos anos que se seguiram à revolução e, porventura, ainda hoje.
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