Seguíamos num Volkswagen: eu acompanhava-os, até ver. O Alfredo Noales era jornalista do jornal República e tinha recebido do chefe de redacção a incumbência de fazer a reportagem. Para a censura cortar, inevitavelmente, de alto a baixo, claro. Ao seu lado, um amigo nosso, um camarada. No banco de trás seguia eu, impaciente, receosa.

Nas vésperas, tinham sido lançados panfletos por toda a cidade, chamando o povo a comemorar o 1º de Maio, a manifestar-se. Se a ditadura proibia toda e qualquer manifestação, “o primeiro de Maio” era assunto subversivo, cuja referência em lugar público, só por si, podia valer prisão. Nos últimos meses, reuniões e mais reuniões, lá em casa, tudo muito discutido, muito preparado, à porta fechada, mas nada passara por mim. Eu apenas sabia que algumas dezenas de brigadas clandestinas, furtivamente e durante noites e noites, iriam cobrir de propaganda a cidade de Lisboa e os arredores. Papéis, aos milhares, por todos os sítios: apelos à manifestação contra o regime e informação acerca das greves que, nos últimos meses, despontavam, umas a seguir às outras, nas empresas dos arredores.

Chegámos à Praça do Comércio uns dez minutos antes das 6 horas. Primeiro de Maio de 1962. Uma data histórica – que persiste em sobrar-me, em ficar-me para trás, sempre que quero escrever sobre a resistência ou sobre a repressão fascista. Talvez por ter sido a única vez que, em idênticas circunstâncias, passei mesmo ao lado da morte. “A-ssa-ssinos! A-ssa-ssinos! – Não se tratava de um grito demagógico, eles eram realmente assassinos.

O nosso carro ia devagar. As ruas estavam praticamente desertas e, olhando para as lojas e para os cafés, a óbvia normalidade assustou-nos. Estaríamos à beira de um fracasso? Era aquele o resultado de tanto trabalho de organização, tantos meses a fio? “Tem calma, Lena, ainda não são 6 horas!” Tanta reunião, tanta agitação, e um ambiente explosivo, no crescendo das greves, iria dar, assim, em nada? Seria que o povo não tinha coragem de assumir nas ruas o descontentamento que vinha manifestando à boca calada, e que já revelara, de forma tão convicta, tão expressiva, nas eleições do Delgado? Afinal, onde estaria esse povo? “Tem calma, Lena, ele vai aparecer!”Amedrontara-se? Não se atreveria a enfrentar as forças policiais que os estudantes haviam já defrontado, por mais do que uma vez, durante esse ano?

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Em 1964, com o fascismo no seu pleno, eu tinha 25 anos, ia a caminho de me tornar uma marxista-leninista convicta e já lutava fervorosamente nas fileiras do PCP. Para mim, era sagrada a frase “um terço dos países do mundo e dois terços da humanidade vivem em regimes socialistas” e lembro-me que sonhava com a oportunidade de, no futuro, poder conhecer de perto o mais avançado desses países, a “pátria-mãe” das sociedades sem classes – não havia de morrer sem ver o socialismo com os meus próprios olhos.

O dia em que me comunicaram que iria integrar a delegação portuguesa ao Fórum da Juventude, em Moscovo, foi um dos dias mais felizes da minha vida. À partida, éramos 10 – apenas duas raparigas – e nem todos militantes do partido. Saímos de Portugal, a conta-gotas, para Paris. Foi aí que se planeou cuidadosamente essa viagem à União Soviética e foi também aí que ficou um dos companheiros, desistente – o risco de se ser preso no regresso a Portugal era grande.

A 13 de Setembro, ainda Verão na Europa, voei sozinha para Moscovo, trajada tão primaveril quanto me pedia a minha alma. (Hoje, quer-me parecer que, de facto, não tinha ninguém assisado por perto…)

Quando desci a escada do avião, nevava, e não exagero se disser que a temperatura rondava os 15 graus negativos. Atravessei a pista em sandálias e casaquinho de malha, debaixo de uma aba de um opulento casaco de pele de raposa, pertencente à camarada russa destacada para me ir receber. Poucos minutos depois, essa simpática acompanhante recusava, em tom firme do poder, a entrega do meu passaporte à polícia, facultando-lhe uma folha à parte, dobrada em quatro, destinada a ser carimbada conforme o que fora combinado com a Embaixada Soviética, em Paris. (Carimbo de entrada num país socialista dava prisão pela PIDE, seguramente).

Os enormes prédios e a ampla avenida que percorremos após a saída do aeroporto (dezenas e dezenas de quilómetros) deixavam-nos embasbacados: porque, provincianos, nunca viramos nada assim, mas também porque o nosso olhar estava particularmente desperto para admirar as glórias do socialismo.

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Primavera, nos anos 70.
Percebi muito bem o recado que o camarada funcionário do Partido me mandou. Na quinta-feira da semana seguinte, iria ao Jardim da Estrela encontrar-me com um amigo, também militante a viver na legalidade, e levava-o para a casa de apoio onde, ultimamente, reuníamos. Não me foi dito de quem se tratava. Que quando o visse logo o reconheceria. Eu ia usar um casaco de malha preto e ele levava uma pasta na mão. Não era preciso combinar mais nenhum sinal, pois também ele me conhecia bem e fora avisado de que a pessoa que o aguardava seria eu. Que às 7.30 em ponto, eu já tinha de estar à porta da entrada do Jardim, no lado norte, isto é, junto à Avenida Pedro Álvares Cabral, e que esperasse que ele se me dirigisse. Senha e contra-senha, tudo combinado. Que, se o amigo não aparecesse ou se, indesculpavelmente, eu me atrasasse, voltávamos lá uma meia hora mais tarde; que devia certificar-me de que o campo estava “limpo”, sem indivíduos ou carros de aspecto suspeito, por perto, blá, blá, blá: os cuidados do costume.

A pergunta que ele iria fazer-me revestia-se de uma grande naturalidade: “O que fazes tão cedo por aqui?”. Porém, a resposta que me cabia dar-lhe era algo absurda para um dia de semana, ainda longe do Verão: “Estou à espera de uma boleia para o Algarve!”. Depois, uma vez cumprido tudo – estas duas frases ditas com absoluto rigor, sem falhas – apanharíamos um táxi para uma transversal à Avenida de Berna, ficando próximos da casa em que nos juntávamos com o camarada funcionário.

Saí da Penha de França muito cedo, para ter tempo de fazer um “corte” na viagem – era obrigatório… – isto é, tomei um autocarro até à Avenida Duque de Ávila, desci, e apanhei um táxi para a Basílica da Estrela. Depois, percorri a pé o passeio que ladeia o jardim, até à entrada norte. Sempre vigilante, olhando de vez em quando pelo canto do olho para trás, a verificar, como habitualmente, se não “ia seguida”.

Às 7. 25, ou por aí, postei-me à porta, observando quem se aproximava. Não tardaram 3 minutos, vejo-o surgir, de pasta na mão, e pensei: “Ai que engraçado! Este gajo é do Partido? Que bom!”. De facto, conhecia-o – era um democrata, um activista associativo que eu muito admirava, um amigo, até – mas tinha-o perdido de vista, havia anos.

Deu-me um beijo.
– O que fazes por aqui tão cedo? (As palavras da frase estavam ditas por uma ordem ligeiramente diferente, mas não seria por isso que não lhe responderia o combinado, pensei.)
– Estou à espera de uma boleia para o Algarve!
– Então boa viagem! Vou andando que estou cheio de pressa. – Disse, dando-me um outro beijo e largando em frente, pela Avenida, em passo acelerado.

“O tipo é parvo! O que lhe deu? Por que não reagiu à senha? Cheguei antes das 7.30, o “terreno está limpo”, tenho um casaco preto vestido, e respondi-lhe exactamente o que estava combinado.”

Ia começar a andar, de regresso a minha casa, chateada, interrogando-me acerca do mistério, quando vi aproximar-se, em passo acelerado, um outro amigo. Vinha de pasta na mão e, mal chegou, nem beijo, nem outro cumprimento:
– O que fazes tão cedo por aqui?
– Estou à espera de uma boleia para o Algarve!
– Vamos lá? – disse o camarada, agarrando-me pelo braço, enquanto nos preparávamos para atravessar a rua, em direcção à Pedro Álvares Cabral.
– Uf! Ó pá, não podes imaginar o que me aconteceu! Dois minutos antes de tu chegares, apareceu-me, não sei de onde, de pasta na mão, o João Cravinho. Deu-me um beijo, e não é que me fez exactamente a pergunta combinada!
– E então?
– Então, respondi-lhe esta coisa do Algarve. Ele fez um sorriso, não sei se achou natural ou não, e desandou. Felizmente estava com pressa… ou terá suposto que eu tinha um qualquer encontro de amor. Olha se tinha ficado à conversa, lá se ia a nossa reunião de hoje!

Publicada em CARTAS SOBRE A REVOLUÇÃO PORTUGUESA, Seara Nova, 1976 (*).

 
Gordes, 17 de Agosto de 1975

Caro amigo:

(…) Recordo-me da conversa que tivemos em Sagres, por altura da Páscoa, e não foi sem emoção que li agora as suas declarações, tão profundamente de acordo com o homem que então me falava me pareceram elas. Ouvi-o discorrer sobre a situação social e política do seu país e fiquei impressionado pela sua liberdade, pela sua franqueza e a inteligência das suas análises políticas. Você era socialista e eu comunista: nada de essencial nos separava. Lembro-me das suas reflexões: “a situação portuguesa é deveras original”, dizia-me, “e não há possibilidade de a comparar a qualquer outra; desencadeou-se um verdadeiro processo revolucionário; há lugar para esperança se todas as forças da esquerda se unirem com o MFA; mas é preciso estarmos vigilantes porque ainda não se atingiu o ponto de irreversibilidade do fascismo”.

Depois de nos termos separado, os acontecimentos precipitaram-se e as suas opiniões nunca deixaram de estar presentes no meu espírito.

Sou apenas um intelectual, precariamente informado quanto aos pormenores da vossa actual situação. Para mais, teria escrúpulos em “intervir” na política do vosso país. Contudo ao observar, aqui de França, a forma como todas as forças reaccionárias da Europa, da extrema-direita à social-democracia, desencadeiam contra a revolução portuguesa a mais gigantesca campanha de pressão, chantagem e calúnia a que se assistiu desde a guerra de Espanha, considero que um comunista pode, mesmo não sendo português, dar a conhecer a sua opinião.

É óbvio que o imperialismo mundial (americano e europeu) foi literalmente apanhado de surpresa pelo 25 de Abril e pela queda do fascismo.

Pensa-se com excessiva complacência, em determinadas camadas da burguesia e entre certos intelectuais, que o fascismo (em Espanha, em Portugal, na Grécia) se havia tornado, do ponto de vista do imperialismo, dos seus monopólios e Estados, um processo “arcaico”, “caduco”, “incómodo” e “dispendioso” que deixara de corresponder aos interesses de um “neo-capitalismo” activo e esclarecido. Por detrás deste juízo depara-se facilmente a ideia de que existiria em si, quer dizer, em todas as circunstâncias, uma forma “normal” do capitalismo “moderno” (isto é, do capitalismo monopolista ou imperialismo): a forma da democracia parlamentar burguesa, garantindo um certo número de liberdades individuais e políticas.

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Apresentado pelo PCP e subscrito por todos os partidos.

(Para ler, clicar na imagem.)

Esta é uma não-historinha, Rogério!

 
Fico em dívida contigo, mas ainda não consigo escrever com ligeireza, saltitando nas teclas do computador, atrás de um qualquer episódio do nosso passado comum. Creio que esta “branca” se deverá apenas ao facto de, hoje, pela primeira vez, eu não poder enviar-te o email que era da praxe, na véspera de seguir um escrito meu para os Caminhos da Memória. Custa-me saber que, amanhã, não receberei o teu comentário, na volta do correio, incentivando-me a mandá-lo, a escrever memórias, a escrever, escrever enquanto por cá andasse. Por isso, historinha, adio-a para daqui a uns tempos, prometo! Há pouco, quase me saía aquela do teu gato que fez um abundante “xi-xi” em cima do processo movido pelo Ministério da Educação a cinco conselhos directivos da Escola Nuno Gonçalves, de 74 a 77. Tu, na minha frente, muito comprometido: tinhas-te apercebido da situação, olhavas o original da “acusação” que me tinha sido oficialmente dirigida, sem saberes como te desculpares. E eu, para desanuviar: “Não te incomodes, Rogério! Só mostra que é um gato com espírito crítico. Haveria resposta para isto mais merecida do que uma boa mijadela de gato?” – Contava-la, divertido, (quando eu referia a tua preciosa ajuda na minha “defesa”) a quem ainda não conhecia o acontecimento, mais o caso, mais a ocorrência. Não, esta não interessa: comove-me, mas é ridícula. Depois, qualquer dia, conto outra.

Afogamo-nos na biografia dele como resistente anti-fascista, como pedagogo, investigador, jornalista, escritor, sindicalista e político. E Pai, sim – como esquecer? – Pai. Foi tal a sua vida, que mal conseguimos compreender onde foi buscar tanta competência e tempo para tanto. O tempo dá e mata. Será talvez por isso que, na hora da morte, houve quem se esquecesse de Rogério Fernandes (ou lhe trocasse, ou lhe omitisse traços importantes do perfil). Coisa de nada para quem tinha a inteligência e a argúcia que fazia dele uma das pessoas com mais humor que conheci. Imagino-o a reagir a tais factos, de sorriso aberto, com comentários bem-humorados, entre o cândido e o levemente mordaz. Sem sobranceria nem falsa humildade, mas realmente modesto e coerente. Seguro do seu percurso de amor à Educação e ao Ensino. E, muito possivelmente, também, convicto de que tinha valido a pena dedicar uma vida a ideais trazidos da juventude. Tenho como certo que olharia até com tolerância e bonomia o silêncio de alguma memória que, na hora da partida, se fazia sentir, pesava. O Reitor da Universidade de Lisboa, o secretário-geral da Fenprof, os colegas e os amigos, esses estavam presentes. Foram muitos os jornais, muitos os blogues que falaram dele, e é tocante a notícia da sua morte, escrita por Vítor Dias no seu Tempo das Cerejas. Em Outubro passado, já fragilizado, foi candidato na sua freguesia, pela CDU – como se, simbolicamente, quisesse dizer que, até ao fim, estaria ao serviço da política com modéstia.

Pessoalmente, perdi o amigo e companheiro de décadas de combates, que conheci há cinquenta anos, a abrir-nos a porta da Seara Nova, na Rua Luciano Cordeiro, numa fase em que por lá havia reuniões regulares da Oposição. Nos últimos anos, os anos da maturidade, foi um ponderado e fraterno interlocutor para discussões e discórdias – que são o sangue arterial das famílias. Um companheiro para o riso, para a troca de ideias, para o “agora conto eu” (historinhas do passado e sobre nós). Sempre, ou quase sempre, à volta de uma mesa com sabores e afecto. Sempre, ou quase sempre, com a Graça – os dois a lembrarem, discretamente, quem com eles convivia, que pode existir um amor para toda a vida.

Que mais razões haverá para amizade e admiração?

Decorria o primeiro ano da Revolução de Abril e as ruas enchiam-se de cartazes, de murais e de inscrições nas paredes – listagens de reivindicações veementes e cheias de pressa de um País oprimido durante décadas, à mistura com frases dos “anarcas” e dos fascistas.
A variedade era grande e colorida. Exigências para o logo logo, o imediato, o já já, tais como “Reforma agrária já!”, “Os directores fora das escolas já!”, “Independência das colónias, já!”, etc. Ou proclamações imbuídas de um espírito de salvação nacional com carácter de exclusividade – umas, acusatórias (mais ou menos ofensivas, mais ou menos liquidatárias de algumas personalidades políticas), outras contendo promessas (mais ou menos honestas, mais ou menos idealistas). O certo é que todas garantiam um futuro inigualável aos portugueses. Viviam-se os primeiros arrebatados tempos da Democracia. (Uma mudança menos agitada e com menos cravos poderia, provavelmente, ter-se traduzido em maiores avanços para a democracia económica e social – digo eu, que gostei demais desses anos de luta em constante frémito e festa – mas o estilo das revoluções não se encomenda a fornecedores ou se decide por votação de vontades, a nossa foi o que foi e, a meu ver, apesar de tudo deixou bons frutos).
A poluição propagandítistica e ideológica casava bem com o temperamento da generalidade do povo: as discussões de futebol ou nas famílias (por causa dos filhos, de dois palmos de terra arável ou de heranças) haviam dado lugar aos argumentos e contra argumentos sobre questões como o direito à habitação, o sexo antes do casamento, ou as últimas do Conselho da Revolução. No fundo, continuávamos iguais a nós próprios: românticos, generosos, gostando de festa e, sobretudo, opinativos e fervendo em pouca água. O desejo de convencermos cada português a ser um dos nossos tornava-nos, quase todos, intolerantes. A vontade de vencermos dava-nos persistência e levava-nos para a rua, em vagas de contínuas palavras de ordem, clamadas hora a hora. Ou escritas, de acesso fácil para todos. Assim sendo, o espaço público urbano tinha de ser disputado pelos diferentes partidos (umas dezenas). Em Lisboa parecia não restar a descoberto nem um milímetro quadrado e, como seria de esperar, a disputa acontecia corpo a corpo, em muitas ocasiões. Mesmo os mais calmos militantes defendiam por todos os meios a sua “dama”, isto é, a sua causa.
Naquela noite (outonal, suponho), assim que iniciei o turno de vigilância da sede do meu partido, cerca das 23 horas, reparei que estava prestes a sair um piquete de colagem de cartazes: os baldes, as trinchas e os rolos bloqueavam a ampla entrada do edifício. Eram uma meia dúzia de camaradas da cintura industrial: activistas abnegados, robustos, gente do melhor, mas que carecia de uma voz de contraponto à sua impetuosidade, uma presença calma e fria nas decisões. Surpresa? – Uma mulher.
– Lena Pato: estás destacada com o camarada X, que segue no carro com os materiais, para acompanhares esta equipa! Vão colar a partir do Marquês de Pombal, pela Avenida abaixo, e temos informação que há um grupo do MRPP que vem a subir dos Restauradores, colando do mesmo lado da Avenida. Prevêem-se provocações e queremos que ajudes a evitar confrontos. Vai a pé com eles, amiga, mantém-te sempre por perto, e modera os nossos, os mais exaltados.
Partimos. Começou a afixação. Tudo em ordem, tudo ok, o pessoal bem disposto e eu atenta à aproximação do grupo dos adversários.
Ei-los!

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Este texto foi escrito a partir do rascunho da minha primeira carta dirigida ao Ministério da Educação (1947)! Protestativa, dorida, mas cordata. Na Europa ainda havia cheiro a mortos do holocausto, Portugal reclamava ter tido uma posição neutral na guerra, nas escolas fazia-se a saudação nazi, os meus pais viviam num clima de medo por serem ambos funcionários públicos. Pertencíamos a uma família de ideias e de tradições democráticas –  o meu avô tinha sabido do fim da guerra fechado no Forte de Caxias, pelos gritos de “vitória!”.
A “heroína” desta história é a minha Mãe. Tem 94 anos, chama-se Maria Augusta, conversa sobre política como sobre tudo o que faz parte do presente. Acha que foi a melhor professora primária do mundo (e se calhar foi…) e comove-se sempre que recorda este episódio. H.P.

 
Senhor Inspector:

Eu tenho oito anos e ando na terceira classe e isto aconteceu na primeira semana de aulas. Eu vim para esta escola agora pela primeira vez e ela é a escola do bairro onde eu vivo em Lisboa. Eu andava muito contente porque a minha professora tinha-me sentado na mesma carteira com uma menina que é minha amiga e se chama Nina, e que mora ao pé de mim ali logo abaixo da minha casa. É que eu não conhecia ninguém aqui nesta escola porque eu andava na segunda classe na Promotora de Alcântara, que a minha Mãe era lá professora e eu ia com ela todos os dias de camioneta e num eléctrico. Mas então foi que a meio do ano passado ela ficou doente e eu pensava que era pouco doente, só assim com uma doença sem febre que ia passar, e então eu continuei a ir para aquela escola mas sozinha. Por isso e por ainda ter poucos anos mudei para aqui agora na terceira classe para esta escola do Bairro. Senhor inspector eu ainda estava cá há poucos dias mas gostava muito da minha professora e um dia entrou pela nossa sala adentro uma senhora muito alta e muito forte cá da escola que eu nunca tinha visto e as meninas levantaram-se e a minha professora disse que era para ficarmos de pé até essa senhora nos dizer podem-se sentar, porque ela era a senhora directora. Então a senhora directora disse zangada que também era para estendermos assim o braço quando nos púnhamos de pé e era para dizermos Bom dia senhora directora e eu nunca tinha aprendido isso do braço na minha escola de Alcântara mas fiz como as minhas colegas. Quando aquilo acabou sentámo-nos e a senhora directora perguntou Quem é uma menina que tem a mãe tuberculosa?

As minhas colegas ficaram todas caladas e eu também porque eu não sabia o que era isso e só depois nesse dia é que eu soube porque era que a minha mãe não ia dar aulas ao alunos dela que o disse a senhora directora e pensei logo que se calhar ela ia morrer. Então a senhora directora falou muito alto É aquela menina não é? E virou-se para mim com o dedo apontado e estava com uma cara muito má e eu já estava quase a chorar e vai ela foi ao pé de mim agarrou-me no braço com toda a força levou-me e sentou-me sozinha no fundo da sala longe das minha colegas e disse que era para eu não lhes pegar e avisou a minha professora que também era para eu não ir ao recreio e eu sempre a pensar que eu não sabia que eu estava doente, e então se a minha mãe fosse morrer?

E depois quando se ia embora a minha professora disse assim Vamos meninas levantem-se outra vez e digam Bom dia senhora directora e façam o que a senhora directora vos ensinou a sauda…a saudassão. Fizemos todas e depois eu esperei pela hora do recreio e fugi para casa e ia a correr muito e a chorar, só queria que me dissessem se era verdade se a minha mãe ia morrer que parecia que a directora tinha dito isso.

Ao outro dia ao intervalo eu estava aqui na sala a comer o meu lanche cheia de pena por não ir lá para fora com as outras meninas mas era para não lhes pegar e eu vi a minha mãe vir cá falar com a minha professora com um papel que acho que dizia que o que ela tinha não se pegava, mas ela estava era muito furiosa com a senhora directora por causa disso da saudass…da saudação. E então depois das meninas virem do recreio a minha professora Dona Lurdes voltou a pôr-me ao pé da minha amiga que se chama Nina e no dia a seguir eu já fui ao recreio e nós as duas e mais umas minhas colegas nunca mais fizemos essa palavra que eu não sei dizer, quando alguém entrava. Porque a professora disse que isso só faziam as que queriam porque acho que ela gostou do que a minha mãe disse. Foi assim e depois na outra semana a minha professora já não veio e agora eu estou a escrever esta carta porque andam a dizer que a Dona Lurdes está de castigo por causa de mim e eu queria dizer ao senhor inspector que as meninas daqui nós todas gostamos muito dela e que temos muitas saudades dela e que ela ensinava muito bem. E também quero dizer que ninguém me mandou escrever esta carta eu é que pedi à senhora professora nova Dona Luísa que nos veio dar as aulas se ela me deixava e ela é muito boazinha.

Obrigada senhora professora Dona Luísa
Adeus senhor inspector

Lisboa, 30 de Outubro de 1947
Maria Helena Pato

 
Adaptação de um texto publicado in Saudações, Flausinas, Moedas e Simones, Campo das Letras, 2006

Às vezes, a minha estante traz-me descobertas: livros que me foram oferecidos e nunca houve vontade de ler, ou que – como é este caso – por ali ficaram esquecidos, à espera de leitura num intervalo de acalmia da torrente “tsunamiana” dos anos da Revolução. Peguei agora no “Caxias: últimos dias do fascismo” de Orlando Gonçalves e já não voltei ao trabalho urgente que tinha entre mãos. O prazer manifesto com que o autor procura as palavras certas e joga com elas lembrou-me, de repente, que além de excelente jornalista tinha sido um amante das Letras. Mas quis, sobretudo, trazer aqui o testemunho de um companheiro da luta anti-fascista que saiu em liberdade em 26 de Abril de 74. Em minha opinião, um extraordinário testemunho. Uma escrita lenta, pormenorizada, à dimensão do tempo na cadeia, e mais ainda daquele que era vivido em regime de isolamento. A repetição dos gestos, evidenciada na repetição propositada da descrição desses gestos, reflecte bem a monotonia do quotidiano numa cela. O texto dá-nos a dimensão desse tempo – que se queria “estender ou encurtar” – e a importância dos gestos com que se preenchia esse tempo. O que mais me impressiona é a simplicidade com que nos transmite (ou recorda) o profundo significado do isolamento (a revolução começara muitas horas antes e Orlando Gonçalves divaga acerca do sal e da pimenta que a companheira lhe levara…).
A atenção a tudo que vem, não vem, ou se espera, dos companheiros das salas do rés-do-chão e do lado é qualquer coisa de comovedor para quem passou por ali. Ficamos a saber que, nesse 25 de Abril, quando os presos políticos ainda continuavam a ignorar o seu futuro, é uma voz feminina a primeira a ecoar no Forte, saudando a Democracia. Lindo! – Desculpem, não resisto ao simbolismo! – Helena Pato

 
Um texto de Orlando Gonçalves (*)

 
Mais um dia… Dias e noites sucedem-se obsessivos, sem fronteiras definidas, estupefacientes. Esta linearidade é também peça da engrenagem que nos tritura.

Amanheceu cinzenta esta quinta-feira, o céu e a terra a confundirem-se e a apertarem a esfera em que mal nos movemos. Nem sequer se distingue os contornos da Outra- Banda e o rio não é mais do que a fronteira neutra de continentes hostis.

Já cumpri a rotina matinal. Foi mais lento, desta vez, o passeio na cela. Aquela urgência inconsequente de atingir um destino deu nesta calma vulcânica que aparento. Enquanto caminho, os mais desencontrados pensamentos à velocidade do átomo. Todas as ameaças de ontem, todos os problemas que deixei suspensos, a sorte dos amigos e o destino do país, apresentam-se repartidos por um presente e futuro que sinto meus como se fossem de outrem. O cérebro é calda ignescente, só com dificuldade separo a realidade da ficção.

De novo procurei chamar a atenção do Navarro. Em vão! Por mais que batuque não vem qualquer resposta do outro lado. Que lhe terá sucedido? Tortura no reduto sul? Doença? Uma preocupação subsidiária a somar a tantas que me ocupam.

Será que os homens lá de fora compreendem a nossa situação? Suspeitarão eles, ao menos, da nossa existência entre muros? Refiro-me, em particular, aos homens que ao volante dos seus carros correm na estrada que se estende na minha frente.

Faz pouco tempo, entregaram-me outra encomenda da Luísa. Pelo rol, que confiro, sinto e sofro a sua solicitude. Pequenos nadas de que não se esquece: sal, pimenta, uma espátula de madeira…Um livro que mandou não me chegou às mãos.

Ontem ao meio-dia (hora legal), entreguei o requerimento a pedir autorização para receber livros e revistas. Foi-me devolvido, à noite, por carência de data. “É preciso fazer outro”, disse o guarda. Fazer outro? Bem que podia aproveitar papel, apor a data imprescindível, mas lá isso era contrário às regras daquele jogo. Rasgar, repetir, fazer outro, esse era o único remédio. Já fiz outro. Voltarei a entregá-lo na hora exacta e no cumprimento das boas normas.

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Tenho colaborado neste blogue com inúmeros testemunhos sobre os crimes cometidos pela PIDE/DGS. O tempo passa, escrevemos, falamos, e não se esgotam as más memórias. Foi exactamente no lugar onde agora se ergue este condomínio de luxo – indecorosamente (provocatoriamente) designado por “Paço do Duque” – que, durante décadas, se concentraram as forças “nacionais” da tenebrosa polícia política do regime de Salazar e Caetano. Era ali que, diariamente, 24 horas em 24, interrogavam, ameaçavam, espancavam, torturavam cidadãos que iam buscar a todo o país, acusando-os das suas ideias democráticas ou da prática de uma outra religião diferente da católica (como foi com as “testemunhas de Jeová de Almada”, em 1968). Pela noite dentro, chegavam carrinhas com homens, mulheres e, quantas vezes, crianças que os acompanhavam (tive na minha cela de prisão uma companheira que esteve sempre, meses, com um filho de 2 anos). Os directores, os inspectores, agentes e informadores agitavam-se num vaivém sem fim, de subidas e descidas, de entradas e saídas de carros, de mudanças de turno e de interrogatórios.

A sua sanha criminosa foi levada até ao fim e, por isso, ali caíram fuzilados quatro jovens, nossos irmãos na esperança da Democracia. A placa removida pela empresa de gestão imobiliária GEF é um modestíssimo testemunho da nossa memória.

Foram muitos milhares os portugueses que ali permaneceram noites e noites, submetidos à tortura do sono – às vezes, impedidos de se sentarem – e alguns deles ainda se emocionam quando passam naquele local. Estou entre esses. Não evoco o meu passado de resistente anti-fascista para reclamar a reposição imediata desse pequeno rectângulo em lugar condigno, ou para reclamar a edificação de um memorial. Mas lembro-me daqueles que já partiram e penso que a sua memória o exige. E exige respeito. Respeito que passa, também, pelo recato, pela discrição: a empresa imobiliária do “Paço do Duque” devia ter tido o bom senso do recato na publicidade que faz dos apartamentos de luxo. Não teve. Devia, ao menos, respeitar o compromisso assumido com o NAM e colocar a placa em sítio visível. Esperemos.

Não se queira trazer para o imaginário lisboeta uma história de sonhos, apagando uma história nacional de pesadelos. O meu pesadelo acabou no dia 25 de Abril, o destes senhores pode não ter ainda começado. Tenho setenta anos e muito respeito pelo Estado democrático, mas “com a história como horizonte” (tal como refere o site de publicidade do condomínio) olho aquelas reluzentes paredes exteriores e vejo o encarnado dos pingos de sangue que manchavam as paredes das salas de interrogatório.

 
A Universidade Lusófona realizou recentemente um seminário com o tema “Memórias do associativismo e sindicalismo docentes”. Propuseram-me, então, que aí deixasse o meu testemunho, as minhas recordações, acerca de como nasceram os sindicatos dos professores. Acedi, com a satisfação de poder, deste modo, legar memórias. Memórias que, ao que sei, nem nas comemorações dos 30 anos dos Sindicatos dos Professores nascidos em Abril de 74, nem agora, na passagem do 40º aniversário do Grupos de Estudo (que estiveram na base da sua criação), interessaram às direcções sindicais. Desdobrámos essa intervenção em três partes – 1, 2 e 3 – para que se torne mais fácil a sua leitura nestes CAMINHOS DA MEMÓRIA. A primeira parte pode ser lida aqui e a segunda aqui.

 
Os primeiros passos do movimento sindical docente na absoluta legalidade

Chegou o 25 de Abril e, ainda antes do 1º de Maio, os GEPDES não aguardaram orientações políticas ou partidárias: os elementos da sua Comissão Coordenadora esqueceram outros objectivos nacionais, afastaram diferenças ideológicas e deram continuidade ao projecto que os unia e os movia, havia tantos anos.
Em Lisboa, reunimos a 28 de Abril. Éramos uma vintena de professores – uns mais velhos, como o Professor Tiago de Oliveira, outros, gente muito nova, de vinte e poucos anos, como o Paulo Varela Gomes. Apertávamo-nos por trás de uma mesa e, alguns, sentados em sofás, numa sala obscura do Sindicato do Ensino Particular, situado a meio da Rua Conde Redondo. Eram poucos os colegas de quem não sabíamos o nome. Entrevíamo-los para além de uma barreira de fumo que ameaçava ir, mais tarde, fazer das suas. Hoje, sabemos de muitos companheiros desses “caminhos de memória” que se passaram para outra dimensão. Adiante, não interessa. Pertencíamos quase todos aos Grupos de Estudo do Pessoal Docente do Ensino Secundário e Preparatório. À tarde, seguiu-se a noite e, após uma animada ceia no bas-fond da prostituição – num restaurante por baixo – entrámos pela madrugada dentro. Opiniões em catadupa. Este sugere, aquele exige, o outro recusa, pressa muita pressa, e – sobretudo – uma vontade transbordante de aproveitar a situação para pôr os pontos nos “ii” em matéria de ensino, dos direitos profissionais e do funcionamento das escolas públicas. Queríamos conseguir rapidamente um sindicato de professores que exprimisse a nossa voz. À hora do jantar, entre portas ou junto ao balcão, vários de nós são surpreendidos por uma convocatória, feita de boca no ouvido do parceiro, para uma reunião ainda clandestina, com um “camarada” do PCP. “Ai tu também eras do partido?” – era a frase que se repetia, na surpresa indescritível dessa meia dúzia de colegas, amigos desde sempre, a quem era pedida confidencialidade.
Reunião da Coordenadora do Grupo de Estudos de Lisboa, novamente em dia seguinte, com mais gente, do ensino oficial e do particular – já em representação de um número significativo de escolas. Fecha-se a fase de preparação: redige-se um stencil que alguém “policopiaria” e que, horas depois, seguiria para as escolas e para a Comunicação Social. Às duas da manhã, estava aprovado por unanimidade o primeiro comunicado que deveria chegar aos estabelecimentos de ensino de Lisboa, de todos os graus de ensino, oficial e particular. Histórico:

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A Universidade Lusófona realizou recentemente um seminário com o tema “Memórias do associativismo e sindicalismo docentes”. Propuseram-me, então, que aí deixasse o meu testemunho, as minhas recordações, acerca de como nasceram os sindicatos dos professores. Acedi, com a satisfação de poder, deste modo, legar memórias. Memórias que, ao que sei, nem nas comemorações dos 30 anos dos Sindicatos dos Professores nascidos em Abril de 74, nem agora, na passagem do 40º aniversário do Grupos de Estudo (que estiveram na base da sua criação), interessaram às direcções sindicais. Desdobrámos essa intervenção em três partes – 1, 2 e 3 – para que se torne mais fácil a sua leitura nestes CAMINHOS DA MEMÓRIA. A primeira parte pode ser lida aqui.

Talvez a memória me traia em algumas situações. Talvez não devesse trazer ao conhecimento o que sempre foi desconhecido, (guardado no ainda hoje secreto da vida clandestina da luta anti-fascista). Proponho-me, simplesmente, dar uma achega para a história do sindicato de que sou sócia nº 3, deixando claro que não pretendo fazer a reflexão que cabe aos investigadores.

 
Com o ministro Veiga Simão, grupos organizados de professores criam sucessivas oportunidades de luta pela revalorização da função docente e pela sua Associação

Quase dois anos depois das eleições de 69, por 1971, reanimam-se as organizações unitárias da CDE: realizam-se encontros regionais e nacionais, constituem-se comissões de luta – contra a repressão, pela abolição das medidas de segurança (que permitiam manter indefinidamente em prisão um preso político, após o cessar do tempo de condenação), contra a censura e pela liberdade de expressão, com destaque para a Comissão Nacional pela Liberdade de Expressão. Surgem, entretanto, greves em diversas empresas e as manifestações tornam-se incontroláveis pelas forças policiais. É memorável o 1º de Maio de 1971 no Porto. Na tentativa desesperada de calar o descontentamento popular, Marcelo Caetano recorre cada vez mais à repressão.
No final de 1971, desfazem-se definitivamente as ilusões de uma via de transição gradual para a democracia. Marcelo Caetano faz uma viragem na condução do regime e desencadeia uma vaga repressiva de grande dimensão, desiludindo os últimos crentes na sua política de liberalização. As cooperativas são fechadas de forma brutal. Até a Cooperativa dos Trabalhadores de Portugal, que tinha sido sempre consentida mesmo durante o salazarismo, foi encerrada. Houve perseguições aos sindicalistas e encerramento de vários sindicatos, prisões de operários, de estudantes (um ano mais tarde, houve um estudante morto a tiro numa manifestação estudantil), prisões de padres católicos, e mesmo a ala liberal de Sá Carneiro na Assembleia Nacional viu serem recusadas todas as propostas no sentido de uma progressiva abertura no regime. Nas Universidades, foi decretado o “Estado de Excepção”, com a presença constante de forças policiais (fardadas e à paisana) no seu interior, e com a possibilidade de instauração de processos disciplinares aos alunos politicamente intervenientes.
É, de facto, neste quadro político, neste clima, que situamos a tomada de consciência, por parte de alguns professores, dos seus problemas, e a necessidade que sentiram de elencar reivindicações. Quer na preparação do II Congresso Republicano de Aveiro, quer, sobretudo, nas legislativas de 69, muitos de nós vínhamos conhecendo professores democratas de outras escolas, animados por anseios políticos e pedagógicos idênticos aos nossos. Debatemo-los em grupos e pelo país fora. E foi assim que apareceu na redacção do programa da CDE de Lisboa, um pequeno parágrafo que sintetizava a vontade dos professores: “A função docente tem de ser revalorizada, para o que importa: preparar séria e intensivamente novo pessoal, a todos os níveis e facultar-lhes processos de actualização; elevar o nível geral de vencimentos; recrutar professores com isenção e objectividade, atendendo apenas à preparação pedagógica e científica; tornar livre a criação de sindicatos representativos”. Creio que é a primeira referência à “criação livre de sindicatos (de professores).

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A Universidade Lusófona realizou recentemente um seminário com o tema “Memórias do associativismo e sindicalismo docentes”. Propuseram-me, então, que aí deixasse o meu testemunho, as minhas recordações, acerca de como nasceram os sindicatos dos professores. Acedi, com a satisfação de poder, deste modo, legar memórias. Memórias que, ao que sei, nem nas comemorações dos 30 anos dos Sindicatos dos Professores nascidos em Abril de 74, nem agora, na passagem do 40º aniversário do Grupos de Estudo (que estiveram na base da sua criação), interessaram às direcções sindicais. Desdobramos essa intervenção em três partes – 1, 2 e 3 – para que se torne mais fácil a sua leitura nestes CAMINHOS DA MEMÓRIA.

Sigo por onde me permitem as minhas lembranças, os documentos que guardo, e a minha capacidade de interpretar o que vivi no movimento docente, até 1974. Talvez me alongue demasiado no entrelaçar de factos e de desenvolvimentos que, hoje, a 40 anos de distância, me parecem interligados e importantes na sua relação. Talvez a memória me traia em algumas situações. Talvez não devesse trazer ao conhecimento o que sempre foi desconhecido, (guardado no ainda hoje secreto da vida clandestina da luta anti-fascista). Proponho-me, simplesmente, dar uma achega para a história do sindicato de que sou sócia nº 3, deixando claro que não pretendo fazer a reflexão que cabe aos investigadores.  

 
Os primeiros passos do movimento docente, em 1969 – o Congresso Republicano e as CDE

Creio que seria bom começar pelo princípio.
A meu ver, o movimento gerador dos sindicatos de professores teve início no período de preparação das eleições legislativas de 1969, e não seria capaz de o historiar sem abordar, ainda que com alguma ligeireza, a evolução da situação política e do movimento democrático de oposição ao regime, nos cinco anos que antecedem o 25 de Abril.
Em Maio desse ano, decorria a crise académica de Coimbra, quando se realizou o II Congresso Republicano de Aveiro. Teve grande impacto e uma dinâmica que viria a deixar marcas no movimento oposicionista. Ali acorreram inúmeros democratas de diversos pontos do país, apresentaram-se moções e aprovaram-se propostas/teses que visavam a continuação da luta. Teses sobre a Promoção do Ensino e da Prática Desportiva, sobre Alojamento dos Trabalhadores nos Centros Urbanos, sobre política cultural, sobre Habitação Social, sobre a Democratização da Educação, sobre a Previdência Social, sobre Desenvolvimento económico. Outras “teses” propunham a constituição de Grupos de Estudo e Acção, ou, ainda, de Comissões Promotoras do Livre Acesso à Cultura. A esta distância, estranha-se que a guerra colonial, iniciada quase uma década antes, tenha sido, contudo, muito timidamente abordada nesse encontro, mas assim foi.
Por essa altura, na organização clandestina do PCP (a que eu pertencia), discutia-se já a questão das eleições legislativas que se avizinhavam, na perspectiva de que mereciam um tratamento diferente do habitual. Tratando-se de mais uma “farsa eleitoral”, não se podia deixar que o aproveitamento desse momento político se limitasse, como sempre, à apresentação de uma candidatura da oposição, entregue às personalidades habituais, e com meia dúzia de comícios – à semelhança do que, tradicionalmente, acontecia nas campanhas eleitorais – com um reduzido interesse na estratégia de combate ao fascismo. Sabia-se de antemão que se assim fosse, o movimento que se gerasse estaria condenado a estiolar a curto prazo. E se era facto que com a chegada de Marcelo Caetano ao governo o fascismo se mantinha intacto, que a PIDE continuava a prender e a torturar democratas, que a liberdade de expressão se mantinha muito estreita (a Sociedade Portuguesa de Escritores acabava de ser encerrada) e que a guerra colonial prosseguia, a verdade era que, apesar de tudo, na aproximação das legislativas, se sentia alguma aragem de “liberalização”. Ora, no entender da direcção comunista, esta situação deveria ser aproveitada, nomeadamente, para “a luta contra a repressão, pela libertação dos presos políticos e por objectivos concretos imediatos, pelo direito de expressão de pensamento, pelo direito de organização e de reunião.” Tratava-se de implementar um processo de combate político que aproveitasse realmente, ao máximo, a situação de maior abertura que o período eleitoral propiciava, no respeitante a liberdades de reunião e de expressão. Nessa perspectiva, havia, pois, que sensibilizar os democratas de outras correntes políticas, para, paralelamente aos contactos com figuras públicas de diferentes ideologias, nos empenharmos em outros objectivos que ultrapassassem a constituição de listas, com vista à apresentação de candidaturas. A verdade é que foi grande a receptividade conseguida no seio da oposição para esta estratégia e, rapidamente, se pôde contar com diversas personalidades de prestígio político ou intelectual, conotadas com várias correntes ideológicas, que desde logo se envolveram nesse projecto.
Em Lisboa, bastante antes do período da campanha eleitoral, já se promoviam reuniões – por sectores profissionais e em diversos concelhos – com o objectivo de discutir e de listar reivindicações destinadas a integrar o programa de candidatura. A base das “CDE”s estava em marcha. Pretendia-se conseguir aglutinar descontentamentos, despertando nas populações consciência política, e criando bases de organização que, mais tarde, pudessem vir a ser aproveitadas para dar passos em frente, em matéria de movimentos populares unitários. Para a memória do sindicalismo docente nascido na década de 70, acho indispensável recordar o que foram essas Comissões Democráticas Eleitorais. Porque constituíram um movimento ímpar na luta anti-fascista, ao longo dos quase 50 anos de ditadura – um acontecimento com características e uma dimensão que, em minha opinião, se deve “espreitar” sempre que se quer compreender melhor algumas batalhas sectoriais travadas mais tarde, até à revolução; mas, também, nos anos que se seguiram à revolução e, porventura, ainda hoje.

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universidade coimbra

Em 1977, durante um processo de luta estudantil contra a reintegração na Universidade de Coimbra de destacada figura do regime fascista, a Associação Académica (AAC) organizou um “Tribunal de Opinião Estudantil”, iniciativa que mereceu franco apoio dos estudantes e um acolhimento favorável, mesmo nos meios não universitários. Respondendo a um apelo para a denúncia do que tinha sido o obscurantismo e a repressão nas escolas do Estado Novo, surgiram inúmeras personalidades ligadas ao ensino. Com a presença de professores e de dirigentes associativos de diferentes épocas, as sessões do Tribunal de Opinião Estudantil decorreram de forma extremamente viva, graças aos depoimentos dessas pessoas, e constituíram momentos importantes para o esclarecimento e a consciencialização da opinião pública acerca das lutas estudantis no passado e da repressão.
Apresentam-se aqui extractos da intervenção de um dos participantes: Joaquim Namorado*. Foi um lutador anti-fascista intransigente e um prestigiado intelectual. As sucessivas gerações de jovens que em Coimbra contactaram com ele, e a quem legou uma sólida consciência democrática, referem-no sempre com admiração e agradecimento. Note-se que se trata de um depoimento oral, espontâneo, sem os cuidados linguísticos de uma intervenção escrita, e que ocorre nos anos ainda quentes da Revolução.

 
«(…) Era eu estudante universitário de recente data quando, em 1931, se deu a revolta da Madeira. Os estudantes de Coimbra empunharam a sua bandeira e manifestaram-se na rua a favor dos revoltosos. Nesse ano, a faculdade era dominada pelo grupo de integralistas chefiado por Pedras Vital, o que não impediu uma manifestação estudantil na sala dos Capelos contra a ditadura militar. A repressão abateu-se sobre os estudantes junto à Porta Férrea, onde foram barbaramente espancados.
Contra os integralistas, reuniram-se os estudantes em torno do grupo seareiro de Coimbra, dirigido por Mário de Castro. Era nas salas de conferências e nos teatros que os seareiros ripostavam às agressões ideológicas e denunciavam a repressão dos tenentes da polícia. É conhecida a história acerca de uma intervenção de António Sérgio feita em Coimbra com outros membros da Seara, a propósito de um programa que propunham, com uma construção ideológica diferente, um programa que constituísse a base democrática e ideológica para uma solução republicana e definisse uma linha económica da abundância. Os integralistas sabotaram a sessão. Os estudantes responderam com outra sessão, onde o combate se alargou para além das balizas culturais.

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josé manuel tengarrinha

Em 2005, a Revista Seara Nova, então dirigida por Ulpiano Nascimento, publicou uma conversa com José Manuel Tengarrinha, um dos dirigentes que mais se destacaram na liderança da oposição democrática, em 1969 e 1973. Dessa longa conversa, em que o político e historiador reflecte e relata na primeira pessoa factos da resistência anti-fascista ao longo dos 48 anos da ditadura, transcrevemos a parte relativa ao movimento CDE.
 
 
Seara Nova – Em 1969, surge a Comissão Democrática Eleitoral (CDE). Todos estes aspectos que já abordámos influenciaram a CDE?
José Manuel Tengarrinha – Daí a necessidade de compreender as características que a CDE tem em 1969. É evidente que é fortemente marcada pela queda política de Salazar e pela pretensa esperança na abertura do regime. Todos nós fomos embalados nessa esperança, embora uns mais que outros. Na nossa área, a esperança era limitada, mas a área socialista estava eufórica. Mário Soares, que tinha estado no exílio em São Tomé, foi amnistiado por Marcelo Caetano e regressou. Este facto é importante para se perceber o contexto em que nasce a CDE. Mário Soares pretende apresentar-se como o dirigente máximo da oposição e como o interlocutor legítimo para Marcelo Caetano dialogar com a oposição. Nesse sentido, elabora um documento que é tornado público e enviado para Marcelo Caetano, em que diz que é preciso encontrar forças políticas capazes de ter visibilidade, e dando como completamente excluída a hipótese de o PCP desempenhar qualquer acção relevante no panorama da oposição portuguesa por se encontrar praticamente extinto. Ou seja, apresenta-se como o único capaz de ser a face da oposição democrática. Esse documento reúne cento e vinte assinaturas, entre as quais as de Urbano Tavares Rodrigues, Rogério Fernandes e outros.

SN – Que importância tem nessa altura e nesse contexto o II Congresso de Aveiro?
JMT – Era aí que queria chegar. Nota desta evolução que tenho estado a assinalar são as características dos três congressos de Aveiro. Os dois primeiros são congressos republicanos, só o último se designa Congresso da Oposição Democrática. 

SN – O que denota o peso do republicanismo histórico.
JMT – Exactamente. O primeiro é inclusive presidido por um antigo ministro da Primeira República. 

SN – Mas Mário Sacramento já participa.
JMT – É a condescendência porque não tinham ninguém que o conseguisse organizar. Reconheciam o Mário Sacramento e respeitavam-no, embora soubessem que era militante do Partido Comunista. Havia uma enorme admiração intelectual por Mário Sacramento, que foi o secretário do Congresso e teve grande influência em toda a sua organização, ainda que este primeiro congresso se tivesse limitado a fazer a denúncia política, com intervenções dispersas e com um acento mais «comicieiro» do que propriamente de reflexão sobre os problemas. O segundo congresso, em 1969, realiza-se já com o Marcelo Caetano como presidente do Conselho de Ministros e, nessa altura, a intervenção dos elementos da área comunista, digamos assim, tanto os intervenientes como os que estão na organização, já é mais forte. E tem esta característica que é interessante: está dividido em secções e com a preocupação de análise das situações concretas do País. Não é já apenas a proclamação política, como no primeiro, e no velho estilo da retórica republicana, mas um congresso em que se pretendeu estudar problemas e encontrar soluções. Dado que a participação foi muito mais diversificada que no primeiro congresso e dado que a nova situação política, com o Marcelo Caetano, trazia algumas perspectivas de que a oposição se apresentasse como uma força que exercesse influência na condução política, elabora-se a Plataforma de São Pedro de Moel. 

SN – A Plataforma de São Pedro de Moel assenta num acordo, mas nas legislativas de 1969 a oposição concorre em duas listas distintas.
JMT – Chegou-se a acordo, mas havia questões em que as divergências eram grandes e são estas que acabam por vir a determinar a existência da CDE e da CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática). Primeiro, a questão da guerra colonial com o reconhecimento do direito das colónias à independência que era visto pela corrente socialista de uma forma mais recuada, assente num estatuto de certa autonomia, diria que um neocolonialismo encapotado. Para isto, havia duas razões, uma delas por quererem captar sectores moderados da oposição, ainda na área próxima do republicanismo histórico que era colonialista; outra prendia-se com a pretensão de serem elementos válidos para o diálogo com Marcelo Caetano e, obviamente, se defendessem a independência das colónias não o conseguiriam, uma vez que para aquele a defesa das colónias era ponto de honra e quem defendesse a independência e o diálogo com os movimentos de libertação era, pura e simplesmente, considerado traidor. Recordo-me que nessa altura Mário Soares chegou a ter reuniões com o presidente da Acção Nacional Popular (ex – União Nacional) para tentar acertar posições. 

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O quadro foi retirado de um trabalho de António Teodoro, publicado em 1977. Apresenta as taxas de analfabetismo em 1970, por distritos, da população residente em Portugal, com 14 ou mais anos. Dele ressalta que 49,8% da população portuguesa, com 14 ou mais anos, não possuía nem frequentava o ensino primário elementar. Um importante dado da situação da Educação em Portugal anterior ao 25 de Abril, que vemos frequentemente esquecido em análises e reflexões do presente.

DISTRITOS

POPULAÇÃO RESIDENTE

POPULAÇÃO RESIDENTE COM 14 ANOS OU MAIS (Estimativa)

INDIVÍDUOS DE 14 ANOS OU MAIS SEM POSSUÍREM NEM FREQUENTAREM O ENSINO PRIMÁRIO

(%)

TOTAL

8 611 125

6 372 232

49,8

AVEIRO

545 230

403 470

46,9

BEJA

204 440

151 285

66,6

BRAGA

609 415

450 967

46,0

BRAGANÇA

180 395

133 492

54,6

C. BRANCO

254 355

188 222

61,4

COIMBRA

399 390

295 541

58,5

ÉVORA

178 475

132 071

63,3

FARO

268 240

198 497

63,1

GUARDA

210 720

155 932

59,8

LEIRIA

376 940

278 935

58,8

LISBOA

1 568 020

1 160 334

37,2

Cidade

760 150

562 511

31,0

PORTALEGRE

145 545

107 703

66,2

PORTO

1 309 560

969 074

40,3

Cidade

301 655

223 225

28,8

SANTARÉM

427 995

316 716

59,4

SETÚBAL

469 555

347 470

48,9

V. DO CASTELO

250 510

185 377

58,8

VILA REAL

265 605

196 547

52,8

VISEU

410 795

303 908

58,3

ANGRA DO H.

85 650

63 381

51,4

HORTA

40 600

30 044

51,5

P. DELGADA

158 765

117 486

51,6

FUNCHAL

251 135

185 840

53,4

«Apesar de o Instituto Nacional de Estatística não ter ainda divulgado os resultados definitivos do 11º Recenseamento da População efectuado em 1970, pode-se contudo apresentar uma aproximação estatística (…), sobre a situação actual do analfabetismo no nosso país. 1.789 360 (28,1%) declararam não saber ler nem escrever.»

António Teodoro, Sobre as qualificações escolares e profissionais dos trabalhadores portugueses, em Cadernos Seara Nova, 1977.

GEPDESP

Reunimos. Éramos uma vintena de professores – uns mais velhos, como o Tiago de Oliveira, outros, gente muita nova, de vinte e poucos anos, como o Paulo Varela Gomes. Apertávamo-nos por trás de uma mesa e sentados em sofás, numa sala obscura do «Sindicato» do Ensino particular, situado a meio da Conde Redondo, em Lisboa. Eram poucos os colegas de quem não sabíamos o nome. Entrevíamo-los para além de uma barreira de fumo que ameaçava ir, mais tarde, fazer das suas. Hoje, sabemos de muitos companheiros desses «caminhos de memória» que se passaram para outra dimensão. Adiante, não interessa. Pertencíamos quase todos aos Grupos de Estudo do pessoal docente do ensino secundário e preparatório – uma estrutura nacional nascida poucos anos antes e que adquirira uma crescente ligação aos professores, de norte a sul do País. (*) 

À tarde, seguiu-se a noite e, após uma animada ceia no bas-fond da prostituição – num restaurante por baixo – entrámos pela madrugada dentro: opiniões em catadupa. Este sugere, aquele exige, o outro recusa, pressa muita pressa, e – sobretudo – uma vontade transbordante de aproveitar a situação para pôr os pontos nos ii em matéria de ensino, dos direitos profissionais e do funcionamento das escolas públicas. Queríamos conseguir rapidamente um sindicato nacional de professores que exprimisse a nossa voz.
Reunião, novamente, em dia seguinte, com mais gente – já em representação de um número significativo de escolas. Fecha-se a fase de preparação: redige-se um stencil que alguém «policopiaria» e que, horas depois, seguiria para os professores e para a Comunicação Social. Às duas da manhã, estava aprovado por unanimidade o primeiro comunicado que deveria chegar aos estabelecimentos de ensino de Lisboa, de todos os graus de ensino, oficial e particular. Histórico:

«A Comissão Coordenadora do Grupo de Estudo do Pessoal Docente do Ensino Secundário e Preparatório de Lisboa, em reunião com professores de escolas do ensino secundário, preparatório, primário e infantil, de Lisboa e concelhos limítrofes, considerando:
1º – que é abusiva e despropositada a atitude assumida por alguns directores de escolas do Ciclo Preparatório de Lisboa de apoio à recondução do professor Veiga Simão no Governo Provisório;
2º – que a existência de um ministro do antigo regime neste Governo Provisório poderá dar imagem pública de uma Junta de Salvação Nacional hipotecada a ideias e personalidades do regime derrubado;
3º – que, à luz da nova situação criada pelo 25 de Abril, se torna urgente discutir e encontrar colectivamente a solução para os graves problemas que afectam o professorado
Convoca a classe para uma Reunião Geral de Professores, no dia 2 de Maio, às 21.30 h, em local que será oportunamente divulgado através dos órgãos de informação.»  

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Livro

Havíamos regressado a casa, finalmente, uns dias antes do 25 de Abril. Tínhamos andado pelo estrangeiro, fugidos, à espera que a situação do Zé se definisse. De tempos a tempos era isto.
Voltámos na convicção de que o perigo de prisão tinha passado. No dia de chegada, antes de nos deitarmos, queimámos tudo quanto era papel que pudesse incriminar-nos. Eram tantos – ou a nossa minúcia tão grande – que a sanita em que decorreu a operação estalou com o calor. (Confesso que, até hoje, continua rachada porque sempre que tenho obras em casa me esqueço de a substituir – e às vezes interrogo-me se no subconsciente a quero assim, testemunho concreto e visível de que o fascismo existiu…). Depois, pela noite fora, fizemos ainda inúmeros lançamentos da varanda do nosso quarto, de rolos de jornais clandestinos atados com um cordel, para os pátios do casario do Bairro das Colónias. Para que alguém os lesse e aproveitasse com aquela operação de limpeza. Materiais clandestinos eram sagrados. Evitávamos desperdiçar todos os que, pelo seu conteúdo e actualidade, constituíam um meio de informação importante acerca do que se estava a passar no País e nas Colónias.
Só então ficámos em paz. Porém, efémera. 

Ao alvorecer, tal como era prática deles naquelas circunstâncias, tocaram-nos à porta e, à mesma hora, à porta de mais uma dúzia de antifascistas, em Lisboa. Quase em simultâneo, o nosso telefone começou a soar ininterruptamente: eram jornalistas e familiares de amigos que também tinham sido presos, querendo avisar-nos da vaga de prisões. A informação estava a chegar aos poucos aos jornais. Para nós, era tarde. Entraram-nos pela casa dentro três agentes da PIDE/DGS e um inspector que informou, imediatamente, o Zé de que «estava detido para averiguações» – a fórmula do costume. Mandaram-no arranjar com brevidade e, enquanto um deles se colou à porta entreaberta da casa de banho, os outros dois passaram a casa a pente fino. Procuravam algo que o incriminasse.
Finda a busca esmiuçada, começaram a atirar energicamente para o chão os livros que retiravam das estantes. Ao fim de poucos minutos, tinham umas dezenas de livros seleccionados para apreensão, acumulados em pilhas – na maior parte, com base em critérios evidenciando a sua profunda ignorância – e eram inúmeros os que atapetavam o chão da sala.
Enquanto isto decorria, as crianças dormiam. A nossa filha R., ainda bebé, provavelmente sonhava com ursinhos e gaivotas, mas escondia um manancial de informação capaz de lhes alimentar semanas de interrogatórios. Ao toque da campainha da rua, antes de lhes abrirmos a porta, corremos para o carrinho dela e colocámos a agenda do Zé debaixo do colchão. (Na véspera, tínhamos evitado destruí-la por conter um sem número de anotações importantíssimas, algumas mesmo imprescindíveis). Embora tivesse admitido que aí não iriam, logo que vi oportunidade fui lá buscá-la e passei-a à nossa empregada, que a escondeu prontamente junto ao corpo. Pedi-lhe entre dentes e entre portas que fosse às compras e a deixasse em casa de uma vizinha. Eles obrigaram-na a mostrar a cesta, estipularam-lhe um tempo para a saída, mas deixaram-na partir. 

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moeda escudo

Esta é uma «historinha» das prisões e da Resistência, que não sei se cómica ou se, pura e simplesmente, estúpida. De trágica ou terrível é que não tem nada. É facto que quando aconteceu a achei arrepiante mas, acima de tudo, senti-me desafortunada. 

Após dois inofensivos interrogatórios na sede da PIDE, deixaram-me isolada, a secar, sempre na mesma cela, em Caxias. Durante meses – para eu desmoralizar, claro. Como se eu não existisse. Esperavam que a táctica surtisse efeito. Acordava todas as manhãs a pensar: «É hoje que me vêm buscar para a tortura do sono…» Entretanto aguardava. Vivia como os dependentes anónimos – um dia de cada vez, definindo tarefas para o próprio dia e objectivos para o dia seguinte, e exercitando o auto controlo.
Durante meio ano, nunca fui ao recreio, nunca me foi autorizada a leitura de jornais ou de livros, nunca pude ter comigo papel ou caneta, e proibiram-me a entrada de tudo quanto pedia à família: linhas, pano, tesoura, lã e agulhas para coser ou tricotar. Nem, sequer, me deixaram entrar umas míseras aguarelas para pintar as flores de miolo de pão que fazia aplicadamente, com o intuito de as oferecer aos amigos, um dia quando saísse. Tinha apenas uma visita semanal de 20 minutos com duas pessoas da família próxima, num parlatório onde conversávamos separados por um vidro e na presença de dois agentes da PIDE. O tratamento clássico para quem estava em regime de isolamento.
Perceber-se-á, assim, que – enquanto não me juntaram com uma amiga do mesmo «processo», a Emília, (numa óbvia tentativa de nos apanharem desprevenidas em confidências que nos incriminassem) – o meu quotidiano tenha sido, durante meses, totalmente solitário e preenchido com rotinas domésticas do lava e limpa, mais uma ginasticazita e muitas voltas à cabeça. De manhã à noite filosofava. Um prazer que não controlavam nem podiam tirar-me. Voava até onde a experiência de vida me permitia ir. Tinha perdido o Alfredo havia pouco tempo e fugia, por todos os meios, de dar em doida a olhar para aquela altíssima barreira de terra, nas traseiras do Forte, a um metro de distância das minhas grades. Deliciava-me a espreitar a nesga de céu que, a custo, entrevia. Ficava horas a ver crescer florinhas amarelas na barreira e a seguir de perto as caminhadas atarefadas das formigas na terra, invertendo a marcha, muito lestas, quando recebiam recados segredados de outras (mensageiras?) que se cruzavam com elas.
Contudo, o que mais me entretinha era pôr-me à coca: ouvir e espreitar pelas frestas o que acontecia no exterior da cela. O corredor trazia-me um mundo inesgotável, pronto a ser observado por quem, como eu, não dispunha de nada para fazer, senão o que ia inventando. Encostava o ouvido à porta ou o olho a uma frincha (entre as tábuas de madeira), e ocupava-me a descortinar falas, a interpretar sons, a explicar o movimento de gente que esporadicamente passava – guardas, enfermeiras, gente da cozinha; e, também, a ouvir o bruaá das companheiras que iam e vinham de interrogatórios, que se dirigiam às visitas ou ao invejado recreio. Mas bom, bom, reconfortante, era colar a cabeça aos ferros da grade para ouvir pedacinhos que se desprendiam das conversas nas celas do lado: gargalhadas e frases soltas, despreocupadas, ou que eram propositadamente atiradas alto, para que eu as ouvisse. Solidárias e encorajantes. Às vezes, claro, contactávamos recorrendo às «universais» batidelas dos nós dos dedos na parede, usando o tradicional código. Mas como eu não estava acompanhada, esses diálogos tornavam-se perigosos e eu poupava-os para o muito importante. 
Um dia, apercebi-me de que, junto à porta da cela vazia situada em frente da minha, havia um estranho movimento. Apressei-me a «cuscar» e tive logo a certeza de que assistia à entrada de alguém que eu conhecia muito bem. Nas horas seguintes, repeti a «operação frincha» sempre que a dita porta voltava a abrir-se, e não demorei a confirmá-lo. Era ela, sim. Apesar de muito doente, também tinha sido presa. A Aida Paula. O seu passado dava garantias: àquela não arrancariam palavra – eu não tinha por que recear. 

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R. V. Cousin - Paris 

(As Simones ou memória de Mulheres) 

No início da década de 60, a emigração para França do Portugal pobre e rural acontecia já em massa, sendo muitos os milhares de portugueses que se concentravam nos bairros dos arredores de Paris. No entanto, até meados dessa década, era ainda restrito o número de exilados políticos. Por 1963, começou a dar-se a fuga para o estrangeiro de um número significativo de intelectuais e estudantes (homens e mulheres) perseguidos pela PIDE, aos quais, aos poucos, se foram juntando infindáveis levas de jovens que recusavam partir para a guerra colonial. Quase sempre chegavam «a salto». 

Eu fui daqui em 62. Nessa altura, os exilados políticos residentes em Paris ainda mantinham um relacionamento próximo, amigável e muito solidário, mesmo quando tinham opções ideológicas distintas. O primeiro jantar de Ano Novo passámo-lo em casa de uns camaradas franceses amigos da Maria e do Jacques, com a Stella e o Piteira Santos, o António J. Saraiva, a Maria Lamas, o Lopes Cardoso e a Fernanda – todos à volta de um bacalhau cozido, temperado com manteiga porque não havia azeite, todos saudosos, todos amigos e, como diz o slogan, todos diferentes e todos iguais. Só mais tarde, por 1964, se instalou no «grupo do Quartier Latin» um clima de alguma intolerância que, em grande parte, reflectia divergências decorrentes do conflito sino-soviético. A luta contra o fascismo nunca foi unicolor, mas no exílio as diferenças ganhavam outra dimensão, ecoavam de forma especial num espaço vazio de acção política directa. No entanto, guardo, desse tempo, a memória dos laços de fraternidade a sobreporem-se às divisões, quando era humanamente preciso. Conflitos estéreis prontos a darem lugar a gestos solidários. Ficámos amigos. É ver-nos ainda hoje – e, com a idade, cada vez mais… – abraçando companheiros de exílio, adversários de então. Gente que um dia insultávamos ou a quem não falávamos e que, no dia seguinte, íamos visitar ao hospital. Exílio na década de 60 era isto.   

A verdade é que, durante anos, nos reuníamos diariamente nos cafés do centro do Quartier Latin para discutirmos a situação em Portugal, ou numa ânsia de sabermos novidades – umas chegavam-nos por carta, outras eram notícias que nos levavam aqueles que se ia juntando ao grupo dos exilados, ou gente que ia até Paris em turismo e, sobretudo, a família que nos visitava. Vivíamos trocando gestos de cumplicidade e de carinho únicos: uma posta de bacalhau recebida como encomenda, pelo correio, dava um arroz malandro para oito; o maço de Português Suave oferecido por um amigo dividia-se por quem no Café du Luxembourg, no Mahieu, ou no Capoulade, se aproximava saudoso daquela mesa. Na nossa única assoalhada – sala/quarto/cozinha – da Rue Victor Cousin, sentávamo-nos cinco ou seis no chão, sobre a manta azul-cobalto que fazia de carpete, para ouvirmos em silêncio, como um hino, o disco Verdes Anos do Paredes, sem que ninguém se envergonhasse das lágrimas que discretamente se secavam – Exílio na década de 60 era isto. A ida do CITAC (Grupo de Teatro de Coimbra) a Paris, em 1964, não deu apenas cobertura à fuga para o estrangeiro de alguns dos seus elementos: deixou inscrita nos muros dos cais do Sena – tenho a certeza – a voz do Adriano. Num alvorecer frio (creio que de Maio), com a guitarra colada ao peito, ele ergueu a sua portentosa voz por cima de um coro de dezenas de exilados e de actores que cantavam a canção do Zeca: Ergue-te ó sol de verão! / Somos nós os teus cantores / Da matinal canção / ouvem-se já os rumores / ouvem-se já os clamores / ouvem-se já os tambores…etc, etc. E, como se isso não tivesse bastado para nos reacenderem o ânimo e nos deixarem com um peculiar sabor a Pátria, já pela manhã, na Gare d´Orleans-Austerlitz, ainda se trocaram tantos abraços e beijos que, nas janelas do «Sud Express», as mãos de quem partia e de quem ficava não se largavam, e o comboio saiu atrasado – Exílio era isto. Noite memorável: não encontro melhor imagem dos amargos tempos do exílio.   

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Assembleiada Republica

A esta distância, pelas minhas contas, creio que corria o ano lectivo de 1957/58. Contas de um longo rosário (ver a nota informativa que junto a este testemunho).
O dia 16 de Janeiro de 58 iria ser um dia especial: aos meus olhos de jovem, acabadinha de sair de um liceu da Capital poucos meses antes, eram milhares os estudantes universitários que se encontravam na Assembleia Nacional, prontos a pressionarem o simulacro de debate que aí teria lugar. Estava em causa um decreto-lei que visava liquidar o movimento associativo estudantil, em crescente expansão nos anos lectivos anteriores. Na verdade, com o Dec-Lei 40900 o Governo propunha-se restringir a autonomia das Associações e Pró-Associações de Estudantes do Ensino Superior, limitando-lhes de tal modo as funções que, na prática, as encerrava através de legislação.
De uma coisa tenho a certeza: alguns estudantes nem conseguiram entrar e a maior parte ficou pelos corredores, enchendo-os, sem sequer aceder às galerias. Não havia lugares para tantos. Mas eu entrei e lembro-me, lembro-me desse dia muito bem – já vão ver porquê.

Em baixo, os deputados, vestidos de negro, pareciam-me semi-adormecidos, recostando-se nas cadeiras como se procurassem uma posição confortável para a sesta. Não seria exactamente assim, mas tantos anos depois ainda retenho a imagem de uma massa negra sonolenta, emitindo um estranho rumor, produto confuso de múltiplas exclamações de «Apoiado!» com algo que então se me afigurou ser o ressonar de uns quantos, já completamente caquécticos. Isto enquanto uma meia dúzia de oradores com maiores convicções, ou mais ambição política, discursaram, a tentar ser escutados por um mumificado presidente da Assembleia.
Duraram pouco esses momentos em que, cheios de bom humor, gracejávamos, observando tudo atentamente, registando inconscientemente para a História a nossa visão da Assembleia Nacional fascista em funções. Era facto que tínhamos ido ali com um objectivo preciso – acompanhar os dirigentes num gesto inequívoco de contestação – e só nos mantivemos em silêncio enquanto aguardámos a entrada do Dec-Lei na ordem do dia. Depois, aconteceu uma espontânea pateada geral, com a consequente expulsão de todos nós das galerias e do edifício. Em boa verdade, a minha história começa aí.
Nas escadarias da Assembleia começou a desenhar-se uma manifestação que, claro, foi prontamente reprimida pelas «forças da ordem». A polícia chegara às centenas antes do início da sessão, já tinha começado a bater nos que não chegaram a entrar no edifício e aguardava sofregamente a nossa saída. Eram dezenas e dezenas, de cassetete em punho, numa corrida louca, carregando forte e feio sobre todos os que conseguiam apanhar. Alguns de nós tentaram escapar-se, subindo as Escadinhas da Travessa da Arrochela, em frente do Palácio de São Bento, e muitos foram brutalmente espancados nesse lugar. Lugar de memória, esse.

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Partidos nas eleições de1975 

Aqui Posto de Comando das Forças Armadas! – Era o que o meu coração de 35 anos voltara a ouvir. Como se tivéssemos rebobinado o filme da Revolução, um ano para trás. A festa regressava. Lisboa matava saudades do primeiro de Maio de 74.

As rádios e a televisão engalanavam-se com músicas a condizer e reportagens sobre o acontecimento, melhor dito, sobre os acontecimentos. As pessoas ainda se comoviam quando falavam do 25 de Abril, para as câmaras. E, contudo, nada de palavras alusivas aos partidos, que toda a gente cuidava de respeitar a nova lei eleitoral. Nesse dia, íamos votar. Todos ou quase todos, e muitos pela primeira vez.

Vinte e cinco de Abril de 75: o voto em liberdade!

No teu voto a força do povo – tinha sido um slogan nosso, da oposição, nas eleições fascistas de 1969.       

Para muitos, uma vida e, para mim, anos e anos à espera daquele dia. Eu tinha sido nomeada presidente de uma mesa de voto e, por isso, quase não dormira. Com a preocupação de que algo não corresse bem, com um sentido de responsabilidade infantil, à medida da novíssima democracia. (Voltei a lembrar-me dessa sensação quando vi, pela televisão, a transmissão da votação do referendo em Timor, e me comovi com as filas de timorenses, a aguardarem a sua vez, desde a madrugada. Um povo quando acredita na força do seu voto, vai, não desespera, aguenta, festeja).      

Antes das 7 horas saí de casa, com o meu fato de eventos – já batido, mas cerimonioso – e com um sorriso para o mundo, pronta para eternizar, na minha memória, as horas que iria viver. Sentia-me como se estivesse apaixonada: tudo me parecia irreal, a cidade branca, a luz rósea-doce, as pessoas encantadoras. Os lisboetas eram novamente a melhor gente do mundo e, a cada virar de esquina, em cada paragem de autocarro, voltavam a oferecer-nos a generosidade e a ternura com que nos tinham surpreendido na primeira semana da Revolução, um ano antes. A magia voltara.

Mal fecho a porta de casa, começo uma caminhada a pé, sempre à procura nos olhos dos vizinhos de encontros com os meus, de uma cúmplice alegria silenciosa. «Que contente que estou! Será que eles, os madrugadores da Penha de França e da Graça que se cruzam comigo, me compreenderiam se, neste momento, lhes garantisse que nunca irei esquecer o dia de hoje? Que, tal como na canção do Sérgio Godinho, este dia me parece ser, outra vez, o primeiro do resto das nossas vidas?» – pensava, contendo-me no impulso de os beijar, em lugar de lhes fazer um aceno cordial.

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« Au bord du grand lac paisible/ Je viens entendre souvent… » Cheguei ao Liceu Filipa de Lencastre por volta das duas da tarde, ouvindo ao longe estes versos mágicos, mas com a premonição de que as coisas não iriam correr bem. Era a festa do fim de ano – estavam famílias, as professoras e alguns convidados – e no meu coração havia três razões para um pesado nervosismo. Quase não conseguia controlá-lo. Sabia que o Mário Ivo tinha sido autorizado a assistir, eu ia cantar a solo o Le bonheur, e levava um vestido que me caíra do Céu, isto é, de Nova Yorque – herdado de uma prima minha que o usara na sua festa de fim do curso liceal. O cenário não podia ser mais romântico. «La voix d’un charme indicible…» O vestido!

O vestido, em organza, era muito rodado, com a saia armada, e ajustado na cintura por uma fita de seda azul que dava uma laçada. Tinha um ligeiro decote e não tinha mangas. Sobretudo isso: não tinha mangas. Entrei no átrio com a minha mãe, os meus irmãos pequenitos e duas amigas que iam assistir. O Mário Ivo estava lá, «…la voix d’un charme indicible / qui vient me parler doucement» exibia uma farda do exército e eu nunca o vira fardado, senão na fotografia que ele me tinha oferecido, na única vez em que conversáramos. (Uns meses antes, pelo Carnaval, dançámos e dançámos e dançámos numa festa, à tarde, em casa da Ilda. Depois, de tempos a tempos – já a fé dava indícios de começar a desaparecer-me – a Nossa Senhora ainda ouvia as minhas preces empenhadas, na Igreja S. João de Deus, e punha-mo no meu regresso a casa. A uns cem metros do liceu, que era a distância autorizada pela reitora para as esperas dos rapazes, ele atravessava a rua e vinha falar-me «L’écho de la voix amie / remplit à jamais mon coeur».)

Sentia-me bem naquele vestido: não tinha apenas dezasseis anos, estava mais mulher, mais bonita e moderna, como uma estrela de cinema. Reparei que ele me sorriu quando passei pela coxia do salão de festas, em direcção ao palco – eu a fazer de conta que não o procurava com o olhar, já a tremer, preparando-me para cantar. Recordava as palavras, entoando para dentro a canção que a minha estrela guia do Canto Coral, a querida Dona Sara, me tinha escolhido:

Au bord du grand lac paisible.
Je viens entendre souvent,
la voix, d’un charme indicible

Qui vient me parler doucement.
L’écho de la voix amie
Remplit à jamais mon coeur.

Foi então que acabou tudo. O pensamento parou-me de repente. Nem subi os degraus que levavam aos bastidores. «Como? Pode lá ser! Não! Por amor de Deus, não!» – atrás de uma porta, comecei por engolir as lágrimas, muda.
– A menina Pato segue i-me-di-a-ta-men-te para os balneários! Não canta! Não quero ouvir-lhe nem uma palavra! Para si, a festa acabou!
– O que é que eu fiz, senhora Dona Virgínia?
– Ainda se atreve a perguntar? Um vestido indecoroso, menina Pato! Decotado e sem mangas…Como foi capaz?
– Vou num instantinho a casa mudar…Queria tanto cantar!
– Rapidamente para os balneários, se não quer ser suspensa! Foi a segunda que fez, neste período, menina Pato! Lembra-se do que eu lhe disse quando a apanhei, no pátio, a correr mesmo em frente à imagem de Nossa Senhora? Avisei-a que da próxima seria suspensa! Duas graves faltas de respeito à Virgem Maria…
– Mas hoje não, por amor de Deus, senhora dona Virgínia!
– Não há mas, nem meio mas!
«Não posso acreditar que não canto! Eu matava esta mulher!» – dizia para mim própria, em soluços – agora em estado de raiva – a caminho do castigo.

Au bord du grand lac paisible.
Je viens entendre souvent…

A primeira vez que cantei o Le Bonheur em público acabou por ser na Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências, num «convívio», uns meses depois. Estava feliz: tinha acabado de entrar para o MUD Juvenil.

muguet
 
«Paço do Duque» – designação do empreendimento de luxo erguido sobre os escombros da sede da PIDE/DGS na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa (Ler post de Joana Lopes neste blogue.) 

Era Dia Primeiro de Maio, em França o dia de oferecer «muguet» aos amigos. Eu regressava do Hospital Universitário, onde deixara o A. internado. Os exames médicos tinham sido conclusivos: uns meses de vida.
Percorria a estação de metro sem conseguir abafar os meus próprios soluços, cruzando-me com centenas de parisienses, quase todos de «muguet» na mão ou preso no peito. Muitos deles parados, beijando-se. Cenário de filmagem: cenas de amizade e de amor. Eu própria pareceria figurante. Quando, na gare, me sentei a aguardar que o barulho dos carris me trouxesse depressa uma carruagem sabia bem que aquele momento configurava o primeiro acto da tragédia que iríamos viver nos meses seguintes.
Ainda acreditámos que a PIDE o deixasse regressar a Portugal, se lhes fosse apresentado um relatório médico comprovando que tinha um cancro e sem hipótese de cura. Fez-se o pedido em carta dirigida ao director Silva Pais. Que não, que apenas seria autorizado a vir morrer a Portugal, isto era, teria de dar entrada pelo Aeroporto da Portela, munido de uma carta do seu médico em Paris, na qual se afirmasse, com clareza, que não lhe restaria mais do que um mês de vida. Assim foi. A Miriam e o Carlos, amigos de sempre, também exilados em Paris, levaram-nos de carro a Orly – nunca serei capaz de descrever aquela despedida. Não sei se era maior a emoção sentida ou a raiva que me atravessou, mas alguma coisa naquela cena me marcou até aos dias de hoje. Ele perdera vinte e tal quilos, mal se mantinha de pé e, quando parou para limpar o suor que lhe escorria pela face, acenou-lhes de longe.
Numa manhã enevoada de Novembro, aterrámos em Lisboa. Fomos os últimos a descer do avião que o havia trazido de volta à sua terra.
Em baixo, junto das escadas, uma hospedeira aguardava-o com uma cadeira de rodas que não chegou a ser usada. Na pista, surgiu a toda a velocidade um carro preto com três homens de gabardina. Saíram os três: «A senhora siga para casa, o senhor Noales vai connosco à António Maria Cardoso para umas formalidades…».
Morreu em casa, 29 dias depois.

Sud-Expresso
 
O Sud Express levava mais de trinta horas para chegar de Lisboa a Paris. Partia pelas duas e tal da tarde e, em geral, ia cheio de emigrantes. Vinham à terra passar as suas «vacanças» (assim diziam, já que, não tendo o conceito, desconheciam a designação em português), ou saíam por este meio para trabalhar na Europa. Documentados, eram esses os poucos que não iam a salto. Partiam de Santa Apolónia carregados de mantimentos para meses: vinho, chouriços, bacalhau – tudo o que lhes permitisse amealhar, por lá, mais uns francos e ter sabores e cheiros da sua terra, no dia a dia da duríssima vida dos bidonvilles

Quando, de bilhete na mão, tentei entrar no compartimento, não havia lugar nem para me sentar, nem para colocar a bagagem (pouca) com que eu e o A. iríamos iniciar, em Paris, a nossa nova vida. Os meus companheiros de viagem tinham ocupado todo o espaço. É certo que foi com alguma bonomia que deixaram a descoberto o meu lugar assim que o solicitei, limpando-o de cestos e garrafões. Talvez tenham achado natural (aceitável…) que eu pretendesse fazer a viagem sentada. Difícil foi conseguir que libertassem o espaço por cima do meu assento, para que eu pudesse arrumar aí as duas malas.
Procurei, com esforço, «emergir» do estado de abatimento emocional em que acabava de me despedir da família e de dois amigos, e, cordialmente, sugeri-lhes um modo de solucionarmos a situação. Impossível. A minha bagagem permanecia junto de mim no corredor e, do interior do compartimento, chegavam-me sucessivos ditos, brejeiros uns, grosseiros outros, aparentemente destinados a fazerem-me desistir da minha pretensão. Chamei o «revisor» que, sem contemplações, lhes impôs obediência ao regulamento naquela matéria e me ajudou a subir as malas. Saí dali nervosa, furiosa, chorosa.

 

 
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Prisão de estudantes em 1962
  
Mesmo sendo pouco dada a saudosismos, tenho essa noite na memória, e não só eu, pois que quando nos encontramos – os da geração de sessenta – e falamos do antigamente na universidade, vem sempre à baila a prisão dos 1.500. Mil novecentos e sessenta e dois. 1962 foi um período marcante para todos nós da resistência, para o movimento associativo e para o regime.
Estávamos às centenas, sentados no chão por tudo o que era espaço ocupável na cantina da Cidade Universitária de Lisboa. Reclamávamos a possibilidade de comemoração do Dia do Estudante e havia até um grupo de jovens universitários em greve de fome. Era o culminar de uma luta que vinha de muito antes. 

Pela noite dentro, foram chegando mais estudantes que vinham juntar-se a nós. Isto porque, ao cair da noite, começou a correr que a PIDE ia aparecer e fazer prisões logo que a maioria dos que, durante o dia, ali haviam permanecido fosse para casa. Perante este «diz-se que», quem ia embora não foi e desencadeou-se um movimento de telefonemas (de cabines) para colegas ausentes, a chamá-los ali. Com excepção das meninas dos lares universitários, quase não ficou colega por contactar. «Liga à Emília, eu falo aos jornalistas do República…» Acordados eles e as famílias pela noite dentro, os apoiantes do movimento associativo começaram a chegar. Viam-se entrar, como que estremunhados. Em alguns casos, tinham-se escapado de sapatos na mão, pelo corredor da casa fora, fugindo ao controlo paternal – elas, sobretudo, que a moral vigente não lhes dava cobertura em saídas nocturnas. Um pé-de-vento. Chegaram muitos. Não admitiam que, no dia seguinte, viessem dizer – como era costume do governo – que apenas uma minoria, sem significado, estava naquela luta. Não era verdade, a Universidade de Lisboa, na quase totalidade dos alunos e muitos, muitos docentes, apoiava os dirigentes do movimento associativo, o que era evidente nas reuniões plenárias em que apareciam aos milhares. Por isso, logo que começou a circular que naquela noite ia tudo dentro, até os habitualmente mais difíceis de convencer a agirem se levantaram da cama e foram para lá.
O previsto – e que durante a noite era já aguardado por todos – aconteceu mesmo. O regime não aguentou nem a pressão da contestação, em crescendo na universidade, nem a coesão dos dirigentes e do movimento estudantil.
A vida não lhes corria mesmo nada de feição com as inúmeras greves operárias desse ano, e agora eram até os meninos da burguesia a criar-lhes problemas? Só faltava essa… Decidiram cortar o mal pela raiz – que já era tarde – e antes de perderem totalmente o controlo da situação, prenderam de uma assentada 1.500 jovens – na esmagadora maioria, oriundos das classes sociais tradicionalmente afectas ao regime (era, não esqueçamos, a Universidade enormemente elitista do início da década de 60). Zás! Tudo «dentro». Intimidados por esta acção repressiva, talvez os pais tivessem mão nos seus filhos.

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Maria Lamas 
 
Conheci-a em 1962, logo que cheguei a Paris. Fiquei a viver durante três anos na Rue Victor Cousin, ali mesmo ao lado do Hotel Cujas, um hotel de ilustres exilados políticos, de que era proprietária uma intempestiva francesa, Mme Savage, a quem ironicamente chamávamos Madame Sauvage.
Aí residia Maria Lamas. Falava-se dela como de uma aristocrata no exílio. Quem conviveu com Maria Lamas naqueles tempos, compreendia a justeza da designação, mas a verdade é que, a ela, nunca lhe agradou.

Interessava-se profundamente pela evolução da situação política em Portugal, mostrava-se sempre disponível para apoiar iniciativas de solidariedade com os combates contra o fascismo, e vivia com particular intensidade – e não raras vezes, com sofrimento – os momentos pouco pacíficos da vida política da comunidade portuguesa no exílio. Raramente tomava posição perante confrontos – sobretudo os que, mais tarde, vieram a surgir entre grupos com diferentes orientações ideológicas – mas não deixava de desabafar a sua mágoa junto de alguns amigos mais próximos. «Para não sufocar», como nos deixou escrito num bilhete – que ainda guardo – posto, um dia, por debaixo da nossa porta. Pé ante pé no pequeno patamar, em silêncio, sem bater, que «não queria incomodar». Encantadora mulher.

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Prisão de Caxias

«Puta de merda! Respondes ou não ao que te perguntei?» – berrou um agente da Pide.

«Deixem lá a rapariga, coitada. A menina queria mesmo era dormir, era ou não era? – Não exagerem! Ó pá, chama o inspector e mandem-na seguir para Caxias. Vocês são umas bestas quadradas… – Vá, quer despachar isto, assinar o auto e ir para a caminha? – Assim ninguém vai a lado nenhum, nem você com esta teima em não falar, nem tu, espécie de animal!» – disse um segundo agente, acabado de entrar, dirigindo-se alternadamente a mim, em tom calmo, e com modos boçais ao «pide» que me interrogava. O costume.

Veio um médico. Bordado a «ponto pé de flor» com linha azul celeste, na algibeira da bata branca: Dr. Magalhães.

Minutos depois, numa enorme e negra carrinha celular, seguimos cinco para o Forte de Caxias. Sentados à frente, o motorista e dois agentes. Nas costas deles, a toda a largura, uma rede em ferro com espaços por onde caberia um dedo. Imediatamente atrás, eu e, ao meu lado, uma agente. Conversavam todos muito alto – não me lembro de ter entendido ou sabido ao certo o que diziam. Tive uma vaga percepção de que, no regresso, iam trazer outros companheiros para interrogatório.

A Calçada Ferragial, perto da sede da PIDE na António Maria Cardoso, passava-nos por baixo a pique (para mim, inclinada a uns 45 graus), aos abanões e a grande velocidade. Do meu lado, a carrinha parecia muito descaída. Um pneu vai furado, pela certa…  

«Isto vai inclinado. Levam uma roda em baixo!» – alertei eu, receosa, tocando o motorista com o dedo indicador direito que fiz passar por um dos espaços da rede. Risota geral.

«- Esteja calma, ó freguesa, vai com medo de cair? Você é que vai de rodas em baixo…» – Mais risada. Eu não devia ter falado com eles…

Com os solavancos, sentia agora a minha coluna vertebral como se tivesse uns espetos que me picavam. Incomodavam-me. Ouvi o médico falar em Hospital…

À chegada à minha cela vazia (Lar, doce lar!), meti num plástico uma pêra, um maço de cigarros e umas cuecas, e sentei-me na bordinha da cama à espera que me fossem buscar para ir ao Hospital prisional São João de Deus, ali ao lado. Era engano, não ia nada – disse a guarda Rosa, olhando embasbacada o meu saquito. Voltou, daí a instantes, com um comprimido e uma caneca de água. Que o tomasse, que eram ordens, e que me deitasse, que estava dispensada de me levantar para jantar. A estranha combinação daquelas três coisas como bagagem, e o ar «esparvoado», para não dizer alucinado, com que insisti na certeza de que estariam à minha espera no Hospital, talvez os tivessem deixado inquietos: o dia seguinte era quinta feira e, à quinta feira, havia a visita semanal da família. Tinha de estar minimamente apresentável.

Mal ela fechou a porta, fui às grades – a um metro da barreira de terra, nas traseiras do Forte – e cantarolei a canção do Adriano: «Quem canta por conta sua / canta sempre com razão / Mais vale ser pardal da rua / que rouxinol na prisão…»

Era a senha para o início de uma conversa que, diariamente, se estendia por cerca de um minuto, à hora em que na outra ponta do corredor começavam a entregar o jantar.

«- Um forte abraço, companheira! Como estás?» – sussurravam-me a Rita e a Fernanda, pelas grades da cela ao lado.

Uma força gigantesca vinha naquele abraço.

«- Olá amigas! Estou bem, tudo bem.

– Agora deita-te, procura dormir. Hoje não te vai ser fácil, mas tenta descansar…»
     
 
Acordei na manhã seguinte num banho de sangue. Nada de especial. Era normal naquela situação: a Natureza reagira.

amc
 
Aquela sala de interrogatório onde me encontrava, na Sede da PIDE, era pequena.

Só tinha a secretária, num canto, com duas cadeiras. Numa, sentei-me eu. Na outra, sentavam-se eles, para interrogar. E, nos intervalos, de horas, ou de dias e noites, sentavam-se elas, para vigiar. Isto é, assegurar que não fechávamos os olhos – com pancadas dos nós dos dedos ou das palmas das mãos no tampo da secretária; com o tamborilar das pontas dos dedos; com o bater forte e ritmado dos saltos dos sapatos, no soalho. Nem pestanejar se podia.
Logo na terceira noite sem dormir, tiraram-me a cadeira. Para eu ficar de pé. Disseram que eu estava a cabecear de sono. (E estava.) 

Agora, era-me impossível permanecer assim imobilizada, encostada à parede. Já sentia os pés um bocado inchados.
Comecei então a andar, a contar passos na diagonal: eram quatro.
Pouco tempo depois, eu tinha descoberto um esquema divino. Andava lentamente na diagonal da sala, entre a secretária e o canto oposto. De olhos bem abertos, quando ia em direcção à «pide» – que garantia zelosamente o cumprimento da tortura – mas adormecendo logo que lhe virava as costas, enquanto caminhava cinco segundos no sentido contrário. Juro que dormia de facto, e que acordava no momento certo de dar a volta. 

Lembro-me de sentir, de pensar que daria um ano de vida por cada cinco segundos daqueles. Assim mesmo: troca por troca. Nesse estado de delírio, nem nos ocorria se haveria um interlocutor para fechar um tal negócio. Cinco segundos.

Ela deu por isso, chegou-se à porta, fez um aceno e aí foi outra história: entraram na sala aos montes, em catadupas, as bestas. Com os estalos e murros na cabeça e nos braços, despertei. E voltaram a dar-me a cadeira.
Depois, quando disse que queria ir à casa de banho, olhei para o espelho e não me reconheci. Não que estivesse ferida, sangrando. Não estava. Mas parecia uma velha, cara ossuda, cheia de rugas e, nunca soube porquê (dos olhos raiados de sangue?), estranhamente vermelha.
Ainda não tinha mergulhado nas alucinações. Só na noite seguinte.

 
(In Saudações, Flausinas, Moedas e Simones, Campo das Letras, 2006)

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Não tenho dúvidas acerca da data: 17 de Novembro. Além de não ser normal as pessoas esquecerem-se do dia em que saem da prisão, após quase seis meses de regime de isolamento, a verdade é que foi uma data duplamente memorizada porque o meu primeiro filho, à laia de comemoração, exactamente no mesmo dia, três anos depois, saiu de dentro de mim. 

Mas já lá vão tantos anos que não consigo lembrar-me da explicação para não ter um tostão comigo quando, nesse dia, recuperei a liberdade.
Porque terá sido? Ficava sempre depositado pela família, na secretaria da cadeia, algum dinheiro, até para se poder comprar cigarros, papel de carta e selos, por exemplo. Porque me encontrei então na rua, subitamente, sem um centavo?
O que me ocorre agora parece-me óbvio e, no contexto, lógico: eles ter-me-ão dado ordem de saída, após o interrogatório daquele dia, na Rua António Maria Cardoso. Devem-me ter perguntado se queria ir à prisão buscar as minhas coisas, e eu: «Não, não, eu vou lá amanhã de carro…». E ala, pus-me a andar que o desejo de respirar Liberdade já não podia ser sustido e adiado.
Além disso, aquele discurso final do Sachetti (inspector) – «vencidos, mas não convencidos» – deixou-me seguramente com pouca vontade de reentrar numa carrinha deles e rumar de novo a Caxias.
Lembro-me de descer aquelas medonhas escadas e, com a porta pelas costas, nem olhar para trás, acelerar o passo, em direcção ao Chiado. 

Foi assim que num fim de tarde muito fria fui parar à Brasileira, ao fundo da rua, com a intenção de telefonar à minha família para me virem buscar.
Só então me dei conta de que, não tendo dinheiro, estava impossibilitada de o fazer. Nem pelo telefone do balcão, nem na cabine telefónica.
O aspecto com que me apresentava estava longe de ser o adequado, quer para entrar na Brasileira, quer para aquela época do ano, mas isso, paciência! Tinha saído da cadeia de Caxias, pela manhã, apenas com uma preocupação no que dizia respeito à roupa e ao calçado: que fossem cómodos para mais uma «batalha campal». Pouco agasalhada e, claro, sem carteira ou um saco. Nada nas mãos. Como sempre, nas idas a interrogatório, levava apenas um maço de cigarros e fósforos.

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