Meu caro Eduardo:
Começo, se mo permites, pela matéria dos autos, com comentários pontuais.
Talvez nem te esteja a corrigir, mas o que admito é que, à partida para o Congresso fundacional do MES, eu queria que os meus amigos (pessoais e políticos) saíssem. Isto era do pleno conhecimento de alguns, o que não significa que merecesse a sua concordância. Porque a quase totalidade foram para lá na melhor fé, embora sabendo que havia o risco de não terem margem para ficar. Aquilo em que eu diferia deles nem é, pelo menos no comum das situações, muito bonito: e, por isso, lhe chamei «reserva mental». Para corresponder à honestidade intelectual com que vens tratando do assunto – um assunto em que estás completamente envolvido – senti-me na obrigação compulsiva de te fazer saber que havia quem, do outro lado (o meu), tivesse por aliados os «zulus» que queriam correr com os «doutores».
Ora isso não faz de mim «tenor». Mesmo que eu tivesse qualidades pessoais para isso, ou a ambição disso – o que não era manifestamente o caso – não conseguiria sê-lo: cheguei a essa novela muito tarde e, ainda por cima, tinha de lidar em simultâneo com velhos amigos, que conhecia de ginjeira, mas também com outros, que eles bem conheciam e eu não (por se tratar de amizades que eles fizeram desde 69/70, ou seja, quando começou a minha ausência «militar»).
O que eu fiz reflecte, aliás, o que te digo: ao datar a minha carta de saída do primeiro dia dos trabalhos, eu coloquei-me na posição, de pressionar os outros, é certo, mas também na de eu próprio já não ter recuo. Afundei as caravelas, como o Cortez. Mas até nisso há distinções. Porque outro signatário, que foi o J. M. Galvão Telles, foi sendo empurrado para essa atitude. Mas não havia nele senão abertura: e a prova, que tu mesmo já invocaste, é que levou a «militância» ao ponto de arranjar uma sede de que era ele, obviamente, o verdadeiro penhor.
O que eu queria não fica retratado com aquilo a que chamas «federação inorgânica de grupos convergentes», porque era mais simples (ainda que pouco maduro, admito hoje). O que eu queria era que entrássemos para o PS, mas ganhando o tempo de um compasso de espera com dois fins: a) O primeiro e mais importante, era deixar passar a fase do PS como cabeça da frente nacional de resistência ao esquerdismo (o que arrastaria também o desbloqueamento de algumas tensões que subsistiam entre o Melo Antunes e «os 9», de um lado, e a direcção do PS, do outro); o segundo era permitir a «digestão» e o «luto», de que a maior parte dos meus amigos políticos carecia após o malogro da aposta no MES. Era, pois, necessário um interinato. E, para esse, eu queria um «grilo do Pinóquio», um «clube» de reflexão ao qual, numa carta que ainda enviei de Moçambique, eu chamava, assumindo o paradoxo, um «PSU sem carácter partidário». De facto, a «coisa» tinha de ser compatível com filiações partidárias. Por exótica que tal liberdade hoje pareça. Basta citar o caso do César Oliveira, que não aceitaria acompanhar uma saída conjunta, se ficasse tão dela prisioneiro quanto se sentia no MES. Ora, com pequenas adaptações, foi o que veio a suceder com a saída do MES em grupo e a criação do grupo de Intervenção Socialista (que durou até à nossa entrada para o PS, em 1978) não andou longe disso.
Quanto ao decurso do Congresso. De facto, já sabíamos que a maioria (a tal a que eu chamava «zululãndia») iria fazer valer os seus direitos e colocar os «doutores» em minoria. Mas havia dois imponderáveis. O primeiro era saber se resistiriam, no contexto da época, à assunção formal do marxismo-leninismo. O segundo era quais os sinais que dariam a essa minoria, indiciadores da tolerância e flexibilidade com que se preparavam para tratá-la. Ora as respostas dadas foram ambas claras. Na primeira questão, porque o obreirismo patente nalguns discursos já falaria por si mesmo, mas o marxismo-leninismo foi, de facto, formalmente proclamado na moção que viria a ser a vencedora. Na segunda questão, porque os discursos da maioria podiam reflectir três hipotéticas atitudes: afirmar princípios, mas ressalvar algum pluralismo; fingir – algo «arrogantemente», diria eu – que a minoria nem existia; ou, na prática, convidá-la a sair. A nossa percepção foi a de poucos discursos se terem colocado na primeira hipótese, quase todos se colocando na segunda e o Afonso ter encarnado explicitamente a terceira (numa resposta explícita e «ad hominem» ao discurso anterior do Jorge Sampaio). Claro que o factor geracional – eu diria mesmo de amizade pessoal – que a muitos de nós ligava o Afonso teve o efeito «demolidor» de que tu falas.
Para terminar, quero só esclarecer que não foram poucas as pessoas que quiseram então largar o nascente MES, mas sem qualquer propósito de virem a ligar-se ao PS ou a qualquer outro partido. O César, por exemplo, viria a militar na UEDS; o João Bénard ou a Luísa Castilho são exemplos dos muitos que, nos primórdios de 1978, não quiseram acompanhar a entrada no PS e preferiram ficar independentes.
Quanto ao resto, meu caro Eduardo, não estou em condições de discutir o muito mais que vais apreciando e comentando: a aventura do MES até ao fim. Mas reitero que muito me impressionou o teu raríssimo e genuíno esforço de autocrítica, nos textos que já publicaste na blogosfera. Além do mais, gostei muito da conversa. E nem desgostei da refeição. É, pois, uma experiência a repetir, se e quando estiveres para aí virado.
Abraço
Nuno
Biografia de Nuno Brederode Santos
Terça-feira, 10.Fev.2009 at 01:02:47
Desculpem-me fazer uma pequena intomissão no vosso diálogo.
Recordo-me perfeitamente da carta dos então “camaradas” Nuno Brederote, Jorge Sampaio, Joaquim Mestre, JoséManuel Galvão Teles e de mais alguns cujos nomes agora me não recordo e de como o assunto foi discutido no nosso grupo de Benfica (não me recordo também se se chamava secção, núcleo, célula, ou outra designação semelhante). Na altura uma das vozes que pontificavam no grupo era a Leonor Palma Carlos, casada com o Afonso de Barros e que não evitou epítetos para classificar os signatários, dos quais o mais suave era de “sociais-democratas” (embora na época isso fosse mesmo um anátema).
As tais pessoas que, embora indivudualmente ou em pequenos grupos tinham posições críticas relativamente ao MES (talvez que a principal fosse a do MES se pretender constituir em partido, deixando a sua face inicialmente mais aliciante de ser um Movimento com as características, pensamento e dinamismo bastante apelativos, para mim claro), foram depois saindo com mais ou menos ruído, mas quase somente a nível individual (lembro-me dum dirigente do grupo dos professores, cujo nome agora também não me ocorre, e que síu por alturas de Junho ou Julho de 1975).
Acho, no entanto, que o pior sucedeu em Agosto de 1975 durante o V Governo Provisório, altura em que o MES embandeirou em arco tomando a nuvem por Juno. Recordo-me que um grande amigo meu, na altura Secretário ou Sub-secretário de Estado, comentar em grande júbilo para mim à porta da (2ª) sede de MES: Jorge estamos a poucos dias de ganhar a Revolução; e o aparelho de Estado é quase todo nosso! O MES tem perto de 50% dos dirigentes deste País! E não valeu de nada tentar arrefecer os ânimos, quando muitos de nós sentiam um aperto no estomago, com os sinis que foram surgindo e que acabaram por desembocar no 25 de Novembro.
A verdade é que fui sujeito a um verdadeiro auto de fé, posteriormente, na parte final do qual a pergunta era: se eu aceitaria e obedeceria cegamente às instruções do Comité Central, sem fazer perguntas, nem pôr nunca em causa quaisquer directivas. Claro que disse que não. Nunca consegui abdicar de reflectir e discutir o que para mim não é claro. Fui condenado a deixar de ser militante e a passar a aderente. Então disse: porquê aderente? Serei apenas simpatizante, enquanto durar alguma ligação que ainda tenho ao MES. (Existiam estes 3 níveis de ligação). pediram-me então que não fizesse isso pois dava muito nas vistas, uma vez que eu estava muito metido na cooperação be bairros populares de Benfica onde era muito bem acolhido(até ao PCP entrar em cena e mostrar quem é que mandava ali).
A minha amargura e de muitos outros militantes que estavam na mesma situação intectual que eu (críticos, em discordência, mas sentindo-se isolados) era exactamente essa: a falta de interlocutores fiáveis. Começamos a tê-los, quando fomos descobrindo as tomadas de posição dos nossos camaradas de Coimbra, com o Rui Namorado a dar a cara, lá para Outubro de 2005. E isso foi o rastilho que nos conduziu um após outro, com o grupo dos bancários e de outros a efectuarmos reuniões em restaurantes, primeiro e, depois, em Associações que não tinham ligações partidárias ou em casas particulares mais amplas.
Mas veio o 25 de Novembro e as coisas ficaram suspensas. Como eu tinha a especialidae militar de minas e armadilhas fui convocado não sei bem para fazer o quê na noite de 24 para 25. Curiosamente o grupo que aguardava ordens em casa do NSM (não me apetece dizer por extenso), onde me encontrava, recebeu pela 1 da manhã instruções para ir buscar armas a um determinado nº da Avenida Cidade d Lourenço Marques, nos OLivais Sul. Eu tive a lata de me rir e de dizer que tal número não existia. A resposta seca e agressiva: estás a pôr em causa as instruções do Comité Central? Olha que isso veio directamente do Augusto Mateus! Claro que respondi: estou, claro. Os meus pais moram nos Olivais e eu até há pouco morei lá com eles e conheço bem a área.
Fomos à mesma para essa Avenida e então deparàmos com uma cena caricata pelas duas da manhã: vários automóveis subiam e desciam a Avenida Cidade de Lourenço Marques, cheios de pessoas, vagarosamente, com várias cabeças à procura de um número de polícia que não existia e, àquela hora, em quase todas as janelas dos prédios confinantes com a avenida muitas pessoas em trajes noturnos a ver se conseguiam perceber o que se passava. Foi o ridículo final, de quem gostava de brincar às revoluções sem ter o mínimo de preparação para o fazer…
Claro que depois do 25 de Novembro as pessoas que efectuavam as reuniões à revelia dos dirigentes foram-se desligando e foram-se estruturando naquilo que passo pela cabeça do Nuno Brederote: criaram o MSU, à imagem do PSU, mas sem lhe darem características partidárias.
Desculpem a extensão do palavreado.