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Acabara de me fazer “amigo” do Jaime Mendes no Facebook.  Já éramos amigos desde os anos 60, década que ganhou fama de mágica por causa dos Beatles, do movimento Hippie, da luta contra a guerra no Vietnam, da ida de Iuri Gagarine ao espaço e Neil Armstrong à Lua, do Maio de 68, da Primavera de Praga, do movimento feminista, do direito ganho pelas mulheres portuguesas (creio que só as universitárias!) à perda da virgindade sem perda da honra e outros acontecimentos que viraram o mundo do avesso.

Nesses anos 60, como muitos outros da minha geração estudávamos, namorávamos e conspirávamos nos cafés de Lisboa. Conversas cifradas e sussurradas no meio de caras desconhecidas entre as quais tentávamos adivinhar a do informador da PIDE que não deixaria de por ali andar de serviço. Procurávamos instintivamente identificá-lo, adivinhá-lo. Pela cara, pelos gestos, pelo modo de nos observar, pela sua frequência no café.

O nosso “quartel general”, era o café Pão de Açúcar na Alameda Afonso Henriques, no sítio onde ainda hoje está, mas muito diferente. Estudantes do Instituto Superior Técnico quase todos e activos associativos, frequentávamos as aulas de engenharia, e a escola superior de política e cultura, a associação de estudante. Frequentávamos a polícia de choque, correndo à sua frente e conspirávamos contra a ditadura de manhã, à tarde e à noite. O Carlos Marum, a Noémia, o Mário Lino, a Paula Correia, o Rui Martins, a Clara, o Santos Marques, o Rui Pereira, a Teresa Spranger, a Teresa Tito Morais, o Gabriel e mais alguns, a viver por perto, na casa dos pais como o Jaime Mendes ou em quartos alugados, como eu, constituíamos a guarda avançada dos “conspiradores” do Pão d’Açúcar, certos de que mais ano menos ano acabaríamos com o regime fascista ou mais dia menos dia acabaríamos na prisão. Conseguimos, quase todos, atingir as duas metas. A começar pela última, é claro.

O Jaime Mendes preparava-se na cidade universitária para ser médico que veio a ser com proficiência, fama e proveito seguindo a tradição da família, enquanto eu me familiarizava com a engenharia electrotécnica no IST a dois passos dali. Cresciam em mim então duas paixões que resultaram inconciliáveis. Uma pela Física das partículas que “esmiuçava” a matéria, outra pelo derrubamento da ditadura, independência das colónias e pela sociedade nova se dizia estar a construir o Homem Novo. Venceu esta.

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O interesse do empreendedor imobiliário do “Paço do Duque” em repor a placa evocativa dos jovens assassinados pela PIDE, em 25 de Abril de 1974, no local de origem, e em geral o interesse em preservar a memória da sede daquela polícia, deve ser tanto quanto o do Movimento Não Apaguem a Memória! ou de qualquer cidadão que preze a liberdade em  promover  a venda ou o aluguer dos apartamento de luxo do “Paço do Duque”. De modo que é natural que o empreendedor imobiliário registe no seu site que:

«A 25 de Junho de 1542 o Paço do Duque assistiu a uma grande festa de família: nada menos que as bodas do Duque D. Teodósio com a sua prima D. Isabel de Lencastre: os convidados eram numerosos e as ruas encheram-se de populares.»

E é igualmente natural que o Movimento Não Apaguem a Memória ! faça tudo o que estiver ao seu alcance para que o local da sede da PIDE/DGS não seja apagado da memória das gerações futuras. É que temos o dever de manter viva a memória da luta de muitos milhares de portugueses que por amor à liberdade ou por lutarem contra uma exploração desumana e uma vida de miséria, foram perseguidos, condenados ao desemprego e ao exílio, presos e torturados, condenados a muitos anos de prisão e à destruição da sua vida familiar, viram a sua saúde arruinada ou foram simplesmente assassinados pela polícia política do regime fascista.

No Paço do Duque, no século XVI, haveria duques e duquesas, festas sumptuosas, muitos convidados e populares na rua. Mas no “Paço” da PIDE, no século XX, havia trabalhadores, estudantes e intelectuais trazidos das prisões políticas ou das suas casas assaltadas pela madrugada por agentes da PIDE (que por vezes arrastavam com o preso a mulher e filhos menores) para serem submetidos à tortura do sono, à tortura da estátua, a choques eléctricos, a espancamentos, à chantagem da ameaça de tortura à mulher e aos filhos com a montagem de cenários com gritos de crianças, para que denunciassem os seus companheiros de luta.

É natural que o promotor dos apartamentos de luxo do Paço do Duque evoque o passado longínquo e convide os potenciais compradores a reviver a nobre memória da alta nobreza portuguesa que por ali passou e as bodas de D. Teodósio com a sua prima D. Isabel, no distante dia de 25 de Junho de 1542, e lembre que para os festejos «chegaram os embaixadores do imperador Carlos V de Áustria e do rei de França, Henrique II, tendo sido recebidos pelo Duque com grande cortesia.»

Mas o Movimento Não Apaguem a Memória! e certamente todos os se sentem solidários com a luta de tantos milhares de portugueses do “Terceiro Estado” que culminou com a libertação de 25 de Abril de 1974 têm o inalienável dever cívico de trazer à memória, não dos condóminos do Paço do Duque em especial, mas das gerações futuras de portugueses o que aquele local representou como instrumento da submissão de um povo. E de como é importante conhecermos a nossa História, não apenas a de glórias antigas, de Grandes Senhores e de fadas encantadas de um passado ancestral mas principalmente a de um passado recente prenhe de lições cívicas e políticas onde sobressai a altivez, a honra, o espírito de renúncia, a coragem e a combatividade de portugueses que se não submetiam às sevícias dos pides às ordens dos modernos duques do reinado de Salazar e Caetano.

Não pretendemos impedir que os futuros inquilinos a quem foram vendidos os condomínios de luxo sonhem com festas de duques e princesas e que em vez de tais fantasias sintam a casa assombrada com os gritos dos torturados. Mas temos a obrigação de lembrar que, se em 1542 o duque recebeu com grande cortesia os convidados e os populares que enchiam a rua, em 1974 os populares que na mesma rua exigiam o fim da polícia política foram por esta metralhados. Quarenta e cinco ficaram feridos e quatro viram a sua vida terminar ali no dia da libertação do seu país:

F. Carvalho Gesteiro, de 18 anos de idade, empregado de escritório, natural de Montalegre;
Fernando Luís Barreiros dos Reis, de 24 anos de idade, soldado, natural de Lisboa,
J. Guilherme Rego Arruda, de 20 anos de idade, estudante, natural dos Açores;
José James Harteley Barnetto, de 37 anos de idade, natural de Vendas Novas.

Temos, os mais velhos que viveram esses tempos, e os mais novos que tiveram a oportunidade de os conhecer, a responsabilidade de salvaguardar essa Memória para que as lições a tanto custo obtidas se não percam. Para que se evitem a tempo os caminhos que conduzam a perigos de idêntica natureza.

Por isto, simplesmente por isto, temos a obrigação de exigir que a placa com os nomes dos fuzilados de 25 de Abril de 1974, às mãos da PIDE/DGS, volte ao seu lugar.

raimundo vilar

Mais do que sofrer eventual prisão, quem se dispunha a lutar contra a ditadura fascista derrotada em 1974 enfrentava o drama maior da tortura e a angústia de saber como lidaria com ela para não fornecer informações à PIDE, que pudessem prejudicar a luta ou levar à prisão de companheiros. Dado adquirido era que a polícia política levava a vítima a situações extremas com torturas físicas e morais e por vezes à convicção de que não escaparia com vida.

A forma como procedia à prisão era muito estudada pela PIDE e estava quase estandardizada. Mas as circunstâncias encarregavam-se de fazer das suas. Eis como procedeu a PIDE/DGS para prender dois membros da Acção Revolucionária Armada, ARA.

Em Fevereiro de 1973 a PIDE concluiu que tinha informações bastantes para prender Manuel Policarpo Guerreiro, 29 anos, casado, pintor da construção civil, a trabalhar em Cascais e a viver em Rebelva, Carcavelos; Carlos Coutinho, 29 anos, casado, jornalista no diário O Século, a viver na Rua Palmira, em Lisboa; António João Eusébio, 30 anos, solteiro, estucador, a viver em Sassoeiros, Carcavelos e Manuel dos Santos Guerreiro, 30 anos, casado, motorista a viver em Abrunheira, Rio de Mouro.
Seguro da capacidade da PIDE para prender num ápice todos estes operacionais da ARA o inspector Adelino da Silva Tinoco assinou a respectiva ordem de prisão no dia 21 de Fevereiro de 1973.
Às dezoito horas e trinta minutos, desse dia, em Cascais à saída do emprego a PIDE prendeu Policarpo Guerreiro e às 21h prendeu em casa Jesuína, sua mulher, que não sabia da prisão do marido e um primo que casualmente ali se encontrava. No dia seguinte prendeu às nove horas da manhã Carlos Coutinho e Antonieta ao saírem de casa para irem ao médico com a sua filha bebé.

Quando os agentes da polícia vão a casa de Manuel dos Santos Guerreiro têm uma surpresa. A casa não tem ninguém. Cercam a casa e esperam. Um, dois, três dias. Demoram a descobrir que a sua presa está na terra, em Grândola, com os pais. No dia 25 às 18 horas, vinha Manuel Guerreio (o apelido é pertinente como verão) com o irmão dum desafio de futebol quando foi interpelado por um sujeito que o agride brutalmente na cara com um murro e lhe aponta uma pistola com ameaças de morte. O irmão não se intimidou e atirou-se ao agressor. Os outros agentes, (sim o sujeito era um agente da PIDE/DGS mas não esteve para apresentações) até ali escondidos, começam a disparar tiros de intimidação. Acorrem os pais a socorrer os filhos e enfrentam os pides armados. Manuel foge para o campo onde está o avô. Os agentes da PIDE perseguem-no de pistola em punho. Manuel enfrenta-os com o pau com que o avô toca o gado. Os pides querem-no vivo e disparam para o lado. É de novo socorrido pelos pais e irmão agora armado de machado. Manuel consegue fugir pelos campos. O irmão, António Guerreiro, tenta fugir numa carrinha que é parada a tiro, é espancado e preso. Os pais, feridos são levados para o hospital.

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Berlin Wall

Faz agora 20 anos a notícia abalava o mundo e deixava todos estupefactos. Não é que não se percebesse já, e desde pelo menos há dois ou três anos que o “campo socialista”, o “socialismo real”, o regime que abarcava um terço da humanidade e mudara grande parte do mundo nos últimos 70 anos tinha os dias contados. Pelo menos tal como tinha sido até ali. Em que se transformaria, e como se transformaria, isso era ainda uma incógnita. Mas nesse dia 9 de Novembro de 1989 o Muro de Berlim caía. Dois milhões de cidadãos do outro lado do mundo viriam nos três dias seguintes ver os brilhos do capitalismo, as infindáveis variedades de produtos dos supermercados, as faiscantes montras Vuitton, os reluzentes Mercedes.

A queda do muro de Berlim, todos tinham percebido, era um sinal. O símbolo e a antecipação de que tudo aquilo que estava lá para oriente poderia vir, mais depressa do que se pensara, por aí abaixo. E talvez sem armas nucleares, sem tanques nem canhões. Pelo menos em grande número e sem demasiado sangue.

Como reagiu o principal adepto e suporte ideológico do regime comunista da RDA, na sua forma mais pura e dura, o PCP e Álvaro Cunhal?

O Secretário-Geral do Partido Comunista Português tinha passado o dia encafuado numa sala que então abrigava o Cinema Universal, na Rua da Beneficência, a duzentos metros da sua casa, a sede do CC, na Soeiro Pereira Gomes. Decorria lá uma reunião magna da Juventude Comunista Portuguesa, a JCP, uma assembleia, um congresso, qualquer coisa com uma dimensão menor e a minguar, que não podia fazer história nem sequer para a pequena história do “Partido”. À saída Cunhal tinha um batalhão de jornalistas que lhe apontaram à cara uma parafernália de microfones, objectivas, gravadores e máquinas de filmar. Não adivinho que terá pensado Álvaro Cunhal. Que os media estavam a dar tanta importância à reunião quanto ele? A dúvida, se houve, foi um momento porque o que lhe atiraram com perguntas foi o muro. O muro de Berlim. Aí Cunhal não gostou e não teve tempo de medir , em segundos, o alcance de tal queda . Prenúncio do desmoronamento do comunismo, coisa que não admitia, nem admitiu depois, mesmo contra a realidade dos factos. Aliás, desde há algum tempo que deixara de dar importância aos factos e à realidade que teimosamente contrariavam o que estava escrito. Tanto pior para eles e para ela. De modo que insurgiu-se contra os jornalistas e contra o disparate de perguntas daquelas, sensacionalistas e provocatórias, quando ele “acabava de sair de uma magnífica reunião da JCP onde foram tomadas importantíssimas decisões.”

O «grupo secreto»… era uma acusação sibilina que reboava pelos corredores da sede do CC do PCP, e designava uns quantos “camaradas”, inimigos internos, talvez ligados à CIA ou, ainda pior, ao PS e que, topem a tineta, dera-lhes para no comité central e noutras reuniões menores contrariar a justa orientação do partido.

As vítimas (muito pouco vítimas) da vã e tola atitude de querer impor na actividade mesma do “Partido” discussão livre por células, pela imprensa, por congressos e outras leviandades, as vítimas – dizia eu – deram a acusação por boa e falavam entre si “olha lá pá vamos mas é reunir o grupo secreto e comemorar a queda do muro com um jantar na Varina da Madragoa”.
E agora mesmo lembrámo-nos… e se fossemos comemorar os 20 anos da queda do Muro à Varina? Dito e feito. Lá iremos. Mas não todos porque José Barros Moura e António Graça, já não podem estar presentes. A não ser na nossa saudade.

Sibéria

Ir à terra é rever os amigos, saber quem nasceu ou morreu, visitar o único moinho de vento a moer trigo, sobrevivente dos muitos que alvejavam no cimo dos montes que se erguem em redor da aldeia e são a antecâmara da Serra de Montejunto.
E constatamos o envelhecimento da população, o declínio da agricultura e também como surgem iniciativas culturais. A terra tem um ginásio, classe de ginástica, futebol de salão, sala de exposições, escola de música, rancho folclórico ainda que com futuro incerto devido ao fraco crescimento demográfico e à fuga para a cidade. Na minha infância só havia o salão paroquial, que ainda existe, onde passavam de longe em longe uns filmes, em 12 partes, em que o padre da terra, que vigiava a projecção, ocultava com a mão em frente do projector cenas com mulheres decotadas ou saias curtas e os homens menos respeitadores protestavam com longas assobiadelas contra o zelo, a seu ver excessivo, do prior com a saúde moral do seu rebanho.

É do Vilar do Cadaval que estou a falar. Aldeia que na primeira metade do século passado tinha transformado em belos vinhedos todo o campo em redor e vivia o apogeu das vindimas com o mesmo fulgor e excitação com que celebrava a procissão do Senhor dos Passos e os festejos à Senhora do Ó. Onde antes se ia à taberna ou à missa e também, mas só alguns, à pequena tertúlia da farmácia e agora os mais novos vão à internet, disponível em dois dos cafés da terra e na sede da Junta de Freguesia. 

Falar da terra é quase sempre um pretexto para evocar a juventude, no entanto do que eu vos queria falar é de como aproveitei o tempo a revolver arcas esquecidas no sótão, cheias de trastes velhos.

Entre os papéis encontrei molhos de cartas atados com fitas de cores debotadas e, num deles, uma carta de um tal F. Lourenço dirigida ao meu pai, então em Nova York, com a data de 29 de Julho de 1933. Lembro-me das histórias que ele contava do maravilhoso mundo novo e também sobre a grande depressão de 29 que atormentadamente viveu, dos «banqueiros falidos que se atiravam dos arranha-céus», do movimento radical e dos protestos contra a condenação à morte dos inocentes Sacco e Vanzeti, no ano de 1927. 

A carta tem um interesse particular porque é dirigida da… Sibéria.
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Cadeia da Machava  

A violência e abusos a que os presos políticos eram submetidos nas prisões políticas portuguesas durante a ditadura fascista do Estado Novo (1926-1974) é conhecida de muitos portugueses, particularmente a partir de 1974, restabelecidas que foram as liberdades democráticas. No entanto, o que se passava nas prisões políticas das colónias portuguesas de então é bem menos conhecido e por vezes mais terrível. Por isso parece-me oportuno colocar aqui algumas notas (ou gritos?) que encontrei nesta circular nº 19, da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, datada de 9 de Maio de 1973, a um ano do estertor da ditadura.

Não é do Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde, o mais conhecido, que aqui se fala, nem do de S. Nicolau, no deserto de Moçâmedes em Angola. É do Campo de Concentração de Machava, em Moçambique, a sete quilómetros da então Lourenço Marques e actual Maputo. 

Em Machava havia duas prisões: a dos presos de delito comum e a dos que não tinham cometido crime nenhum. Roubar, assassinar deve ser julgado e punido, de acordo com as regras que a civilização foi criando. Mas querer a Liberdade e o fim dos ignominiosos privilégios dos colonialistas, querer o fim da «escravatura» colonial isso exigia, na opinião dos colonialistas, um regime prisional e repressivo sem lei. Violência, tortura e morte, de preferência anónimas. A Machava dos presos políticos. Sim, essa tinha um estatuto próprio governado directamente pela PIDE-DGS. 

Eis um extracto da  circular nº 19  da COMISSÃO NACIONAL DE SOCORRO AOS PRESOS POLÍTICOS, de 9 de Maio de 1973.

«Compõem o campo de concentração 8 pavilhões – construções baixas, compridas e isoladas umas das outras por pátios de terra solta… Nos pavilhões as celas distribuem-se ao longo de um corredor central que vai de topo a topo. A dimensão das celas individuais é normalmente de 2X3X3,5 m, mas nelas são metidos em geral 6 a 8 “criminosos de consciência”. As celas maiores, têm cerca de 3X12X3,5 m e têm uma lotação de 20 prisioneiros mas nesse reduzidíssimo espaço estão em geral amontoados 50.

Estão neste momento [1973] internados no campo de concentração da Machava cerca de 2100 moçambicanos – muito para além da sua lotação máxima de 800 detidos.
O aspecto mais chocante na prisão da Machava é o confronto inevitável entre o tratamento que têm os presos de delito comum da Cadeia Central propriamente dita – tratamento muito próximo do de uma cadeia legalmente organizada – e o tratamento dos presos políticos.

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Último texto desta série  Os três primeiros podem ser lidos aqui, aqui e aqui. 
 
Nos três posts anteriores, descrevi a sabotagem, pela ARA, de material de guerra que deveria seguir para a guerra colonial, em Angola, no navio Muxima, em Janeiro de 1972, e o trabalho de investigação desenvolvido pela PIDE/DGS.

A polícia política interrogou todos os tripulantes do navio Muxima, os em­pregados, os encarregados e até os administradores das empresas ligadas à carga de mercadorias. Foram interrogados os conferentes marítimos, os guardas da GNR e da Guarda Fiscal que estiveram de serviço no cais de Alcântara, as pessoas que despacharam bagagens para o Muxima, fami­liares destes, os motoristas que conseguiram identificar como tendo transportado bagagem ao cais de embarque, agentes de navegação. Foram interrogados os empregados e administradores de empresas que enviaram carga para o Muxima, os empregados da TAP onde fora feita a reserva da viagem para Angola, os empregados e o despachante oficial da firma através da qual se fez o despacho. Tudo isto consta com abundância de pormenores no dossier «Muxima» da PIDE/DGS.

As iniciativas de investigação não deixavam por vezes de ter uma certa carga ridícula. Seria verosímil que depois das explosões o quadro da Acção Revolucionária Armada que fizera o despacho do caixote com as bombas voltasse ao escritório do despachante oficial? Mas foi para acautelar tão ridícula presunção que a polícia manteve apertada vigilância junto dos escritórios do despachante oficial durante mais de um mês, na esperança de que quem se fizera passar por António Pires lá fosse buscar o troco do despacho!!! Parece inacreditável mas foi isso mesmo que, com excesso de meios e défice de bom senso, a PIDE/DGS fez.

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Ter pisado o mesmo Tarrafal, ter vivido o mesmo inferno, ter habitado por dentro a mesma «frigideira», respirado os mesmos 40 graus de Sol, ter ouvido os mesmos gritos dos guardas e assistido, depois, no fim, no fim mesmo de tudo, ter assistido ao mesmo rumor, primeiro longínquo, a apurar os ouvidos, depois mais nítido – mas, mas, mas, podemos acreditar? – viiiiva Cabo-Veeeerde e… lá o que fosse aproximava-se como um apocalipse mas ao contrário…viiiiva o paigêcêêê.

Era 1 de Maio de 1974, cinco dias depois de Lisboa, ali no Tarrafal, o céu a cair e a levantar-se, rasgando cercas e muros e entregando de mãos estendidas o paraí…a liberdade, libeeertem os preeesos! Liberdaaade! Gritavam. Ouvia-se, a caminho do campo de concentração. Gritavam para si, a ganhar forças, e para os outros, para os outros ouvirem. Uma multidão afoita sem bandeiras nem ordem levantava os braços, aproximava-se e tudo à volta parava, e olhava os campos, as árvores e os bichos do Tarrafal. Depois chegaram os capitães e disseram que sim, que era verdade. As amarras estavam caídas, as grilhetas despejadas no chão.

Ter pisado o mesmo Tarrafal não quer dizer que venham todos a fazer o mesmo caminho. A vida é um mundo de trajectos diferentes. Podemos escolher o caminho ou o caminho escolher-nos a nós. Há o mérito, sem dúvida, mas também há as oportunidades, as boas escolhas ou as escolhas em má hora. As condições de cada um são diferentes e isso decide também. Decide o saber, decide o ter. Decidimos nós… ou  as circunstâncias decidem por nós.

Dos libertados do campo de concentração estiveram no colóquio internacional Tarrafal -Uma Prisão dois Continentes, na Assembleia da República, em 29 de Outubro – um colóquio da iniciativa do Movimento «Não Apaguem a Memoria!» (NAM) – um destacado diplomata de Cabo Verde, um embaixador de Angola, um embaixador da Guiné-Bissau e um professor universitário em Luanda. Mas José Pedro Castanheira numa peça jornalística no Expresso de 25 de Outubro, a antecipar-se ao citado colóquio, deu particular destaque a um ex-tarrafalista que fez outros caminhos ou outro caminho o escolheu, diferente dos que distinguiram aqueles seus companheiros de infortúnio no Tarrafal.

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Os dois primeiros textos desta série podem ser lidos aqui e aqui.
 
Nos dois posts anteriores, descrevi a acção da ARA que levou o nome de «Muxima» e iniciei o relato das investigações da PIDE/DGS para a descoberta dos autores. Prossigo hoje o relato desta investigação, baseado no dossier «Muxima» daquela polícia, a que tive acesso depois de instaurada a democracia.

Depois de interrogados vários empregados do despachante aduaneiro que tratou do envio do caixote com as cargas explosivas disfarçadas no meio de bagagem, foi interrogado na sede da PIDE o próprio despachante titular do escritório, em cujo auto se diz a certa altura:

«…Que o ANTÓNIO PIRES [nome falso do membro da ARA que fez o despacho] entretanto informou telefonicamente que se deslocaria aos seus escritórios na passada segunda feira, dia dezassete [de Janeiro de 1972], para recuperar o troco… Que o ANTÓNIO PIRES não apareceu até hoje e por isso o declarante não tem dúvida em entregar a esta Direcção Geral a diferença entre as despesas por si efectuadas com o despacho da caixa em questão e os mil e quinhentos escudos que recebeu, pois que tem em seu poder um saldo de MIL DUZENTOS E OITENTA ESCUDOS…»

A DGS, desesperada com a falta de resultados, prosseguiu incansável os interrogatórios. Seguiu-se o balcão da TAP onde fora efectuada a reserva da viagem.

O mais curioso e dramático é que a PIDE/DGS tanto vasculhou que encontrou um infeliz cidadão de Idanha-a-Nova com o nome de António Pires e que, para maior desgraça sua, trabalhava em Lisboa na Sociedade Portuguesa de Explosivos. É certo que não morava em nenhum Casal Garcia e é óbvio que a polícia política já sabia muito bem que a autoria da operação de sabotagem pertencia à ARA (esta organização já tinha reivindicado a acção) e portanto não era verosímil que toda a tramitação do despacho do caixote tivesse sido feito por alguém que se apresentava com o verdadeiro nome e ainda por cima dava um morada também verdadeira.

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Recuemos um pouco. A 1972. A 10 de Fevereiro. Cabo Verde é uma «província ultramarina portuguesa». E na Ilha de São Nicolau reabriu o campo de concentração do Tarrafal, agora com o nome de Campo de Trabalho de Chão Bom. Neste «Campo da Morte Lenta», as condições extremas de vida, maus tratos, torturas, falta de assistência médica, mataram 37 portugueses dos 340 que em levas foram chegando desde a inauguração, em 29 de Outubro de 1936, até ao seu fecho em 26 Janeiro de 1954. 

A derrota dos fascismos, na Europa em 1945, fechou o campo de concentração do Tarrafal, as lutas de libertação das colónias portuguesas reabriram-no. E desde 1961, há 11 anos, que o «Chão Bom» (cínico o nome!, a lembrar o ARBEIT MACHT FREI – O TRABALHO LIBERTA – à entrada do campo de extermínio de Auschwitz) ficou reservado para os «portugueses» das «províncias ultramarinas» de cujas mortes e sofrimentos ainda pouco se disse. 

Estão aqui, agora, em 1972, angolanos, guineenses e cabo-verdianos…(que para os moçambicanos há, em Lourenço Marques, a Machava). Mais de 20 anos de prisão é a pena de alguns. Por delitos de opinião, por não aceitarem ser colonizados na sua terra. Muitos não têm acusação judicial, só uma decisão administrativa. 

Faltam apenas 2 anos, 2 meses e 15 dias para que o mundo concentracionário do «Chão Bom» se desmorone sob os nossos olhos e faltam apenas alguns meses mais sobre a revolta dos capitães para que esta África colonizada conquiste a independência. A espessura do tempo e a espessura do mar não deixa ver o navio grande da libertação que se aproxima e cada um destes homens que estão aqui, na nossa frente, só podem viver os dias que correm sob o império do passado. Mas com a cintilante, a inquebrantável esperança na libertação. 

O Senhor Director do «Campo de Trabalho de Chão Bom» está atento, lê a correspondência que vem para os presos e intercepta-a mas não sem comunicar ao Senhor Director Provincial da Delegação da Direcção Geral de Segurança de Angola, escalão intermédio entre o «Chão Bom» e o chão óptimo (para esta gentinha) da sede da PIDE/DGS, em Lisboa. 

Eis uma das cartas do director do Campo de Concentração do Tarrafal para o director da PIDE/DGS em Luanda, a dar conta do seu trabalho. A intercepção, o roubo da correspondência, como o roubo da restante liberdade é tão inaceitável, tão repulsiva que o ar de normalidade de tudo o que aqui rotineiramente se passa só pode ser entendido pela monstruosidade do que é uma ditadura. Para mais colonial. 

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O primeiro texto desta série pode ser lido aqui 
 
Conhecida pelos jornais a notícia de que moderno armamento chegado de França seguiria para a guerra colonial em Angola, em 13 de Fevereiro de 1972, a ARA propôs-se destruir tal armamento. Depois de porfiados esforços para reunir toda a necessária informação, soubemos que as armas iriam para os armazéns dos Carregadores Açorianos, no cais de Alcântara em Lisboa, e partiriam no navio Muxima, a 13 de Janeiro de 1972. Planeou-se então colocar ali uma potente carga explosiva e fazê-la lá chegar disfarçada num caixote de vulgar bagagem de quem se desloca para Angola. 

Saber fazer tudo isto e com a garantia de que se tratava de movimentos normais e insuspeitos só foi possível porque um dos militantes da ARA tinha a profissão de ajudante de despachante, e além disso, cumpria serviço militar no Serviço de Transportes do Exército (o economista António Pedro Ferreira, falecido em 2004) o que lhe dava o completo domínio do meio. Inclusive sabia que a melhor hora para a explosão seria entre as 6 e as 7 horas por ser a altura em que não havia actividade no porto de Lisboa. 

Inventou-se um nome e uma morada – António Pires, morador em Casal Virgínia, Idanha-a-Nova, distrito de Castelo Branco. Morada vaga, longe de Lisboa, difícil de comprovar. Manuel Guerreiro, na altura motorista de pesados e actualmente comerciante em Grândola, assumiu o papel mais arriscado da operação: reservar passagem de avião para Luanda num balcão da TAP, ir com o comprovativo ao escritório de um despachante aduaneiro e por fim conduzir ao cais de embarque, numa camioneta alugada, na zona portuária de Lisboa, o pesado caixote com as comprometedoras cargas explosivas. 

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Quando preparava o livro Acção Revolucionária Armada – ARA, um dos materiais mais impressivos que consultei foi o dossier da PIDE/DGS intitulado «Muxima». Os meios usados, o esforço dispendido, as dezenas ou centenas de pessoas interrogadas, incomodadas ou presas revelam o empenho posto na perseguição da ARA e também as rotinas de uma polícia que não tinha preocupações orçamentais. Uma razão suplementar justificava tanto empenho: é que um ano e meio depois de acções armadas com grande impacte político, a PIDE não conseguia encontrara a ARA.

«Muxima» foi o nome dado pela ARA a uma acção de sabotagem, em Janeiro de 1972, de material de guerra que se encontrava no cais de Alcântara, em Lisboa, para ser transportado para a guerra colonial em Angola no navio Muxima.

Antes, porém, de revelar a PIDE em acção, talvez seja avisado, sobretudo para os mais novos, explicar o que foi a ARA e contextualizar a investigação.

ARA é o acrónimo de «Acção Revolucionária Armada» (ver aqui e aqui), uma organização criada pelo PCP, que desencadeou acções armadas contra a ditadura e em especial contra a guerra colonial, de 1970 a Maio de 1973. Os principais alvos eram armamento e meios logísticos da guerra colonial e infra-estruturas, sensíveis e mediáticas cuja destruição contribuísse para o derrubamento do regime fascista.

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A. M. Cunha, hoje engenheiro agrónomo reformado
(Nesta história, só o nome A M. Cunha não é verdadeiro.)

1948 – Lisboa. Rua de S. Bento, em frente da Assembleia Nacional

No liceu Passos Manuel, as aulas começam às oito e meia. Por isso saio logo à pressa. A tia Madalena já saiu àquela hora. Trabalha fora a dias e a Senhora Joana (que me aluga o quarto a mim e a um casal que vem às vezes e nunca se vê) deixa-a dormir lá em casa. Como já não há quartos nem ela tinha dinheiro, dorme à entrada da porta numa cadeira de braços, toda embrulhada em cobertores.

À saída, encontro sempre o Quinas no patamar da escada mas não me faz mal. Ele é mais velho que eu uns cinco ou seis anos, vende rifas mas nunca sai nada e vive com a mãe que é peixeira de canastra à cabeça e gritos de «Oh viva da cooosta!» e com o pai que é funileiro mas passa o tempo a beber copos. Uma vez espreitei. Até faz impressão. A casa deles é o vão da escada. Tem quatro passos aí por uns seis e metade de cabeça baixa por causa da escada. Fazem o comer à entrada do prédio.

Ontem foi a maior vergonha da minha vida. Era Sábado (é às Quartas e aos Sábados de tarde, formamos no pátio do liceu como na tropa, aprendemos a marchar e fazemos a continência de braço estendido ao comandante de Castelo. Às vezes dizemos «Viva Salazar!» (mas é só no meio de discursos e assim) e levei a farda da Mocidade Portuguesa vestida logo de casa. Era a primeira vez. Mesmo à esquina das Escadinhas de Arrochela, há uma cozinha económica que dá sopa aos mendigos. Aquilo é a escada toda cheia de desgraçados a levarem a lata de alumínio à boca com a sopa. Também há gente mais composta que não são pobres de pedir e que estão mais calados.

Ia eu a subir as escadinhas, começam-me a gritar «Piolho verde, piolho verde!», outros apontavam-me o punho e gritavam «Bufo, seu bufo não tem vergonha!», eu desatei a correr por ali acima… Mas o que mais me admirou foi que o que me acusou primeiro «Olha o piolho verde, olha o piolho verde!» e açulou os outros foi o Espinafre, o empregado da carvoaria e que nem é mendigo. Nunca mais vesti a farda na rua.

A. J. Lebre. Trabalhador da construção civil reformado
(Nesta história, só o nome A J. Lebre não é verdadeiro.)

1948 – Mértola, «Alentejo profundo»

Juntámo-nos uns quinze. Mais rapazes que raparigas. Eu tinha dez anos, já andava a trabalhar nos montes com o meu pai havia um ano, mas agora não tínhamos trabalho. Íamos à bolota para assar. Há semanas que passávamos fome. Éramos sete irmãos, só o meu pai trabalhava e não era sempre. A minha mãe só nas mondas ou nas ceifas.

Fomos apanhados. O coiteiro viu-nos e correu connosco, mas antes agarrou a minha irmã mais velha que já tinha treze anos, chamou-lhe nomes e empurrou-a.

O caso soube-se na aldeia e os homens não perdoaram os insultos e foram à procura do coiteiro. É o guarda do monte ou do couto, mas era o nome que a gente dava. Como ele andava armado, um dos homens levava uma espingarda de caça. Houve uns tiros para o ar mas o meu pai e um vizinho apanharam dois anos de cadeia e o que levava a espingarda apanhou três anos.

Eu ia visitar o meu pai à prisão e ficava lá com ele para comer. Aquilo era um água quente com pão mas era melhor que nada. Era como em nossa casa. A comida era pão e uns feijões. Às vezes, um fiozinho de azeite ou um pedacinho de toucinho. Cheguei mesmo a dormir às escondidas na prisão com o meu pai. A prisão de Mértola era uma casa por cima e outra por baixo. Os presos tinham umas enxergas no chão, um buraco para as necessidades e um lavatório pequenino para lavar a cara. Não achávamos diferença. Em casa também nunca ninguém tomava banho. Os rapazes tomavam banho no rio, no verão. Os homens só às vezes para refrescar. A nossa casa tinha dois quartos, um com chão de ladrilhos e o outro e a cozinha de terra batida. Numa cama de tábuas, dormíamos dois com os pés para baixo e dois com os pés para cima. As minhas três irmãs dormiam num colchão no chão.

Quase todos os anos, antes do 1º de Maio, se apareciam papéis do partido ou contra o Senhor Uva, que era o dono de quase toda a terra, a Guarda ia a nossa casa e à de mais dois ou três e prendiam-nos preventivamente. Estavam presos uma semana, depois largavam-nos. Na terra ao lado, havia ricos mas na nossa éramos todos pobres. Só quando vim para a região de Lisboa, para a construção civil, é que me fui dando conta da miséria em que tínhamos vivido. Mas mais por ver a vida dos outros, porque a minha ia melhor mas pouco melhor que na terra.