A vida habitua-nos sem nos habituar a estas notícias, sobretudo quando a velhice nos disputa o viço não perdendo oportunidade de nos corroer as bengalas com que nos apoiamos mais no chão falso da memória que na esperança do projectar, fazer e transformar. A razia de companhias, afectos e admirações já me tocou funda na família (com os adeus dolorosos dos meus pais e de dois irmãos), no meu escritor de culto (José Cardoso Pires), no meu cantor de toda a vida (José Afonso), no amigo que continua na palma da minha mão (o Zé), no único militar profissional de quem fui amigo e tombou em combate de uma forma vil (o major Passos Ramos), no líder político que mais admirei e mais detestei, no meu contraditor político mais estimado e com quem trocava vivas picardias blogosféricas sem o saber ferido por doença implacável (o Jorge Ferreira). Sei que esta lista, nas suas várias qualidades, vai aumentar nos dias que me restarem. Até que uns poucos me digam adeus em saudade rápida porque mais não mereço e assim ficarei aliviado de chorar mais perdas de companhias e referências.

Foi-se o Saldanha Sanches. Não tenho competência para avaliar a dimensão da perda do professor e do fiscalista. E há muito que, politicamente, ele não me impressionava. Respeitava-lhe e admirava a sua frontalidade truculenta e era tudo, o que, nos tempos que correm e segundo as minhas medidas, não era pouco. Mas a perda de Saldanha Sanches acrescenta um novo capítulo no meu índice de baixas. Curtido nas perdas de familiares, amigos, pessoas de culto, faltava-me o género desta perda, o de um companheiro de cela em Caxias. Numa vaga repressiva sobre a contestação estudantil em 1965, um leque seleccionado pela PIDE entre os estudantes contestatários foi encaminhado para a Prisão de Caxias. Eu e a maior parte éramos novatos mas, na minha cela, Saldanha Sanches auto-emergiu como o mais experimentado (já tinha sido preso e baleado) e assumiu-se logo ali como responsável pela cela prisional, distribuindo tarefas e organizando uma lista de reivindicações. Foi breve essa passagem pelos calabouços da PIDE, tanto que nem consta do largo currículo prisional de Saldanha Sanches. Enquanto Saldanha Sanches me “chefiava” em Caxias pela minha insignificância de “preso político de base”, cá fora, no desassossego das famílias dos encarcerados pela PIDE amontoadas às portas da António Maria Cardoso, Esmeralda, a minha irmã mais velha e minha mãe substituta, uma camponesa urbanizada que sempre me reprovava “meter-me em política”, acartando um farnel, impetuava desabridamente, com o seu espírito transmontano, contra os pides de serviço, exigindo a devolução imediata do seu “maninho” e garantindo-lhes que dali não saía enquanto a devolução exigida não se concretizasse. Foram os pais de Saldanha Sanches, já batidos nas anteriores reclusões do filho, usando a sabedoria da experiência, que acalmaram e enquadraram a impaciência dorida da minha irmã. E até eu ver a luz do sol na saída da António Maria Cardoso, os pais de Saldanha Sanches não faltaram um momento no acompanhamento da minha irmã que sofria aquela prisão com a surpresa revoltada de quem nada entendia da necessidade e utilidade de haver quem combatesse a ditadura que ela entendia como uma fatalidade eterna, quase um sortilégio da natureza. Ou seja, enquanto eu em Caxias me subordinava ao “posto por experiência” de Saldanha Sanches, o mesmo género de hierarquia estabelecia-se, cá fora e na cadeia das dores afectivas, entre os nossos familiares. São coisas que a amnésia não corrói.

Até sempre, Saldanha Sanches.

(Publicado também em Água Lisa)

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O Tenente Aviador Aparício, lenço azul ao pescoço e ar de quem está meio cá meio lá, entre a terra e o céu, aterrou a Dornier na pista de terra batida de Catió. Quando o primeiro militar que o foi receber o saúda, dispara, rindo-se, “Então, aqui bebe-se?”. Claro que sim. Quem ia deixar o Tenente Aparício morrer de sede? O aviador é levado, de jipe, ao bar de oficiais e são-lhe servidas as melhores iguarias disponíveis, acompanhadas de cervejas bem geladas. Sabia-se deste voo que era, aliás, aguardado ansiosamente há vários dias. Os aviadores eram sempre recebidos como VIPs na messe de oficiais do batalhão de Catió, quartel que, na maior parte do ano, só tinha ligações com o exterior pelo ar. Na época das chuvas, o aterrar de um avião ou de um heli era sempre motivo especial e comportava a emoção de confirmar que Catió existia no mapa. Entre todos os aviadores militares em serviço na Guiné, o marado do Tenente Aparício era o mais festejado e o mais bem-vindo. Não por ser marado mas por ser o mais marado de todos, tanto que era o único que se dispunha a aterrar de Dornier em Guileje. E este quartel era a posição mais martirizada e mais isolada da área de intervenção do batalhão e em toda a Guiné. Por causa disso, a tropa de Catió encaixava bem as risadas sem motivo deste aviador e uma ou outra frase desconexa que ia largando, pelo valor único que ele representava para o batalhão e para o pessoal de Guileje. Após menos de meia hora a descansar, a comer e a beber, o Tenente Aparício ajeitou o lenço azul e levantou-se. “Vamos a isto!”, disse com os olhos a brilharem. Se era o único que aterrava de avioneta em Guileje, aquele era o sítio onde ele mais gostava de ir. Cada viagem era uma aventura. E o Aparício adorava aventuras.

Carregado o correio, medicamentos, algumas peças e acessórios, tudo em quantidade limitada por causa do pouco peso que a aeronave podia transportar, o Tenente Aparício despediu-se. E mandou-me subir. Naquele dia eu ia ser seu companheiro de viagem até Guileje. “Vamos a isto!”, repetiu, replicando mais uma versão das suas risadas. Eu ia para passar uma semana em Guileje, como fazia quase todos os meses, para tratar de problemas com as transmissões e trocar os códigos das cifras da criptografia. E, por isso, seria companheiro de viagem do Tenente Aparício. E uma ida a Guileje era sempre uma emoção, pelo risco e por rever os camaradas martirizados e isolados bem junto da fronteira com a Guiné-Conacri. Para mais, conduzido pelo aviador mais marado da Guiné. O aviador conduziu a aeronave com os jeitos e o ar de condutor habituado a uma estrada de todos os dias. E ia sempre a rir-se, na maior parte das vezes sem se entenderem os motivos. De repente, a janela da Dornier do meu lado salta e desaparece no céu. O ar entra em turbilhão e faz esvoaçar toda a papelada solta. O aviador riu-se ainda mais. Como tendo achado que aquele incidente só ia tornar mais insólita e mais típica aquela viagem e ainda dava para gozar com a cara azulada da preocupação do seu companheiro inquieto e que duvidava que, sem janela, aquela geringonça se pudesse aguentar no ar. O aviador comentou, sem conter o riso: “Eu bem disse na Base que essa merda estava mal apertada, mas não faz mal, o avião não cai, ficamos é com as ideias mais frescas.”. A viagem decorreu, num regalo de vista sobre as matas luxuriantes de verde intenso como era típico do sul da Guiné, permanentemente atravessadas por enormes e serpenteantes cursos de água. Debaixo de nós, o fabuloso Cantanhez expunha a sua beleza única. Sempre a sobrevoar uma zona controlada pelo PAIGC. É que, no sul, tirando os quartéis isolados e sitiados de Catió, Guileje, Gadamael e Cacine, mais uns tantos destacamentos, todos sob o comando militar de Catió, a zona era inteiramente controlada pelos guerrilheiros. Estes, só eram contrariados no seu domínio pelo exército português através de bombardeamentos aéreos, fogo de artilharia e surtidas temporárias das forças especiais. E isto durou até o PAIGC receber os mísseis terra-ar soviéticos, porque, a partir daí, quase todos os aviadores se recusaram a voar no sul. Mas isso foi mais tarde, já o Aparício de lá tinha saído. Voar, naquela zona, era um desafio permanente às antiaéreas da praxe e, quanto a isso, havia que confiar na divina providência ou coisa do género. Naquela viagem, o risco era o costume, a beleza da paisagem idem, só a ventania dentro da cabine estava fora da rotina.
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Muito trabalho nos requereu trazer o Duarte “ao partido”. Ele alinhava, comprava os materiais, votava “connosco” nos plenários e nas listas, mas de cada vez que se abeirava a concretização da filiação, o Duarte invocava a sua forte razão de resistência: “não quero ter chatices com a minha mulher” e, aí chegados, suspendia-se a sedução partidária porque não se pretendia escarafunchar os mistérios domésticos de cada um. Mas, após o 11 de Março (1975) e com a nacionalização da empresa, foi o próprio Duarte que tomou a decisão de pedir “a ficha”, fazendo questão de a requerer à sua chefia, um dos militantes mais antigos e activos na célula. Mas foi uma mera resolução formal pois não contassem com ele para qualquer participação cívico-revolucionária pós-laboral. Só acrescentou à sua rotina anterior de participação política o pagamento pontual das quotas. Era a forma, respeitável como qualquer outra, como ele geria as suas inclinações, entre os incêndios do PREC, mas sem “ter chatices com a mulher”.

No fim de tarde de 24 de Novembro (1975), a orientação veio rápida e sem dar margem para hesitações: “Chegou a Hora”. Tudo ia estar em jogo para se ganhar ou se perder. Não havia lugar para meias tintas. Ou se ia para o socialismo a sério ou se regredia para a longa noite. A sentença dilemática estava traçada. Portugal tinha a sina do tudo ou nada, fascismo ou socialismo real, democracia parlamentar burguesa é que não tinha cá cabidela (uma “impossibilidade” fartamente teorizada por Cunhal). Aquecida a luta de classes, a solução estaria agora nas espingardas. Pois, 1917 em Petrogrado, 1948 em Praga, etc e tal, lembram-se? Ou nós ou eles. Trazida pela controleira da zona, a instrução era para se saber rapidamente quem tinha feito a tropa mais a guerra colonial e em que especialidade. Levantamento feito, pelotão constituído em duas penadas. Tudo analisado e decidido de trinta e um de boca mas era o que se podia arranjar. É esta noite. Mais vale improvisar e atamancar que perder o comboio expresso da história. Vamos a isso. É esta noite. Ou nós ou eles. Antigo alferes miliciano, com os galões suplementares de ter andado na Guiné, calhou-me o comando do pelotão improvisado na minha fábrica. Que incluía o Duarte que tinha feito a guerra em Moçambique onde lidou com as chamadas armas pesadas de infantaria, ao qual, em termos de tarefas milicianas e revolucionárias, foi confiada a missão de lidar com a bazuca.

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Os “Caminhos” deram o devido destaque de lembrança, embora com a inevitabilidade da insuficiência face á riqueza política e histórica da importância crucial dessa ruptura na fábrica de elites da ditadura, à resposta da juventude estudantil à repressão ao Dia do Estudante de 1962, empurrando para a luta antifascista muitos dos destinados a serem quadros de garantia do regime e integrarem as suas elites (e só por isso e para isso acediam à Universidade).

Os depoimentos de José Augusto Rocha, Isabel do Carmo, Jorge Sampaio e Helena Cabeçadas, são indispensáveis e esclarecedoras visitas de memória a acontecimentos que marcaram o despertar político com vontade de combate para tantos que, depois, não interromperam as tarefas de enfrentar a ditadura até à sua queda, com disponibilidade política ainda suficientemente viçosa em 1974 para serem “quadros destacados” da revolução e da construção democrática, muitas vezes repartidos em diferentes e conflituantes trincheiras, de que uma parte sobreviva e restante ainda hoje é renitente a calçar as pantufas da pré-reforma na intervenção cívica. O que, só por si, é demonstração da profundidade do erro do salazarismo quando, em Março de 1962, respondeu com a pulsão da brutalidade cega e estúpida à tentativa de se comemorar o Dia do Estudante em 24 de Março de 1962. Se é verdade que, numa qualquer luta, a maioria dos sucessos se devem a erros crassos cometidos pelo adversário, então a luta antifascista depois de 1962, a revolução de Abril e a construção e sustentação da democracia portuguesa, “muito devem” a Salazar, à polícia de choque e à PIDE. Sem a repressão fascista de 1962 que desencadeou uma generalizada e típica indignação juvenil, generosa e radical, obviamente com as proporções possíveis na sociedade portuguesa da época, muitos dos jovens estudantes de então nem sequer se iriam politizar quanto mais enveredarem, como aconteceu a tantos, pela luta revolucionária e clandestina contra a ditadura. É verdade que alguns dos “estudantes em luta” em 1962 se acomodaram ao refluxo que se seguiu, normalmente com a ajuda das pressões das famílias, tratando dos seus cursos e carreiras mais que da militância cívica, embora irreversivelmente “perdidos ideologicamente para o regime” e “marcados para sempre” pela vivência do Dia do Estudante, enquanto outros seguiram os caminhos do exílio, mais ou menos comprometido politicamente com a aversão à ditadura. Mas muitos foram os “estudantes de 1962” que foram rechear a militância clandestina do PCP (então a única força organizada com capacidade de ancorar o desejo de muitos jovens em passarem a formas “superiores de acção” contra a ditadura), carecendo a nossa bibliografia histórica e política de análises aos efeitos quantitativos e qualitativos deste grande influxo estudantil nos quadros e militantes do PCP (o que mudou, e muito, a repartição das origens sociais dos militantes do PCP – “partido da classe operária” – e intelectualizando-o), além daqueles que, depois fardados e mandados para as guerras coloniais, corroeram a unidade ideológica nacionalista da “frente militar colonial” e contaminaram politicamente, com a demonstração do absurdo criminoso daquelas guerras, os oficiais profissionais (e sem se ter em conta esta contaminação, não é possível entender o MFA).

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O Quintino já tinha o cabelo branco antes de chegar a Revolução. Mas não era tão velho quanto parecia. O cabelo é que tinha embranquecido precocemente. Era um ónus hereditário, segundo ele, explicando que o mesmo tinha acontecido ao seu pai e seu avô. Além de branca, a cabeleira também era escassa. Todas as manhãs, num ritual que ia repetindo ao longo do dia, Quintino dedicava uns minutos vagarosos a acamar, pacientemente, os poucos cabelos brancos de um lado para o outro do crânio, de forma a melhorar, assim pensava ele, o seu visual capilar. Também não descurava outras vertentes quanto ao seu aspecto. Modesto escriturário, sonhando com uma carreira que lhe melhorasse o futuro, ele sabia que, para atingir os seus fins, a apresentação exterior era importante. Nunca chegaria a chefe de secção ou de departamento se causasse má impressão à observação atenta dos seus superiores. Assim, Quintino andava, por regra, vestido com fatos completos e claros e usava, sempre, um lenço de seda (oferta de Natal) a compor-lhe o pescoço. Achava que aquele adereço era preferível à banal gravata como sinal de aptidão para ser uma chefia potencial antes de chegar às vias de facto. A empresa onde trabalhava estava fortemente conotada com o antigo regime e os seus usos e costumes. Tanto, que guaritas da Legião vigiavam o perímetro das instalações industriais. Quintino não queria destoar e para o tornar evidente aos olhos dos chefes, tinha sempre exposto um enorme terço terminado num grosso crucifixo em plástico duro pendurado no vaso pintado (oferta de Natal) onde guardava as esferográficas e que se destacava na arrumação impecável da sua secretária.

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A revolução ainda acordava para vigílias sem sono e tarefas sem fim, havendo tudo para fazer sem que nada parecesse impossível de mover e mudar. O “Avante” passar a ser legal e circular de mão em mão, vendido em papelarias e quiosques, difundido às escâncaras, com orgulho e alegria, em fábricas, escolas e escritórios, era o sinal maior do tamanho enorme do tanto que tinha mudado. Mas se, em energias descarregadas, parecia que o vento da história movia os moinhos da utopia, a causa sentia-se como só podendo ter a forma de um monolito. Relativamente ao património e à mitologia épica associada à gesta da imprensa clandestina, era difícil aceitar que outros, para mais rivais, chegada a revolução, a quisessem ultrapassar em ressonância no reconhecimento popular dos alvarás da resistência antifascista e da capacidade de andar para a frente. Assim, a forma atrevida e altissonante como a rapaziada fanatizada do MRPP anunciava e difundia o “Luta Popular”, só podia ser entendida, além de uma provocação, como um atrevimento concorrencial de decoro e pergaminhos, uma ofensa aos heróis que, contra ventos e perseguições, tinham mantido as tipografias artesanais e disfarçadas que alimentaram a voz dos reprimidos. Aquela revolução, como as outras, só permitiam aceitar-se um ser e um estar que se confundissem com os méritos do passado que a tinham tornado possível.

Entretanto, o futebol continuava, inamovível, ao lado da revolução, disputando paixões e multidões. E, à beira de casa, muitas vezes emitindo sons estridentes que me entravam pelas janelas, condensando a ânsia e o festejo do golo, em orgasmos colectivos, multidões juntavam-se às tardes de domingo em grandes missas de histeria colectiva no Estádio da Luz. Daí ao desafio foi um pequeno passo. Organizado um grupo de vizinhos camaradas, requisitado um bom molho de avantes, montaram-se bancas improvisadas no caminho de maior tráfego apeado da multidão rumo ao estádio, na Segunda Circular, uns poucos metros antes do perímetro de feira onde se vendiam couratos, bonés e bandeiras. Jornal estendido e mostrando o cabeçalho, ali nos esforçámos, domingos a fio, enfrentando o fluxo contrário e apressado apostado na conquista de um lugar nas bancadas, gritando-lhes até enrouquecer “Olha o Avante, órgão central do Partido Comunista Português!”. Os resultados foram sempre escassos, o jornal saía à quinta e os da romaria (vermelha!) de passo apressado segurando bandeiras ou só paixão ansiosa ou já o tinham comprado ou estavam concentrados em preocupações que metiam outras balizas. Mas ganhámos sempre no campeonato do ritual do insólito genuíno, com uma sensação de desforra perante outros atrevidos da concorrência, pois reposta tinha sido a honra dos pergaminhos. Fechadas as portas do estádio, comportando multidões alienadas em disputa de paixões periféricas, uma heresia em tempo de revolução, recolhidas as sobras, contados e registados os magros tostões recolhidos, gargantas gastas, achávamos que a honra revolucionária tinha marcado golo. Para nós, então, era mesmo assim.

O drama maior, sempre seguido de uma angústia seca que ia do estômago até ao pensamento e ao sentimento, de quem tinha a militância anticolonial já metida no corpo, era, para os que não optavam pela deserção e pelo exílio, como fazer “aquela guerra”. O “logo se vê” era uma forma de tentar adiar o inadiável, confiando na gestão corrente e possível da ilusão de manter as mãos limpas entre convicções entranhadas e a responsabilidade por homens carne para canhão arrancados à juventude para serem fardados, metralhando e sendo metralhados, entregues à nossa guarda e comando. O salazarismo-marcelismo jogava nesta ambiguidade dos oficiais milicianos numa guerra que sabia que muitos odiavam. E o que lhes equilibrava o balanço de análise estratégica, arriscando inclusive mandarem para as frentes de combate, comandando tropas, dirigentes e activistas veteranos e experimentados das lutas bravas estudantis contra o fascismo e o colonialismo, era saberem que pesaria, nos comportamentos e portes dos jovens oficiais milicianos, estes terem sob suas responsabilidades, em cenário de guerra, não só a sua própria vida como a de uns tantos outros – furriéis, cabos e soldados -, arrancados ao Portugal profundo e adormecido. E que a realidade da guerra, nua e crua, construiria o resto que lhes convinha: perante ideias e convicções optadas mas só espelhadas ali em fogo vindo do escuro anónimo da mata, a fraternidade de corpo da família tuga, construída em equipa desterrada e feita em cumplicidades de desfortuna partilhada, venceria a pulsão de mata antes que morras e morram os que comandas. O regime e os oficiais milicianos de consciência anticolonial jogaram, durante toda a guerra colonial, um jogo perverso, como gatos e ratos vestidos de camuflados, entre convicções e condições. Nos treze anos de guerras coloniais em África, o regime ganhou primeiro e só se rendeu, baqueando depois, quando os oficiais milicianos conseguiram partilhar a corrosão das angústias das suas ambiguidades não resolvidas não “para baixo” (para os furriéis, cabos e soldados, a maioria vinda do povo “feito para obedecer”) mas sim “para cima” (para os oficiais profissionais de baixa e média patente, quando a estes chegou o desgaste da guerra infinda e inglória).

Feito o intróito, está na hora de passar ao Major Pinheiro, um típico oficial “tarimbeiro”. Ele era do tipo de oficial pançudo que abanava o rabo a acompanhar movimentos enérgicos dos braços, no esforço inglório de tentar imitar um porte marcial. Vindo de sargento, tinha andado pela GNR, fizera uma comissão em Luanda, outras em Lourenço Marques e agora era segundo comandante no batalhão do Pelundo. Ali, era a máxima autoridade a seguir ao Tenente-Coronel Romeira. De guerras, pouco tinha aprendido. Restava-lhe a prosápia da ordem unida, dos regulamentos e do semi-bigode apensado em cima de um lábio superior vermelhusco e sempre húmido. Mas adorava os tratos de couves e demais hortaliças, num esforço fanático para conseguir a auto-suficiência no alimento das nossas tropas e eventuais proveitos nos débitos para a conta do rancho. Chegado ao Pelundo, o Major Pinheiro tomou a peito o pelouro dos melhoramentos (com a construção de uma igreja na frente das prioridades) e, como não podia deixar de ser, a implantação e conservação de uma enorme horta que vitaminasse o pessoal. Quem queria encontrar o Major Hortelão, não tinha que hesitar, ele havia de estar, pela certa, a peito descoberto no meio do batatal, ou camuflado entre os feijoeiros ou então, em última hipótese, emaranhado no meio dos ramos dos tomateiros. O Major Pinheiro era um subserviente relativamente ao Comandante e à ordem estabelecida. Fazia contas e mais contas ao pé-de-meia amealhado com os ganhos e poupanças dos soldos das comissões em África e que o levava a sonhar alto com compras de mais courelas na sua santa terrinha, lá para os lados de Águeda. Ninguém tinha em grande conta o Major Pinheiro, excepto ele próprio. Não dava duas para a caixa a conversar e não percebia nada da poda dos assuntos da guerra, quanto mais todos os outros que não metessem contas de investimentos de poupanças ou artes para rentabilizar a horta. Resumindo, era um chato, a caminho do labrego típico. Sem que isso colidisse com os seus galões de major. E, na calmaria ronceira de então no quartel do Pelundo, a tropa habituava-se à boa rotina, esperando que o tempo da comissão tivesse termo. Entretanto, iam crescendo as hortaliças do Major Pinheiro.

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Para um adepto irremediável do futebol e com dois (!) clubes no peito como eu sou, olhar a capa de um livro de um académico sobre as coisas da bola (*), natural seria que me levantasse, em simultâneo, uma tosse seguida de espirro. Mas foi só quase. A consagrada tese dos “3 Fs” que um antifascismo primário colou à relação entre a ditadura e o futebol, acompanhando-o de um fenómeno tão distinto como o fado mas tão similar como foi e é Fátima, é bem conhecida, tarde ou cedo este estereótipo salta, servindo o verniz da alergia a muita gente em bicos de pés no status cultural, e por isso merece ser estudado e verificado. Assim, foi de uma forma dócil que meti o livro de Ricardo Serrado (**), uma reprodução da sua tese de mestrado, na minha alcofa das compras. E, diga-se, sem lamentos vulgares e próprios de tempo de poupanças.

Parece-me que Ricardo Serrado (RS), na sua tese esforçada de desligar o futebol do fascismo, é mais veemente que convincente. Embora equilibre o efeito distorcido do estereótipo difundido e aceite pelo politicamente correcto na preguiça corrente com que se interpreta o fascismo português, o dos “3 Fs”, RS parte de um lugar comum académico e só triunfante porque insuficientemente contraditado: o de que o salazarismo-marcelismo não foi um fascismo (o que leva muito boa gente a adoptar o termo “Estado Novo” com que Salazar baptizou o seu regime ditatorial, e normalmente sem o pudor mínimo de lhe meter aspas). Sendo uma das comprovações deste “aligeiramento” na categorização (sugerido com resultando do amor ao rigor) a ausência (ou reduzido a esporádicas erupções), na longa ditadura portuguesa, do “fenómeno de massas” e levantando, para abono da tese, o carácter de homem solitário que habitava o Botas, o seminarista adverso às multidões. Obviamente que Salazar odiava as multidões quando não as controlava e odiava os ajuntamentos e o povo, por desconfiança atávica, quando este não se reduzia a suar a cavar batatas. E, assim sendo, um eremita bêbado de poder, Salazar não podia entender e muito menos gostar de futebol, espectáculo e paixão de multidões. Mas, ao mesmo tempo, nunca permitindo intimidades ou proximidades que o seu nojo pelo povo não permitia, Salazar sempre encenou ou mandou encenar celebrações de multidões, até para legitimar a ditadura, sobretudo nos momentos críticos para o regime. E comparecia nelas, muitas vezes. O Jamor aí está como demonstração, esse estádio que é a última grande perpetuação (continua a ser o palco exclusivo das finais da Taça de Portugal) da ligação profunda (propagandística, estética) entre o fascismo português e o futebol. Julgo também como certeira a defesa de RS de que foi mais o futebol (e os clubes) que se impôs à ditadura que o inverso. Embora, como não nega, a ditadura tenha aproveitado sempre e ao máximo todo o desvio de motivações e exaltação nacionalista que o futebol português proporcionou aos ditadores. E esse mesmo aproveitamento foi o mais significante em termos de ligação entre política e futebol de que o regime beneficiou mais que o próprio futebol (o qual, sintomaticamente, se consolidou muito mais em tempos de democracia, “fogachos” do Benfica e da selecção no Mundial de 66 à parte).

O capítulo mais interessante do livro de RS é o dedicado à final de 69 da Taça de Portugal em que os estudantes de Coimbra, em luta cerrada e valente contra o fascismo, transformou a “festa do Jamor” numa jornada política de luta (a que aderiu, maioritariamente, a massa de adeptos do Benfica ali presente). Trata-se de um capítulo bem documentado e o melhor tratado. Mas não serve, como parece ser destinado, como prova válida de que, como fenómeno, o futebol não só não foi amado pelo fascismo como enfrentou ou corroeu o regime. Foi um acto isolado, mesmo que dos mais vivos em termos de reversão dos rituais do fascismo português. Nunca aconteceu nada igual nem parecido, antes ou depois. Aliás, a invasão coimbrã do Jamor, essa grande jornada de vergonha para a ditadura, está, na memória colectiva, se esta pretender ser justa, “empatada” pela monumental ovação que Marcello Caetano recebeu em Alvalade pouco antes do 25 de Abril e já dada a tentativa do 16 de Março vinda do quartel das Caldas.

Um historiador ter-se dedicado ao estudo e história do futebol, é uma novidade e excelente notícia. Para além das repulsas, o futebol é o futebol. Se a história o desprezasse, seria a história que perderia, passando ao lado do maior e mais importante espectáculo de massas de todos os tempos.

(*) – “O Jogo de Salazar – a política e o futebol no Estado Novo”, Ricardo Serrado, Edição Casa das Letras.

(**) – Ricardo Serrado é licenciado e mestre em História (Universidade Nova de Lisboa), ainda investigador do Instituto de História Contemporânea da FCSH e do Centro de História da FLUL, bem como director do Centro Histórico do Futebol e Desporto.

(Publicado originalmente no blogue Água Lisa)

 
Conheci um grande artista quando ainda estava circunscrito a um cubículo comercial que lhe aperreava o talento. Refiro-me a um dos grandes fotógrafos portugueses tardiamente revelado e que, ainda depois, derramou talento como camara man no cinema e na televisão: Augusto Cabrita (1923-1993).

Quando miúdo, vivendo no Barreiro, volta e meia tinha de ir tirar as tais fotografias tipo passe. Não tinha escolha de fotógrafo. A família toda era “obrigada” a recorrer a um que tinha estabelecimento montado, um pequeno estúdio fotográfico, junto à Sociedade Os Penicheiros. Questões velhas de amizades entre famílias com afinidades. Eu lá ia, tinha que ser, por obrigação e sem qualquer gosto, molhando constantemente a mão e passando-a pelo remoinho no alto do meu cabelo rebelde para ficar o menos mal possível no retrato de obrigação. O fotógrafo era o Senhor Cabrita. Ele tratava-me simpaticamente e procurava pôr-me à vontade, trocando impressões cúmplices sobre como iam as coisas no nosso Barreirense, então a jogar na primeira divisão. Era um homem de riso aberto e com um olhar que se via que estava para além do pequeno estabelecimento onde ele ganhava a vida e que fora montado pelo seu pai. Enquanto vivi no Barreiro, nunca recorri a outro fotógrafo que não fosse o Senhor Cabrita. Soube depois que, enquanto artista, ele exercitava, em privado, outros talentos ligados à música, sobretudo tocando piano, inclinação que partilhava com a sua irmã Dulce que vim a conhecer mais tarde, uma economista, bibliotecária e Mezzo-Soprano (tendo ilustrado, magnificamente, com a sua espantosa voz, obras de Lopes Graça), casada com o jornalista e escritor Dinis Machado.

Mas o Senhor Cabrita, melhor dizendo – Augusto Cabrita, galgou espaços para além da sua “lojeca” barreirense e do mundo das fotografias tipo passe e de casamentos e baptizados, desatou a fotografar por aí fora, tornou-se reconhecido, começou a recolher prémios e a tornar-se famoso. Fez nome no cinema (foi o responsável pela imagem do Belarmino de Fernando Lopes) e na televisão, através de inúmeras reportagens, sobretudo as associadas à guerra colonial. De “fotógrafo” passou a Artista. Foi um dos melhores fotógrafos portugueses de todos os tempos e terminou a sua carreira com direito ao tratamento reverencial de Mestre Augusto Cabrita. Tinha, sobretudo, um enorme talento a captar rostos e enquadramentos paisagísticos e sociais. Sem as fotografias dele sobre o “velho” Barreiro, dificilmente a memória da urbe e suas pessoas que enquadraram a maior concentração industrial portuguesa de todos os tempos teria sobrevivido, incluindo a transição de uma aldeia ribeirinha de moleiros, pescadores e fragateiros para a via da modernidade e da industrialização, pelos caminhos de ferro, pela indústria corticeira e, finalmente, pelo gigante industrial que foi a CUF e que foram transformando o Barreiro na maior vila operária portuguesa.

Demorou mas chegou o tempo da minha vaidade juvenil de apregoar aos quatro ventos, para me pôr em bicos de pés face aos do meu tamanho e igualha, quando Augusto Cabrita começou a alastrar a sua fama, de informar as minhas tribos escolares que aquele senhor, agora Mestre, era quem me tirava os retratos para os bilhetes de identidade e cadernetas onde me registavam as gazetas às aulas.

 
Imagem: Uma das fotografias de Augusto Cabrita. Regista o tempo do advento da televisão, em meados dos anos 50 do século XX, um bem escasso que se via sobretudo nos cafés e que, em momentos especiais, provocava ajuntamentos urbanos.

 
(Texto publicado no blogue Água Lisa)

 

Depois do meu primeiro natal e mudança de ano, sem emboscadas, minas ou trocas de tiros, inconformado mas “adaptado”, lidando com o paludismo que me apanhara e a solidão que não me largava, vivendo intensamente, através da distância, o poema levado e trazido pelos aerogramas sobre a saga comovente de a minha primeira filha, a Catarina, estar a crescer na barriga de sua mãe, o insólito aconteceu. Alferes miliciano da tropa colonial, internado no noroeste da Guiné, em Pelundo no chão manjaco, então zona de impasse no conflito, fui condenado a uma pena de prisão. Numa cena corriqueira de entradas e saídas do quartel no mato, o comandante do batalhão, um tenente-coronel, ordena-me (eu estava de “oficial de dia”) que aplicasse um castigo corporal a um cabo do meu pelotão que regressava “desenfiado” (após a hora de recolher estipulada) ao quartel e que ele tinha visto a tentar regressar sorrateiro. Numa noite no mato da Guiné, enfiados naquela guerra estúpida, aquela ordem soou-me a muito mais absurda que a falha regulamentar do cabo. E senti-a como um insulto às nossas condições e circunstâncias. Pior, mais estúpida que a própria guerra. Reagi, recusando-me a cumprir a ordem e desafiei o tenente-coronel a tentar ser ele a cumprir a “pena” de agressão, mas avisando-o que, se o tentasse, contaria com a minha reacção. O assunto morreu (adormeceu) ali, o tenente-coronel enfiou-se nos seus aposentos, o cabo safou-se de qualquer sanção, eu terminei o meu “serviço” a olhar as estrelas das noites da Guiné. No dia seguinte de manhã, foi-me comunicada uma sanção disciplinar pelo meu comportamento “indigno de um oficial” por “desrespeitar as ordens dadas pelo seu comandante”: dois dias de prisão. O quartel não estava dotado de prisão pois os prisioneiros feitos na região eram entregues à PIDE que tinha calabouços e um centro de interrogatórios em Teixeira Pinto, ali perto e onde estava instalado o comando militar operacional da região. O diligente tenente-coronel mandou evacuar uma casamata que servia de abrigo e foi ali que cumpri a minha pena de prisão, estendida a três dias porque foi agravada por despacho do general Spínola, então governador e comandante-chefe da Guiné. Foi uma pena de prisão caricata, tendo havido um “levantamento” de solidariedade no quartel que eu próprio tive que desarticular, apelando ao bom senso dos “revoltosos” comandados pelo médico do batalhão que, com uma “força” e armados de G3, irromperam na minha casamata-prisão para “me libertarem”. Depois de parlamentarmos, assentámos numa plataforma de entendimento, substituindo a “libertação” pela organização de convívios em carrossel no espaço improvisado da prisão, cantando Zeca Afonso, jogando cartas e esgotando o stock do majestoso vinho de missa fornecido pelo capelão, também solidário na “revolta”. Ao fim e ao cabo, em vez de prisão prisioneira, o que aconteceu foi mais uma manifestação simbólica, num quartel metido dentro da guerra colonial, de repúdio perante o hiper militarismo de alguns profissionais da guerra, fascistas fardados, que juntavam ao ódio colonial que motivava a guerra, um conceito medievo e salazarista de ordem militar bruta que considerava normal que os castigos dos oficiais aplicados aos subordinados incluíssem o direito ao espancamento, mesmo para pecadilhos de pouca ou nenhuma monta. Portanto, pela minha parte, não foi por aqui que o gato foi às filhós. Pior eram as consequências do castigo que me foi averbado, enquanto oficial punido com prisão: mais três meses de guerra (passei de uma comissão de vinte e um meses para vinte e quatro); perda do direito a voltar a gozar férias (o que retardava ver a minha filha, a nascer em breve, só me sendo permitido fazê-lo quando ela tivesse a idade de nove meses -(*); expulsão da minha unidade, com transferência imediata para um outro batalhão (como “oficial castigado”, naturalmente que me esperava ser colocado num quartel sujeito a “guerra quente”).  

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Vai saltando a tampa da amnésia com que a “transição” enclausurou a memória dos espanhóis. Os falangistas reciclados a toda a velocidade e que, mais tarde, desaguaram maioritariamente no PP, foram, natural e imediatamente, os grandes beneficiados com o pacto dos silêncios sobre o passado. Os tabus instituídos tacitamente alimentaram a ilusão de que era possível uma democracia pós-franquista, democrática mas com o rei fabricado por Franco, a manutenção da iconografia feita de exaltação de Franco e da gesta dos vencedores na guerra civil, com os arquivos do ditador (incluindo a matéria de Estado) sepultados nas mãos da família (um caso único em que a família de um ditador renegado herdou, com direito a sequestro, os documentos do Estado circulados no escritório do ditador). Os partidos dos antifranquistas espanhóis, ainda sob o sindroma do medo tecido durante décadas pela ditadura e cientes das suas fragilidades na afirmação pública e popular, com o “exemplo português” a crepitar-lhes ao lado, temendo uma hipotética regressão sob forma violenta, cederam, cambiando amnésia por consolidação democrática. O resultado mais vivo desse pacto, gerido por Suarez e vigiado pelo rei, em que a Igreja, Gonzalez e Carrillo ajudaram à missa, foi uma geração inteira de espanhóis educada na ausência de memória, portanto sem passado, e um país surreal, democrático na aparência e nas formalidades, pintalgado de norte a sul, este a oeste, com as evocações, loas e monumentalidade dedicada ao ditador e aos vencedores armados pelo nazi-fascismo, servida por um cultura construída em cima de interdições históricas, grotesca no seu enorme buraco negro plantado na memória colectiva. Tirando extremistas marginais, ninguém queria assumir-se como herdeiro das décadas de ditadura brutal e assassina de Franco, mas minguavam os que queriam enfrentar a ferida por sarar aplicando-lhe a tintura e a compressa feitas de verdade, de justiça e de catarse. Neste contexto, em que os políticos democratas baquearam, o papel de rebeldia foi assumido por jovens historiadores e descendentes das vítimas de Franco, os primeiros exigindo conhecimento e rigor, os segundos pugnando, sobretudo, pela identificação e direito a sepultura das ossadas dos fuzilados pelo fascismo espanhol e espalhadas pelos campos e valetas de toda a Espanha. Os dois governos Zapatero, apesar de inúmeras tibiezas e insuficiências, têm direito à honra de colocarem a política com o passo acertado pela história.

A proliferação da historiografia sobre a guerra civil e o franquismo, apesar das lacunas importantíssimas pela falta de acesso a documentos valiosos e fulcrais, é uma evidência para quem visita Espanha e espreita as livrarias. O tabu está quebrado. Há os que fazem recuperação da memória e recolocam os vencidos dentro da história. Há os neo-franquistas, e são bastantes, que diluem responsabilidades tentando relativizar os crimes (lembram os estalinistas estúpidos e estupidificantes daqui que, sobre o Gulag, referem os delinquentes dos Estados Unidos; sobre a queda do Muro de Berlim assobiam para o Muro de Jerusalém). Há polémica e querelas para todos os gostos. Mas a história pula e avança.

Julián Casanova, na foto, é um jovem historiador espanhol. Juntamente com o seu colega Carlos Gil Andrés, acaba de editar uma ‘Historia de España en el siglo XX’. Num debate vivo e interessantíssimo promovido pelo jornal “Público” (acessível aqui), Julián Casanova responde a várias questões colocadas pelos leitores do jornal e que tocam várias facetas da problematização sobre o passado franquista. Das respostas de Casanova destaco a lembrança do que mais é esquecido sobre a ignomínia franquista: não saciado com as cem mil pessoas que Franco assassinou durante a guerra civil, no após-guerra, como vencedor sedento de sangue e vingança, sentado no seu poder absoluto, fuzilou ainda mais cinquenta mil espanhóis (no período 1939-1946). Em tempos de revivalismo vampiresco, recordar o gosto de Franco por sangue de adversários e diferentes, não destoa.

Publicado inicialmente no Água Lisa.

pide guerra colonail

Dalila Mateus, num livro editado há tempos atrás mas que é uma referência da historiografia dedicada à guerra colonial (*), portanto sempre actual, aborda as actividades da Pide/DGS nas antigas colónias no período 1961-1974, uma questão que ainda é tabu, até pelos desassossegos que desperta em grande parte dos militares que participaram naquela guerra. A historiadora expõe os mecanismos de actuação da Pide/DGS em África e os meios que dispunha e que utilizava (na medida do que é possível saber-se e escapou à destruição dos arquivos). Além de demonstrar que o que se passou nas frentes das guerras coloniais foi um genocídio intermitente gerido contra as populações africanas (confirmando a caracterização feita pela ONU), para além de actos de brutalidade generalizada e de máxima crueldade praticados pelas Forças Armadas, sobretudo durante o primeiro período da guerra mas que se verificaram pontualmente até ao fim, o grosso das acções de obtenção de informação, infiltrações entre os guerrilheiros, atentados contra os seus líderes, tortura de prisioneiros, gestão de prisões e de campos de concentração (onde o internamento era ordenado pela própria Pide, sem julgamento e como sendo um ”acto administrativo”de “fixação de residência”) foram cometidas à Pide/DGS. Ou seja, na maior parte dos casos, as Forças Armadas passavam para a Pide a maior parte do “trabalho sujo” relativamente a militantes, simpatizantes ou suspeitos de simpatias para com as causas nacionalistas.

Esta “repartição de tarefas” assentou numa cumplicidade e complementaridade totais e absolutas. Para além de permitir que as Forças Armadas salvaguardassem a sua imagem de “combatentes” apenas “guerreiros”, cumprindo uma qualquer ética castrense, e com margem para a chamada “psico”, o trabalho entregue à Pide “ganhou” em “especialização” e em “eficácia” (embora, por regra, as operações ofensivas tenham sido conjuntas). Mais, tornou as duas organizações numa espécie de irmãs siamesas em que uma não podia viver sem a outra. As operações militares faziam-se com base nas informações da Pide, a Pide trabalhava os prisioneiros feitos pelas Forças Armadas. Neste sentido, as torturas, os assassinatos, as prisões indiscriminadas, cometidas pela Pide durante a guerra colonial, foram crimes da polícia política mas mancharam, na mesma dimensão de iniquidade e responsabilidade, os comandos militares irmanados com a polícia. E sabendo como sabiam o que a Pide aplicava aos guerrilheiros, a co-responsabilidade é absoluta.

Como entender a resistência havida após o 25 de Abril, em extinguir a Pide em África, em que, sobretudo em Angola, ainda trabalharam durante muito tempo integrados na PIM (Polícia de Informação Militar)? Como entender a excelente apreciação que a maioria dos oficiais de carreira fazia sobre os méritos da Pide em África? Como entender que o Alto-Comissário em Moçambique (Vitor Crespo), onde a Pide foi desmantelada mais cedo, se tenha encarregado de destruir os ficheiros da Pide? Como perceber a ausência de escrúpulos dos militares golpistas após o 25 de Abril trabalharem em estreita colaboração com ex-pides, retomando velhas cumplicidades? Finalmente, como perceber que, enquanto na metrópole, a Pide era odiada pela população, em África ela era considerada e acarinhada pela maioria dos colonos (por vezes, mais estimada que os militares que faziam a guerra)? A resposta a estas últimas questões está, como hipótese, na noção que os militares profissionais tinham que não haveria condições para fazerem a guerra sem a Pide. E sabiam que a Pide “fazia bem” o papel que lhe estava atribuído (a maioria dos guerrilheiros reconhece isso, sendo uma das raras excepções a prosápia estúpida de Marcelino dos Santos da Frelimo que afirmou que a Pide não sabia nada). Compreende-se assim que, no início da pós-revolução, a Pide continuasse viva e bem viva nas ainda colónias. Ou pela integração no PIM, ou, clandestinamente, a ajudar a “resistência branca”, transbordando depois para o combate ao MPLA e, em Moçambique, na criação da Renamo.

Parte dos oficiais de carreira profissionalizados na guerra colonial (muitos deles com três comissões feitas) deram a “volta política”, participaram na descolonização e seguiram o paradigma político do MFA. Mas um número significativo de oficiais de média e alta patente (a partir de Major na altura do 25 de Abril) foi incapazes de digerir a descolonização e entender o papel da Pide como sendo um alicerce do regime (o que, sendo verdade, não abona sobre o regime). É que não foram as Forças Armadas (só por si) que fizeram as guerras nas colónias, a Pide (só por si) tão pouco. Foi uma e outra. Foi o regime salazarista-marcelista. Quando o regime caiu, o colonialismo caiu e a descolonização só podia ter como ponto de partida o ponto de chegada do colonialismo português. O “depois” “devia” ter sido diferente e melhor. Mas o “depois”” que houve partiu do “antes” herdado. Alguns militares da época não o entenderam na descolonização e cada vez o entendem menos, servindo a profusa literatura de memória e análise que publicam, em blogues e em livros, como demonstração dessa fixação, porque o ressentimento cresce com o tempo, sem que a catarse tenha sido feita. À força de “justificarem”, perante a sociedade e eles próprios, os anos de profissão naquelas guerras, perderam essa capacidade, a da catarse da participação de uma guerra injusta, impossível de vencer, iníqua nos meios utilizados e nos crimes cometidos, directamente ou com sua colaboração.

(*)A Pide/DGS na Guerra Colonial – 1961-1974, Dalila Cabrita Mateus, Ed Terramar.

 
(Texto publicado também no blogue Água Lisa)

Soldado ferido

Nas «eleições» de 1969, a guerra colonial, então particularmente acesa em Moçambique e na Guiné, foi o principal separador das posições das duas agregações oposicionistas – a CDE reproduzia o posicionamento do PCP e apostava forte na denúncia máxima e possível da guerra colonial com partido implícito pelos movimentos de libertação; a CEUD evitava referir o tema e quando este era incontornável procurava um posicionamento não radical sobre a guerra e punha em cima da mesa a quimera retórica de defesa de «autonomias». Nas «eleições» seguintes, as de 1973, já a oposição se apresentou unificada e o posicionamento acerca da guerra colonial, entretanto agravada, retomou o essencial das posições da CDE de 1969.

A guerra colonial era, para o regime, a grande questão política tabu. Caetano, por convicção e pela pressão dos ultras nacional-colonialistas entrincheirados atrás do Presidente Tomás, continuava o dogma-mito herdado de Salazar: «não discutir o Ultramar», continuar a guerra. Então, colocar sequer a questão da guerra colonial, discutindo saídas para ela, mesmo que tímidas, configurava uma traição à pátria. Tal não era sequer permitido durante as «campanhas eleitorais» (se tal fosse feito, e normalmente era-o no último discurso, o representante das «autoridades» intervinha e fazia terminar a sessão, a que se seguia, por regra, uma carga policial). Mas Caetano não só prosseguiu a guerra colonial, como o fez recorrendo a «operações sujas» e outras em larga escala perante o progressivo agravamento das situações militares em Moçambique e na Guiné, gerando uma dinâmica de «tudo ou nada». E, nesta via, aprofundou-se a «fusão», na máquina de guerra colonial, entre a polícia política (PIDE) e o exército colonial. Logo no início de 1969, pouco tempo depois de Caetano suceder a Salazar, o então líder da Frelimo (Moçambique), Mondlane, foi assassinado na Tanzânia através de uma encomenda-bomba, o que desencadeou não só uma crise na Frelimo como uma atribulada luta pela sucessão na liderança. E, no ano seguinte, Kaulza de Arriaga (comandante-chefe) montou uma das operações militares mais gigantescas e recheadas em meios humanos e militares ocorridas na guerra colonial, a operação «nó górdio».  Em resultado final, a Frelimo expandiu a sua área de intervenção guerrilheira em Moçambique. Na Guiné, Caetano deu luz verde a Spínola e à PIDE para uma das mais vastas e custosas operações de tentativa de aliciar e corromper uma das frentes do PAIGC, ocorridas no norte no «chão manjaco», e que terminou em Abril de 1970 quando os guerrilheiros atraíram a uma cilada um grupo de elite dos oficiais do exército português, massacrando-o. Spínola e a PIDE, com o acordo prévio de Caetano, reagiram no final de 1970 através de uma operação com grandes meios («mar verde») de invasão da Guiné-Conacry e que tinha, entre os objectivos, assassinar o Presidente deste país (Sekou Touré) e colocar um «partido amigo» no poder, assassinar Amílcar Cabral e o núcleo dirigente do PAIGC (sediado em Conacry), destruir a força aérea e a frota naval guineense, libertar os prisioneiros militares portugueses. Só o último objectivo foi alcançado (mas a troco de um número ainda maior de «comandos africanos» deixados no terreno e posteriormente fuzilados). Em 1973, como culminar de uma operação de infiltração da PIDE, foi conseguido o velho objectivo de assassinar Amílcar Cabral. A este desaire, a perda do seu líder carismático, o PAIGC respondeu, através de novo e sofisticado armamento, com a prática neutralização do domínio do espaço aéreo pelo exército colonial e declarar a independência unilateral da Guiné-Bissau, rapidamente reconhecida por dezenas de países membros da ONU.

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muro berlim

Estamos à beira dos vinte anos passados desde a queda do Muro. Esse Muro que foi o símbolo maior, um autêntico ícone, da separação radical de dois mundos, dos pontos de vista político, ideológico e social, em permanente confronto até à vitória de um sobre o outro, um desfecho de antagonismos herdados de 1917 e há muito anunciado que alimentou medos de décadas de que se iria «resolver» pela via da hecatombe nuclear e que, surpreendendo todos, se deu de uma forma instantânea e pacífica, porque o comunismo simplesmente tinha apodrecido (como aqui, em Portugal, acontecera ao fascismo de Caetano). Nesse momento histórico, o Muro, caindo, transmutou-se, por via da dinâmica dos símbolos, de emblema maior opositivo entre capitalismo democrático e comunismo totalitário para o sinal maior da vitória de um e falência do outro.

Nunca vi, ao vivo, o Muro que a maior parte das pessoas conhece através da imagem, o Muro odiado, conspurcado, repleto de graffitis obscenos, humorísticos ou artísticos, decorado com repulsa que ia do talento irónico até ao ódio, aquele Muro em que o ocidente cuspia na antítese comunista. Mas conheci, no princípio da década de 80, um outro Muro no lugar do mesmo Muro, um Muro limpo, sepulcral, bélico e emblemático da luta de classes, o Muro visto de Berlim-Leste, então capital da RDA. E ainda hoje, quando se fala do Muro, é esse Muro que remexe a minha memória. Em viagem turística, com dois casais metidos num velho Fiat 127 atafulhado de apetrechos campistas, todos militantes empenhados do PCP, ali estávamos, eu e os meus companheiros de viagem, após quatro mil quilómetros de estrada e calcorrearmos a Checoslováquia e a RDA, a olhar para a face comunista do Muro, o lado do mundo que Lenine iluminava. O percurso tinha sido feito até à Porta de Brandenburgo, onde o Muro apresentava uma espécie de «barriga», por uma zona em que raros eram os berlinenses que ali passeavam ou simplesmente circulavam, o meio envolvente era dissuasor, fortemente policiado e militarizado, a vista alcançava a «terra de ninguém» e, ao fundo, o Muro com a sua frieza de betão, um betão lívido a fazer de horizonte após ouriços de arame farpado numa faixa de terreno que se sabia minada. Entre espaços repetidos, elevavam-se as guaritas com guardas armados de kalash e binóculos. Por muito que isso me apetecesse, e na altura apetecia-me muito e acima de tudo, eu não conseguia encontrar naquela imagem gélida, bélica, desumanizada, petrificada a betão, a classe operária que eu tudo fazia por servir e seguir, as lutas dos trabalhadores, os gritos anticapitalistas contra a opressão, a igualdade e a fraternidade que procurei no comunismo, a camaradagem representada na vida do partido, a festa da festa do avante, o Cunhal contado a admiradores, seguidores e crédulos, muito menos amanhãs mesmo que afónicos. Mais que para fora, o Muro pareceu-me apontado para dentro, também para mim, comunista e internacionalista, marxista-leninista pois claro. E a visão do Muro, enquanto claustrofobia totalitária, reencontrei-a quando o vi de novo á minha beira estando sentado numa esplanada durante uma visita à beleza de Potsdam, perto de Berlim, dando-me a dimensão tentacular daquele polvo de betão. Apesar do choque, o Muro não me trouxe, então, indignação ou protesto. Simplesmente, engoli-o, por disciplina e fidelidade, como outros que ainda hoje andam enfartados com gulags e lubiankas a inchar-lhes o estômago transformado em sede de pensamento político e absorvedor de neurónios para serem corroídos pelo suco gástrico.

Hoje, quando vejo pedaços expostos do Muro que engoli em Berlim-Leste há quase trinta anos atrás, graffitados como não o conheci, sinto-os como se tivessem saído de dentro de mim por via de vómitos, admirando-me com as dimensões daquilo que um ser humano, abdicando da inteligência e da lucidez, sobretudo do juízo sem amos, pagando o preço da tranquilidade de uma paz ideológica, é capaz de olhar sem ler na escrita do betão, o que petrifica ideais, sonhos e utopias.

 
(Texto publicado também no blogue Água Lisa)

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É natural. Julgo que acontece o mesmo a todos. Perdemos a memória dos primeiros tempos da infância. Dessa fase, ficará um ou outro flash mas terá de ser algo muito marcante para resistir à erosão do tempo e à necessidade da nossa capacidade para memorizar expelir recordações e registos para receber outras, mais recentes. Qual a idade mais recuada em que nos recordamos de nós próprios? Exceptuando uma grande alegria ou um enorme desgosto de tempo mais infantil talvez seja a fase do início escolar e mesmo assim através de um ou outro breve episódio. O certo é que pouco me lembro dos meus primeiros anos de vida. Por isso, muitas vezes dei comigo a olhar as fotografias guardadas de quando era muito pequeno e perguntar-me: mas este sou (fui) eu? E nunca me conseguia rever na personagem retratada, ligando imagem e realidade vivida.

Entre as fotografias que guardaram de quando eu era criança, havia uma (não sei onde pára) que me despertava especial curiosidade. Teria os meus quatro anos. O ambiente do cenário era campestre, tinha uma flor na mão e usava um enorme chapéu de palha de adulto para me proteger do sol. O meu riso foi captado escancarado pelo fotógrafo e deve ter sido assim por cauda da novidade de ser retratado pois não me lembra outra qualquer fotografia minha em que estivesse tão risonho. Mirei e remirei essa fotografia vezes sem conta. Aquela foto era uma espécie de redenção da minha absoluta e persistente falta de fotogenia. Achei sempre que nela tinha ficado muito bem e que nunca tinha voltado a ser tão bonito. Melhor, ficou cá para mim a certeza de que, na altura da fotografia, foi a única vez em que a beleza foi generosa para com a minha figura tão vulgar quanto desinteressante. Mas havia mais, olhando-a, a minha atracção por aquela fotografia tinha ainda qualquer coisa de misterioso que me prendia a ela e que ia além do riso, da flor e do chapéu grande. Durante anos, volta e meia, vasculhava no álbum familiar à procura dela. Tornou-se uma obsessão. Havia algo que ou não batia certo ou então faltava ali.

Um dia, teria os meus catorze anos, percebi num instante o que me levava a perscrutar insistentemente o raio da foto. Desvendei o mistério num ápice. É que a fotografia estava excelente mas o fotógrafo tinha-me cortado os pés no enquadramento. Não entendi como é que estando eu tão bonito, o fotógrafo (o meu Tio Luís) tinha feito aquele enquadramento desajeitado e logo ele que se ufanava de ser mestre amador naquela arte. Resolvi exprimir a minha indignação e lavrei o meu protesto verbal. Mas o artista tinha as suas razões. O meu tio explicou-me que me enquadrara sem pés porque eu estava descalço por ainda não ter ganho estatuto social suficiente para calçar sapatos, sandálias ou chinelos que fosse e decidiu poupar-me a essa evidência da minha desqualificação social (só depois, arrancado aos meus pais e à minha aldeia de Trás-os-Montes, com a vinda para a cidade, onde se proibia circular-se descalço, entregue aos meus tios e pais substitutos, passei a ter direito a sapatos). Percebi a boa intenção mas achei mal que a vergonha (do fotógrafo, não a minha) tivesse impedido que a melhor de todas as minhas fotografias me mostrasse incompleto, sem direito aos meus pés.

 
(Texto revisto de um post publicado no blogue Água Lisa)

dissidente  

Com atraso, verifiquei só agora que em Julho passado fez dez anos que faleceu o António Graça, funcionário clandestino do PCP durante muitos anos, torturado e preso durante seis anos pela PIDE, dirigente daquele partido e depois impulsionador de uma das mais importantes dissidências no PCP no final da década de 80. 

Sobre António Graça, transcrevem-se duas evocações. A primeira é da autoria de Raimundo Narciso: 

«O António Graça era um dos quatro ou cinco membros do Comité Central que em 1987 e 1988 desenvolveu, naquele órgão do PCP, uma assinalável actividade crítica à linha política da direcção de Cunhal. Demitiu-se em 1991. Foi desde muito novo um destemido lutador contra a ditadura fascista e militante do PCP. Desenvolveu nos anos cinquenta e sessenta, como quadro clandestino do PCP, importante actividade política que o levou à prisão durante seis anos a partir de 1964. Submetido a torturas pela PIDE para denunciar companheiros, resistiu a tudo. Por isso, no PCP, pertencia à galeria dos heróis, até ao momento em que contestou as orientações e as práticas da direcção do partido. Foi um dos iniciadores do INES e da Plataforma de Esquerda. Não aderiu ao PS nem foi para a Política XXI. Defendia que os ex-comunistas deviam, com outros, criar um partido próprio. António Graça, foi membro do CC do PCP de 1979 a 1988, participou nos trabalhos da Comissão de Extinção da PIDE/DGS em 1974 e 75. Nos anos seguintes, foi responsável pelos serviços de informação do PCP. Era um quadro político com grande experiência, argúcia e uma prodigiosa memória. Faleceu com 60 anos, em 1 de Julho 1999. Era muito respeitado e estimado pelos seus companheiros políticos. Era meu amigo. Era teu amigo.» 

(depoimento incluído numa entrevista que Raimundo Narciso concedeu em Abril de 2004 ao blogue «Água Lisa».
 
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livro da terceira classe

Tenho experiência de como temos de domar o bárbaro que transportamos em cada um de nós. Desde cedo. Desde tão cedo que essa minha experiência de criança é ainda hoje uma cicatriz na minha memória.

Andava na então Terceira Classe, tinha dez anos. Lembro-me bem do professor. Era um ser frio e duro. Mas não me lembro que tivesse olhos porque eles estavam escondidos atrás de umas lentes muito grossas. Mas sentia-se o seu olhar gelado de severidade a sair por baixo do Crucifixo ladeado pelas caras sombrias de Salazar e Carmona. Naquele tempo, usava-se palmatória para castigar maus comportamentos ou falhas na aprendizagem. A aplicação de castigos físicos ou de humilhação aos alunos integrava o sistema educativo salazarista e não era contestado, porque não era sequer contestável, nem sequer pelos pais. Por isso, uma régua grossa de madeira fazia parte dos instrumentos de «ensino e disciplina» que ornamentavam a mesa professoral. Mas o professor da minha Terceira Classe, severo e cruel na aplicação de palmatoadas, lembrou-se de refinar o seu sadismo, recorrendo à sus difusão pela transformação dos castigados em castigadores. Periodicamente, organizava uma espécie de sabatinas em que um miúdo fazia uma pergunta sobre matéria escolar a outro. Se este não soubesse a resposta certa, o perguntador tinha direito a dar uma reguada na mão do ignorante. Ele queria envolver-nos e integrar-nos no mundo de lobos em que a mente do desgraçado vivia. Usava, assim, uma espécie de pedagogia de torturador.

Um dia, um mau dia, calhou-me fazer a pergunta crucial a um companheiro de classe. Senti uma importância prepotente a subir ao cimo dos meus dez anos. Rebusquei a pergunta mais complicada que consegui construir. O desgraçado do colega não fazia a mínima ideia quanto à resposta. O professor proferiu o veredicto: dá-lhe uma reguada. Aquela desproporção de poder apoderou-se de mim e senti a luxúria do domínio sobre outro. Peguei na palmatória e atirei-lhe uma reguada com toda a força que tinha. O meu colega contorceu-se de dor e ficou com a mão inchada durante uma semana. Eu tinha ultrapassado o «Mestre». Senti um profundo mal estar e assustei-me com a minha bestialidade. Eu tinha mudado de campo de uma forma instantânea. E da volúpia sádica desci à vergonha, à mais profunda das vergonhas. Ainda hoje sinto essa cicatriz nas minhas lembranças de infância. Por ter aprendido cedo demais a facilidade com que de pisado se passa a canalha, o frasquinho com o antídoto para o veneno do domínio nunca saiu do meu bolso. 
 
 
(Originalmente publicado no blogue Água Lisa)

Juan José Millas - O Mundo

Juan José Millás não teve sorte com as dores de infância, elas foram muitas. Mero acaso pois nenhuma criança escolhe, incluindo as dores. As escolhas ficam sempre para a idade adulta, sobretudo a de banalizar a memória, tentando viver sem ela, ou preferir entender que todos os trajectos começam ali, na infância, onde estão todos os enigmas e todas as chaves para nos entendermos. Uma lucidez acerada e um invulgar talento de escrita podem, ainda, fazer o que Juan José Millás conseguiu no seu romance O Mundo (*): a revisitação da infância, no seu tempo e lugar, como quem vai ao cinema e está tudo ali, projectado, em movimento. E perceber-se que, na vida vivida, a infância está sempre a espetar-nos. Tudo dependendo da memória e da coragem de a ela se «descer». 

Quando há alguns meses atrás foi editada a versão portuguesa de O Mundo, folheado e comprado o livro, desconfiei que tinha ali um fascínio literário à minha disposição. Decidi guardá-lo para o ler mais tarde, em relax favorável a não perder pitada dos sabores. Fiz bem, sobretudo porque é inevitável a tentação de se fazerem viagens paralelas quando se acompanha um escritor em viagem de vida. No caso, com a ajuda particular de eu e o escritor termos vivido semelhanças dos tempos de crescimento, na mesma pequenez e na mesma asfixia, confirmando as enormes semelhanças entre as castrações operadas pelo franquismo e pelo salazarismo. E, visto por este ângulo, está ainda por avaliar quanto as décadas das noites ibéricas marcaram as infâncias portuguesa e espanhola, directa e indirectamente através de pais tristes. 

Livro lúcido e saboroso, uma autêntica viagem ao fazer-se humano, O Mundo tem um brinde – a figura de «Vitaminas», um dos personagens que vai ficar, arrisco, como um clássico da literatura. Impossível pedir-se mais a um livro da melhor literatura, hispânica mas tão perto. 

(*) – O Mundo, Juan José Millás, Editora Planeta

 
(Publicado no blogue Agua Lisa)

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Com os meus sete anos de idade tive direito às minhas primeiras férias de praia no Algarve. Iria para Sagres a banhos durante dois meses nas férias grandes. Na altura, primeira metade da década de 50, o Algarve não era terra de turismo, exceptuando a Praia da Rocha e pouco mais e mesmo aí com dimensões muito modestas. Os algarvios viviam, a maioria muito mal, da agricultura, da pesca, das conservas e da indústria corticeira concentrada em Silves. Aliás, nos seus modos de viver, a pobreza algarvia era uma continuidade da pobreza alentejana, numa homogeneidade de paisagem humana e social, com a excepção da dimensão das propriedades agrícolas (mais concentrada no Alentejo e mais dispersa no Algarve) e que só as serranias de fronteira davam conta da mudança de província. E se o turismo em todo o Algarve era minúsculo, em Sagres o único forasteiro (turista) a banhos era eu. A razão deste tamanho privilégio devia-se à Dona Francisca, uma algarvia nómada que fazia temporadas de costura como modista em Lisboa, recolhendo-se à sua terra durante o verão em retorno à sua condição de pequena camponesa e cujos magros proventos compunha com os ganhos amealhados a costurar na capital. Como a senhora costurava para a minha Tia Ana, foram ajustadas com ela umas férias algarvias para o sobrinho enfezado e a quem talvez o iodo e umas braçadas ajudassem a encorpar. E foi assim, em suplemento de receita para a Dona Francisca, que ela se dispôs a ser minha hospedeira turística e eu usufrui dessa regalia a poucos acessível de me tornar um dos poucos turistas no Algarve da época.

Mas para veranear em Sagres, havia que lá chegar e usando os vagarosos meios de transporte daquele tempo e em que poucos eram os passageiros com tal destino. Fui metido mais a mala de bagagem na camioneta da carreira da Companhia dos Belos que saía de Cacilhas e ia até Faro. A mala foi guardada no tejadilho da camioneta juntamente com as tralhas dos restantes passageiros. De cada vez que a camioneta parava, o motorista subia ao tejadilho através de uma escada metálica e descarregava as malas e embrulhos dos que se apeavam e iam indicando quais os seus pertences e depois carregava as mercadorias acartadas pelos novos passageiros que se iam juntando à viagem. Eu tinha a recomendação que devia descer em Lagos, onde a Dona Francisca me esperava para me levar, noutra ligação rodoviária, para Sagres. Era a minha primeira viagem entregue a mim próprio. Perguntei como é que eu saberia quando tinha chegado a Lagos. Explicaram-me que Lagos era uma terra grande e a camioneta parava num largo, logo que lá chegasse disso me daria conta. Tentei fixar estes pormenores que eram fundamentais para me orientar. Repeti para comigo diversas vezes: “Lagos é uma terra grande e lá, a camioneta pára num largo”. Feitas as despedidas, a camioneta arrancou. Ao passar por Setúbal, a viagem já me parecia muito comprida. Tanto o tempo demorava a passar e o desfilar da paisagem pela janela me surgia monótona que me convenci que, passado que era essa tal terra grandinha de Setúbal, já não devia faltar muito para o meu destino. O Algarve, Lagos, devia ser um bocado mais à frente mas não muito. A camioneta entra em Alcácer do Sal sem me aperceber do nome da terra em que tinha entrado, vejo compridos casarios e dou com a camioneta a parar num largo. Sobressaltei-me com aquela visão de um largo, lembrando que a camioneta parava em Lagos num largo, apresto-me a sair, suando com o receio de passar Lagos e ir parar a um destino mais longínquo onde nunca mais encontraria a Dona Francisca. Peço ao motorista que tire a minha mala do tejadilho. Indico qual é e num instantinho já a tinha ao pé de mim. Olho em volta e não vejo sinal da Dona Francisca ou de quem, a seu mando, desse sinais de me esperar. Aflijo-me sem capacidade de reacção, a mala ao meu lado em companhia inerte. O motorista prepara-se para retomar a marcha mas um sexto sentido fá-lo reparar no meu ar em bloqueio aflito. Desce da camioneta e pergunta-me se está tudo bem. Eu explico que não vejo quem me vinha buscar a Lagos para me levar para Sagres. “Lagos? Sagres? Estamos em Alcácer”. É a minha vez de não entender o que se passava. “Alcácer? Mas eu quero ir para Lagos”. O motorista volta a carregar a maleta no tejadilho da camioneta, manda-me subir e diz para estar tranquilo que, quando chegasse a Lagos, me avisaria. A viagem pareceu-me interminável. E, para atrapalhar, em quase todas as terras onde a camioneta parava, havia largos. Fixava crispado o motorista pois estava sempre com um tremendo medo de o homem se esquecer de mim e passar à frente de Lagos. A solução era fixar, placa a placa, os nomes de todas as terras. Mas os nomes que ia vendo desfiarem-se perante os meus olhos nada me diziam. Cercal seria antes ou depois de Lagos? E Milfontes? E Aljezur? A concentração e o nervoso eram tantos que não toquei na merenda que me tinha sido preparada para a viagem para os confins do Sul. Não me podia distrair e o nervoso afugentava a fome. Lá cheguei a Lagos, com aviso prévio dado pelo motorista. E passada mais uma viagem adicional, já estava instalado na casa da Dona Francisca para início das minhas primeiras férias algarvias, estreando o turismo de praia em Sagres.

No regresso, tudo foi mais fácil. A camioneta dos Belos parava em Cacilhas e imobilizava-se a olhar para o Tejo, a bisbilhotar os passageiros dos cacilheiros. No meu raciocínio de então, formulei o juízo definitivo de que as camionetas estavam muito mal organizadas. Elas deviam sair de um sítio até outro sem paragens pelo meio que só serviam para baralhar os passageiros. O certo é que daquelas longas férias de praia algarvia só acessível a um forasteiro privilegiado, mais que dos banhos e das brincadeiras, que foram prazenteiras e com muito bom trato da hospedeira, no que a minha memória ficou mais marcada foi a odisseia e sofrimento para chegar a Lagos, uma terra onde a camioneta parava num largo.

 
[Texto revisto de um post publicado no blogue Agua Lisa]

 
Biografia de João Tunes

Lenine  

Anos oitenta do século passado. Moscovo sob o mando do velho e doente Andropov. A conferência sindical internacional em que participava integrando a delegação da CGTP decorria burocrática e sonolenta na vetusta e simbólica Sala das Colunas. Não era mais que um número para a contabilidade das iniciativas pacifistas contra a “guerra das estrelas” no que tocava aos mísseis americanos na Europa. Discursos a fio a convidar mais ao bocejo que ao interesse. Estavam ali Sindicatos das sete partidas como podiam estar organizações de jogadores de damas ou de matraquilhos.

Tempo frio. Escapadelas não resultavam porque não valiam a pena. Uma vez, um intérprete russo convidou-nos para bebermos uma cerveja lá fora. Vamos a isso. Entrámos numa espécie de tugúrio, metia-se uma moeda numa ranhura e saía uma mijoca para dentro de uma caneca. As canecas, depois de usadas, eram apenas passadas por água antes de servirem para o próximo cliente. Casa cheia com indivíduos em pé, tristes como o tempo, a beberem por beberem, cada vez mais tristes e silenciosos conforme mais bebiam. Imagem de uma sociedade imobilizada sem que, no entanto, alguém se atrevesse então de profetizar a implosão que não tardaria.

Às tantas, a Mesa da Conferência avisa que vai haver um intervalo para uma cerimónia importantíssima. Motivo não explicitado. Ora, o que for se verá. Tudo metido em autocarros. Destino: Mausoléu de Lenine. Enorme fila de visitantes alinhados ao longo da Praça Vermelha. Nós somos VIPs, passamos à frente da fila. Ninguém protesta. Entramos, a segurança manda-me abotoar o kispo e colocar as mãos em pose de solenidade. Passagem rápida frente à múmia. Lá estava ele, Lenine, com cara cor de cera. Saímos. Cerimónia terminada, culto necrófilo prestado, regresso à sala das Colunas para mais discursos e mais sonolência.

Nunca entendi o que fazia ali aquela múmia, excepto que combinava bem com um país povoado por almas em cera, sobretudo quando discursavam. Mesmo assim, tive sorte de só ter visto só uma múmia. Em tempos, ela já tinha tido companhia. Aliás, aquela múmia foi para ali para que a outra, a de Estaline, quando chegasse a sua vez, pudesse ir para o seu lado. Depois, a segunda múmia, já quando não passava de uma múmia, caiu em desgraça e foi deslocalizada para o cemitério do Kremlin, enquanto a primeira múmia ainda lá está. Solitária. Sem consenso sobre o seu destino. Fica, não fica. Vai ficando.

 
[Texto revisto de um post publicado no blogue Agua Lisa]

 
Biografia de João Tunes

Alfredo da Silva  

Para se conhecer a tradição da cultura patronal portuguesa será incontornável conhecerem-se os discursos (o público e o escondido) do maior patrão da indústria portuguesa de todos os tempos, Alfredo da Silva, que, através da CUF e à sombra do proteccionismo salazarista, construiu aquele que chegou a ser o maior complexo industrial da península ibérica e um dos maiores na Europa. Que, pelo gigantismo industrial da rede de actividades e empresas que criou e que os Mellos, seus herdeiros, ainda ampliaram mais, criou também a maior concentração operária portuguesa, aglutinando uma enorme migração de camponeses que fugidos das fomes nos campos (das Beiras, do Alentejo e do Algarve) constituíram o típico “proletariado CUF” que ainda hoje marca a paisagem humana e social de Alcântara e, sobretudo, da cidade do Barreiro. 

Com formação académica virada para os negócios, herdeiro de uma média fortuna, tarimbado na actividade bancária e na administração da Carris, Alfredo da Silva era um genuíno e entranhado homem de visão larga para o negócio e a criação empresarial mas senhor de um posicionamento profundamente conservador e reaccionário. Grande patrão, era autoritário de tipo autocrático, violento nos ódios, germanófilo, monárquico, sidonista, antisindical e antidemocrático. E plasmou todas essas características numa adesão indefectível ao salazarismo, sendo um dos esteios das oligarquias em que o regime do “Estado Novo” se sustentou. Na criação inicial do seu império industrial nas duas margens do Tejo mas progressivamente expandido na vasta área industrial barreirense, que coincidiu com o período republicano e com um sindicalismo de forte influência anarquista pela frente, Alfredo da Silva envolveu-se no embate brutal frente às reivindicações operárias (em que as mulheres ocuparam lugar de destaque na luta) que procuravam minorar as terríveis condições de exploração que era arrastada pela gigantesca e impiedosa grande industrialização cufista. Enfrentava contestações e greves com toda a brutalidade, indisposto a cedências, não permitindo que continuassem com emprego os que não se mostrassem dóceis e se destacassem em qualquer acção de classe. Mas, simultaneamente, desenvolveu um estilo patronal de tipo paternalista e assistencialista para com os seus empregados e operários, que gerou e expandiu um mito (que ainda hoje perdura) de “patrão amigo e protector”. Esta dualidade, nem sempre percebida, gerava reacções contraditórias, donde terá sido o patrão mais odiado pelos sindicalistas e o mais amado pelos “operários agradecidos” (os baixos salários e as condições de alta e intensiva exploração do trabalho eram “compensados” por uma rede de assistência médica, habitação social, escolas, previdência, abastecimento de géneros, associativismo desportivo, actividades lúdicas). Assim, a Operárias da CUF em grevehistória da CUF é também a de grandes e duras greves, primeiro no período republicano (1910-1919), depois em pleno salazarismo (com destaque para as de 1943), a que se seguiu um longo período de “acalmia” que o aparelho repressivo se empenhava em vigiar e jugular (a GNR estava implantada com quartel dentro das fábricas, os aparelhos internos da Legião e dos “bufos” da PIDE eram expeditos a denunciar os movimentos reivindicativos logo na fase de germinação, as células comunistas eram alvo de controlo e repressão).     
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avante
 
Numa vila de forte concentração fabril assente em três pólos (CUF, oficinas ferroviárias, corticeiros) onde as colectividades proliferavam como cogumelos, agregando afinidades e gerando rivalidades, era nesses locais que se concentrava o grosso do convívio e a partilha das paixões menores, onde a distensão pós-laboral encontrava o seu espaço de catarse. O primeiro passo para a inserção era escolher e escolher pressupunha optar entre grandes ou médios amores e pequenos ódios, depois havia que fazer o itinerário da iniciação, a que se sucedia a fusão cultural com os rituais e os símbolos até se atingir o estágio identitário. O operariado dominante, em termos demográficos e sinaléticos sócio-políticos, transpunha para a colmeia associativa do Barreiro reproduções possíveis, aquelas que eram passíveis de romperem a malha da vigilância repressiva, das suas organizações produtivas, incluindo as respectivas hierarquias (os empregados e a aristocracia operária dominavam os órgãos dirigentes), formas culturais próprias, os seus mitos e as aproximações às camadas urbanas estabelecidas fora dos muros das fábricas. Nesta rede social de convívios compensadores de realidades laborais, com códigos sucedâneos vincados, as maiores dificuldades de escolha e inserção estavam, naturalmente, reservadas aos jovens, particularmente aos que estudavam e que tinham adquirido afinidades que extravasavam a fixação paranóica na urbe onde as fábricas eram pólos de dominação e opressão, em que uma «cultura fabril» prolongava a sua centralidade económica. De tal forma o conseguia, misturando tradição, reconhecimento, consciência e insubmissão, traços muito próprios e genuínos nos barreirenses, que os grandes mitos humanos circulantes, enquanto referências exaltadas, caminhando a par e em espantosa conciliação, eram Cunhal (o herói-mártir da resistência) e Alfredo da Silva (o super-patrão da CUF e adepto da gestão paternalista-assistencialista). O que representava um milagre cultural e político pela completa ausência de antinomia com que a maioria dos barreirenses fazia a gestão harmoniosa destes dois símbolos afectivos, tão opostos na luta de classes, mas tão próximos no afecto da admiração dos gratos. 

No início da década de sessenta, o Café Tico-Tico, colocado bem no centro do Barreiro, na avenida mais nobre, junto ao mercado e ao jardim do núcleo urbano (o Parque), assume uma dimensão convivial excêntrica relativamente às colectividades, operando uma espécie de importação dos espaços gregários e lúdicos homólogos que vincavam Lisboa, ali tão perto e tão longe. Rapidamente, o Café Tico-Tico transformou-se no pólo de encontro da pequena e média intelectualidade do Barreiro. Com um piso térreo onde abancavam os clientes mais maduros e onde pontificava o Mestre Cabanas, um idoso combatente antifascista, artista autodidacta em gravura sobre madeira, e que ali montara a sua banca de realização estética. O piso mais alto, em forma de varandim, com vista para o movimento em baixo, era o poiso preferido de estudantes que liam ou descansavam os livros e cadernos de estudo, galhofavam e ensaiavam namoros, enquanto os mais dados às aventuras intelectuais, cruzavam apreciações definitivas sobre os últimos livros publicados ou jogavam xadrez.

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Lenine no rio 

Havia (e haverá, pois julgo que ainda estará vivo,) no Barreiro, uma pessoa chamada Estaline de Jesus (julgo que Estaline por parte do pai e Jesus por parte da mãe) o que era uma prova viva que as religiões sempre se encontram. Nunca o conheci pessoalmente apesar de ele ser, pelo impacto do nome, uma referência da terra, mas será de uma geração mais nova que a minha, o que explica que dele só fale por eco. Não tenho, assim, testemunho a dar sobre este famoso barreirense.  

Mas tenho um sucedâneo que, sobre esse, posso prestar testemunho directo e vivo na memória. Continuando no mesmo Barreiro que gerou o Estaline de Jesus, nos anos 50 do século ido, tive um colega de escola e turma, que se chamava, por nome próprio, Lenine (este sem santidade cristã acopolada). E ainda hoje re-oiço os ecos dos gritos das nossas futeboladas de recreio em que nós, os outros putos (reles mencheviques por falta de brasão revolucionário no apelido), desesperados pelo egoísmo de posse de bola do craque que era bolchevique por vontade parental, lhe gritávamos a pulmões cheios: “foda-se, passa a bola, ó Lenine!”, o que, em tresleitura, até parece um slogan de dissidentes. O que é uma falsa aparência pois aquele Lenine era catita, questão de fome de posse de bola à parte, e sobre bolchevismo, a malta, naquela idade, sabia menos que nada. Mas este Lenine, enquanto Lenine no nominativo, não durou muito (o titular do nome, esse, deve ser um reformado sobrevivo e cheio de genica, pelo menos são estes os meus votos). É que, como se compreende para a época, o nome deste meu estimado colega de meninice não era bem visto pelas autoridades, tanto mais que, no Barreiro da época, reinava uma repressão de chumbo, estando sob ocupação militar da GNR que acolitava os olhos e as matracas da PIDE. 

Entre os vigilantes mores da situação estabelecida e dos bons costumes, contava-se, como quase sempre esteve no fascismo, a Santa Madre Igreja. E o padreca, nosso professor de Religião e Moral, tirou a peito aliviar o bom do Lenine daquele nome ímpio que lhe constava no Registo. E conseguiu-o, após pressões e chantagens várias, exercidas sobre a família. Não me recordo qual o nome substituto pelo qual, numa qualquer operação manhosa de crisma, o Lenine passou a chamar-se à luz da Igreja e do Registo. Mas o que garanto é que, para nós, os inconscientes mencheviques seus camaradas em escola e recreio, ele continuou a ser “o Lenine“, sobretudo quando das nossas futeboladas acesas. Falando só por mim, mas não duvidando que não terei sido caso único, cresceu, deste modo, uma imensa curiosidade em saber quem era esse tal Lenine, não aquele puto egoísta de posse de bola mas o inspirador baptismal, que tinha um nome proibido de se chamar. Este é um dos paradoxos da minha educação política e ideológica, obtida no santo mistério da contradição, que ainda hoje não renego como dívida eterna à Santa Madre Igreja dirigida por Cerejeira.

 
Biografia de João Tunes

José AugustoDesde a infância até à adolescência, ter-se um ídolo, ou vários, é uma âncora fundamental para a saúde do crescimento. Depois, em idade adulta, o culto dos ídolos já é mais discutível – pode dar para o torto quando deriva de infantilização tardia ou ser uma bengala útil que ora se usa e se vai metendo em repouso. O problema dos ídolos é que eles são fugidios, deixam marcas fortes pelo rasto de mimetização e depois seguem viagem para dar lugar a outros ou devolvendo-nos à orfandade de refúgio para darmos conta de nós. Por instinto, vamos lidando com as projecções nos nossos ídolos, gerindo a sua volatilidade entre presença e ausência e ainda, parte dura, a sua intangibilidade. Pelo meio, é a boa gestão desta relação com os ídolos que nos dá a paz do equilíbrio por não sermos forçados nunca a medirmos, taco a taco, a dimensão da nossa «pequenez» perante tanta «grandeza», a do ídolo, podendo viver, com autoestima, um talento ou fama emprestadas. Mas o problema original da lide com os ídolos surge em conseguir tê-los à mão de semear, mas que pode, por proximidade com o imaginário, matá-los ao abrir da redoma. Se a distância desaparece e eles passam do ideal para a realidade, ou caem com os seus pés de barro e adeus vindima, afinal são humanos como nós, ou então são mesmo grandes e supremos e sentimo-nos mal ao medirmos as alturas relativas. Assim, para poder ser fonte de saúde, o herói deve estar suficientemente longe mas em altar onde façamos as nossas missas.

Arrasto, na minha memória, a sombra dos meus ídolos passados. A mais forte é, como costume, a do primeiro na fila da lembrança. Que, para não fugir à regra dominante dos miúdos varões, foi um jogador de futebol. Era o José Augusto, famoso extremo direito, então ainda a jogar no Barreirense mas já a gozar de fama mais que merecida. Um dia, tinha para aí os meus onze anos, fui cumprir uma das obrigações terríveis que um miúdo tem de suportar devido à ditadura dos adultos, a de cortar o cabelo. Havia uma barbearia bem junto ao campo do Barreirense com quem estava ajustado o contrato de, todos os meses, me cortarem o cabelo. Aquilo era um tormento, o feitio do corte estava pré-escolhido pela autoridade familiar, tinha um remoinho capilar que era indomável, custava-me esperar ouvindo conversas intermináveis sobre assuntos de adultos que nada me diziam e parecia-me infindável aquele tanto tempo de tesouradas e aparadelas com uns toques agressivos na cabeça de cada vez que tendia a virá-la para o lado errado ou deixá-la descair. O barbeiro tinha já iniciado a sua sessão de tortura quando se senta na cadeira ao meu lado, ali mesmo ao pé de mim, o José Augusto, o craque. Ia dando, emocionado e intimidado, as minhas miradas de soslaio para o meu herói, subitamente ali à minha beira, na singela distância entre duas cadeiras numa barbearia. O tempo foi passando e, enquanto eu ia sendo tratado secamente pelo profissional que cuidava da minha rebeldia capilar num crescendo de irritação para com ela, o colega que tratava do José Augusto era só mesuras e deferências para com o cliente famoso, um orgulho da terra e do clube. E a minha tortura arrastou-se, nesse dia, muito mais que o normal pois quem cuidava de mim era todo vagares e paragens na função para poder beber os pormenores que o José Augusto, ali ao lado, confidenciava sobre peripécias de jogos e treinos. Não gostei da experiência daquela proximidade que, antes, daria tudo para a conseguir. Porque em vez de ganhar grandeza com a proximidade do meu herói, senti-me ainda mais desprezível e irrelevante. Em vez de crescer, eu fui ainda mais reduzido à condição de miúdo irrelevante. Nada passaria a ser melhor, para mim e para a minha fama, não aprendi sequer uma finta ou um remate imparável, por ter, naquele dia, cortado o cabelo com o José Augusto ao meu lado. E um craque que viria a espantar todo o mundo com o seu talento de exímio extremo direito, a quem prestara culto embevecido, apeou-se ali em mistura com o meu cabelo aparado por uma tesoura de barbeiro. De vez em quando, cruzo-me com ele quando vou ao Barreiro, ambos envergando os nossos cabelos brancos. Presto-lhe um cumprimento de anónimo com a deferência mínima devida para com um ídolo apeado numa sessão de barbearia.

[Texto revisto de um post publicado no blogue Agua Lisa]

Biografia de João Tunes

alfaiate 

Sou do tempo em que o pronto-a-vestir ainda não tinha aparecido e estava, portanto, longe de se ter apoderado do mercado das fatiotas. Quando se queria um fato, recorria-se a um dos alfaiates que eram, então, artesãos numerosos e respeitados. E a concorrência permitia uma escolha amadurecida. Quando se encontrava, por mestria ou simpatia, um alfaiate que nos apanhava bem os pormenores das linhas do corpo, então dava-se uma fidelização. Mas o normal é que os serviços de uma alfaiataria fossem prestados a todos os varões da família, dos mais velhos até os mais novos e por escolha do patriarca. 

A construção da vestimenta tinha os seus preceitos e vagares. Havia, primeiro, a escolha do tecido, normalmente adquirido numa loja-armazem da baixa lisboeta, após demorada investigação das relações preço-qualidade e só depois, matéria-prima na mão, o artesão entrava em funções numa sucessão de cerimónias com várias fases e suas demoras. A abrir, a sessão de se tirarem as medidas que quase imitava uma investigação anatómica. Depois havia as tormentosas sessões de provas que se iam repetindo para ajeitar mangas, bandas, pregas na cintura, as alturas mais os comprimentos e mais as larguras. O alfaiate de giz branco empunhado, alfineteira no braço, dava-nos voltas e mais voltas, repetindo a verificação do efeito das correcções em novas sessões aprazadas e até que a obra fosse considerada acabada. Uma seca, que no caso dos juniores desafiava a sua atávica impaciência para com tão repetidos e enfadonhos rituais.

Por economia caseira, calhava-me herdar os fatos que o meu Tio Luís ia pondo de parte por terem atingido o prazo do uso. Porque o custo do tecido pesava, e muito, no orçamento. Então, o alfaiate desmanchava os fatos usados e ia dispondo as partes dos tecidos do avesso. Quando tudo estava revirado, eu lá ia às provas tirar medidas e ajustar os pedaços de pano até que, do fato usado do meu tio, virado do avesso e com ajuda do mérito da diligente tesoura, lá saía o meu fato «novo». «Está como novo», era o que me diziam. Mas havia sempre um problema insolúvel. Na altura, usava-se, na banda esquerda do casaco, uma ranhura (cuja designação técnica se me varreu da memória) que era o sítio onde se podiam colocar emblemas, cujo uso era corriqueiro na época. Da volta do tecido das bandas, resultava que a ranhura, que devia estar à esquerda, ia parar ao lado direito. Assim, os meus fatos só eram «como novos» na aparência distraída porque a malvada da ranhura ao lado direito estava lá, bem visível, a assinalar o ferrete de se tratar de um «fato revirado». E parecia-me que toda a gente que passava por mim olhava para a ranhura do meu casaco e me gozava por eu estar a usar os fatos do meu tio. Claro que, assim, só usava fato se a isso fosse obrigado. A certa altura, apareceu a moda de se usar uma ranhura em cada banda do casaco, o que prefigurava uma solução para a minha tormenta. Depois, veio rápido o uso e abuso do pronto-a-vestir. Finalmente, o abandono das ranhuras nas bandas dos casacos. Tudo mudanças demasiado tardias para mim. O «mal» estava feito e sem hipótese de reconciliação. Desde miúdo que só enfio um fato no corpo por estrita obrigação. Que tem de ser muito, mas mesmo muito, solene.

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Biografia de João Tunes

Barreiro 

O longo caminho junto à muralha que dava para o Tejo e virada para Lisboa era sítio preferido pela miudagem nas suas formas próprias de entreter o tempo e inventar aventuras. O baixo casario em fieira corrida concedia um amplo espaço em terra e erva brava para todas as guerras de índios e futeboladas em que cada um se sentia o José Augusto ou o Faia. Para mais, um moinho antigo mas conservado estava ali prontinho para inspirar fantasias quixotescas. Vinha-se em bando deste a Igreja da Senhora do Rosário e só se parava depois de passar a Igreja Matriz no Arco Casal e então era tempo de pausa a olhar o cais sempre cheio de enormes barcos a despejar minérios para as fábricas da CUF e a levar sacos e mais sacos de adubos para fertilizar campos e até roças coloniais. Uma estirada pela marginal do Barreiro dava e sobrava para se chegar ao fim com vontade de ir para casa matar sedes e afagar o estômago. O dia já estava ganho. Seguir mais adiante, mesmo quando vontade sobrava, raramente calhava. Depois de se estar cheio de água do Tejo por dentro dos olhos e as botas escalavradas recheadas de pés doridos a pedirem descanso, ali na fronteira entre a vila e a Fábrica, pouca vontade havia de entrar na zona negra de pó e fumo. Mas uma vez ou outra, em que os ímpetos estavam mais afoitos e com pouca vontade de desmanchar a tribo, lá íamos pela estrada incrustada dentro da Fábrica até ao Bairro Operário disputar território a outras maltas. No nosso maniqueísmo tribal, a marginal era nossa, a malta do Barreirense, enquanto a garotada do Bairro Operário só podia estar enfeudada ao rival Desportivo da CUF. Nós éramos vermelhos e bons, os outros eram verdes e não valiam um caracol. Não tinha mais nada que se saber.

A estrada que retalhava a Fábrica era atravessada, a meio, por uma linha férrea de via reduzida por onde se levavam e traziam produtos entre o armazém e o cais. O movimento de comboios de mercadorias era constante pelo que a incursão tinha o aliciante suplementar de nos encher os olhos com o mistério que vinha à mistura com o vapor das locomotivas. Passada a linha férrea, erguia-se, num dos lados e integrando as instalações da CUF, um enorme quartel da GNR com sentinelas diligentes e espingardas a tiracolo. Demorou tempo até entendermos o que fazia aquele enorme Quartel metido dentro de uma Fábrica. Se ali se trabalhava, os guardas vigiariam os fumos e os adubos? Se a população vivia dos dois lados da Fábrica, e, em princípio, seria aí que os meliantes fariam das suas, porque raio os gnrs se encafuavam no meio dos sacos de adubo? Era a idade da inocência. Faltava-nos saber que, ali na Fábrica, a malta enfarruscada que punha a Fábrica a deitar fumo, uma vez por outra, também fazia greve. E isso era, no tempo, uma coisa tão grave e tão criminosa que se tratava primeiro à coronhada, depois em arrastos, por levas, para os cabecilhas serem entregues à PIDE.

Quando me explicaram a razão porque havia um Quartel plantado no meio da Fábrica e passei a notícia aos da minha tribo, todo o bando ganhou respeito pelos nossos adversários do Bairro Operário. Decidimos que não era justo afrontá-los mais. Bastavam e sobravam os olhares aterrorizadores dos gajos da espingarda ao ombro. Claro que não podíamos ficar com a fama de cobardolas e a justificação que demos para nós próprios foi que afinal a rapaziada do Bairro Operário também era adepta do Barreirense. Ora a malta do mesmo Clube não anda à batatada uns aos outros. Ou não deve. E nós começávamos a aprender essas coisas dos deveres.

 
 
(*) Terá sido caso único nas fábricas portuguesas. Quando das greves na CUF do Barreiro da década de 40, a então vila fabril passou a ser ocupada militarmente pela GNR, situação que se manteve até 1974. E um quartel daquela força militarizada foi instalado dentro das próprias instalações da empresa. Inclusive, os militares da GNR tomavam as suas refeições na cantina da CUF, num turno próprio e antes dos empregados e operários da fábrica. 

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Biografia de João Tunes

guerra

 
A primeira parte deste texto pode ser lida aqui.

 
2 – O engenheiro amigo dos cães 

O Alferes Miliciano Teixeira foi incorporado no serviço militar logo após terminar o Curso de Engenharia Mecânica no Técnico. Era a vida daquele tempo. Não era mais nem menos que os outros. Vá lá que o incorporaram como responsável pelo serviço de manutenção das viaturas, o que o resguardava da pior sorte daqueles tipos que iam para atiradores, sapadores ou quejandos. Podia ter-lhe calhado melhor que a Guiné, lá isso é verdade. E, dentro da Guiné, teve de lhe calhar logo o batalhão de Catió, perto da fronteira maldita com a Guiné-Conacri, onde o PAIGC circulava com quase todo à vontade. Mas, «do mal o menos», dizia ele várias vezes para com os seus botões. É que, resguardado na sede do batalhão, tratando de pneus, diferenciais, sistemas de transmissão e afinação de motores, aquilo até servia de exercício prático para os conhecimentos teóricos acumulados e evitava andar pelo mato, a dar tiros de G3 e a desviar-se de tiros de kalashnikov.

O Teixeira era um conformista. Não contestava a sociedade, passou sempre ao lado das lutas estudantis e só ambicionava uma carreira numa grande empresa, onde pudesse demonstrar o seu gosto pela Mecânica. Não gostava de política e muito menos de lucubrações estéreis sobre os males da sociedade e os remédios para os males do mundo. Não era ele que ia mudar as coisas que estavam mal, que já assim estavam quando ele veio ao mundo. Os males já vinham de trás e, com certeza, não estavam à espera dele para endireitar o que estava torto. Ele aprendeu a endireitar máquinas, os gajos do governo e da política que endireitassem o resto. Era pacato nos hábitos e moderadamente sociável. Achava-se feio e, por isso, tinha uma posição defensiva quanto a namoros, festas e convívios. Tirando os pesos e alteres que ele praticava persistente e solitariamente, não apreciava exercícios desportivos que exigissem coragem física. Coragem que ele sabia que lhe faltava. Sentia-se até um bocado cagarolas. Sabia que não era pelo encanto pessoal que faria carreira. Restava-lhe não arranjar chatices e aplicar-se nos seus conhecimentos. A boa hora iria chegar. Pelo menos, eram os conselhos que os pais lhe davam.
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Embarque de tropas 

Melhor dito seria o aforismo se cantasse assim: «quem vai à guerra dá e leva, nunca volta como foi». Sim, não é possível participar-se numa guerra e não se mudar enquanto pessoa. Uns mais, outros menos, mas todos. Nos treze anos de guerra colonial (1961-74), centenas de milhar de jovens portugueses participaram nela, vivendo-a na fase do remate consolidado da personalidade. Sob condições mais ou menos cruéis, algumas extremas na dor sofrida ou causada ou observada, em grupos de partilha que durante o tempo de guerra foram o seu cúmulo exclusivo da família, dos amigos e da sociabilidade, cada um dos jovens lançado na guerra, os que regressaram, voltaram diferentes. Quando o fim da guerra chegou, uma revolução que virou e revolveu a sociedade portuguesa, ou não seria revolução, lançou esses antigos combatentes de fresco, ainda com a memória da guerra recalcada mas viva debaixo da pele, num novo desafio de mutabilidade profunda. Sendo a revolução feita e dirigida por militares, em que a motivação revolucionária muito teve a ver com o cansaço da guerra e tendo a descolonização como fito principal, o 25 de Abril e o que se seguiu foi, em termos vivenciais, um prolongamento adaptado da experiência da guerra ou, pelo menos, um regresso simbólico a ela. Só a civilização completa da democracia, com os militares a regressarem definitivamente aos quartéis e o país entregue aos partidos, permitiu ao larguíssimo sector masculino da sociedade portuguesa que tinha vivido a guerra colonial e a revolução, fazerem a catarse possível, adiada e lenta destas duas experiências fundas e companheiras. Hoje, longe que vão a guerra e a revolução, com a maioria dos antigos combatentes a calçarem as pantufas dos anciãos, com os cordelinhos da população activa e decisória entregues às gerações nascidas e criadas sem guerra nem revolução, numa sociedade em crise profunda de crenças e valores, em que a esperança mora pouco, assiste-se à maioria destes recorrerem à lembrança de si e do convívio com os camaradas de armas dos tempos de guerra como panaceia de conforto existencial, esgravatando as marcas fortes da juventude ida. Não admira. 

Cada qual é melhor observador dos outros que de si próprio. De mim mesmo, só sei que mudei muito nos meus dois anos de guerra colonial na Guiné (1969/71). Mas não me peçam pormenores porque não os esgravatei. No entanto, vim da guerra rico em observação de mudanças, espantado de ver como a guerra tanto muda as pessoas. Assisti (e partilhei, pois as mudanças eram feitas em grupo coeso e fechado) a quem mudasse muito e quem aparentasse mudar pouco. Houve de tudo, desde mutações profundas e desestruturantes até os que conseguiam passar a ilusão que foram e voltaram apenas dois anos mais velhos quando apenas se deu com eles mudarem mais por dentro que por fora. Mais que o episódico e o pitoresco das cenas de guerra, o que guardo de memória da guerra foram as mudanças que observei nos meus companheiros de belicismo obrigado. Talvez por isso funcionar como espelho escolhido para saber que, naqueles dois anos, também eu mudei, mais que uns e menos que outros. Dessa memória revisitada, escolho dois casos (os nomes foram alterados) para partilha de ocasião.         

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lisboa 

62 tinha sido um «ano em grande». O refluxo era inevitável e 63 fora fraquíssimo, quase tudo encolhido. Era preciso que a maré voltasse a subir. Na última semana de Abril, o «nosso orientador» montou o estado-maior em casa de uma colega nossa e minha namorada da altura, convocando a malta de confiança. Tudo escolhido a dedo. Tínhamos trabalhinho para toda a noite, fora o aviso. Distribuem-se os tempos de chegada, com cinco minutos de intervalo. Não convinha ir tudo à molhada e recomendava-se que cada um partisse de um sítio diferente e aparecesse com ar de ir passar uma noite de farra estudantil.

Quanto estávamos todos reunidos, oito no total, o «orientador» destapa um monte debaixo de uns jornais velhos e mostra uma série de sacos de lona que na altura se usavam para levar toalha e outros apetrechos para os banhos na praia. Os grupos já estavam seleccionados, aos pares de um rapaz e uma rapariga. Cada grupo de «casais» recebe a indicação da zona para onde vai actuar, um saco a tiracolo de cada um, fingindo tratar-se de um par de namorados e toca de, a partir da meia noite, enfiar convocatórias para o Primeiro de Maio impressas em papel bíblia por tudo que fosse porta, vão de escada e pátio. Era preciso que, na manhã seguinte, quando Lisboa acordasse, o povo estivesse convocado para o Primeiro de Maio de 1964 na Baixa. Para efeitos políticos imediatos e temporários, o chefe das operações de agitação decidiu que «trocava de namorada» comigo, ele ficava ali na improvisada «casa de apoio» com a respectiva inquilina a aguardar o regresso das brigadas e eu avançava com a namorada dele como companheira de distribuição nocturna de propaganda. Não me pareceu mal aquela troca de namoradas por uma noite e por imposição de trabalho político e lá fomos espalhar a papelada a começar no Largo da Graça e a acabar na Mouraria. Tínhamos aqueles dois bairros por nossa conta e risco.

Os sacos, atafulhados de papéis até à boca, pareciam pesar toneladas. Desde a Estrela, fomos a pé até ao Largo da Graça. Sempre de mãos dadas, tentávamos disfarçar o nervoso miudinho que teimava em fazer baixar tremeliques até às pernas, com risadas discretas e pseudo olhares românticos para encenar estado de enamoramento. Volta e meia, parávamos a olhar para uma montra e confiar que não tínhamos seguidores. No Largo da Graça foi tempo de descansar uma meia hora e esperar pela meia noite. Sentámo-nos num banco de jardim, tentando sossegar o coração porque o mais difícil estava para vir. Eu sempre com o braço por cima do ombro da minha camarada agitadora e ela encostando-me a cabeça com ademanes românticos.

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Guiné 1974 - PAIGC em Pelundo

Passaram ontem trinta e nove anos sobre um dos episódios mais traumáticos da guerra colonial. Às 16 horas do dia 20 de Abril de 1970, no norte da Guiné (na estrada entre Pelundo e Jolmete, na região de Teixeira Pinto/Canchungo de etnia manjaca), três oficiais superiores e um alferes miliciano do exército colonial português mais três guineenses colaboracionistas (*) foram mortos por forças do PAIGC. O episódio teve um efeito psicológico assinalável entre os militares envolvidos na guerra colonial não pelo número de baixas mas pela natureza do acontecimento e pelas pessoas envolvidas. Desde logo, porque perderam simultaneamente a vida três oficiais superiores portugueses considerados como pertencendo à nata do corpo de oficias profissionais nos teatros de operações. Depois, porque o alvo da missão dos quatro militares e dos três colaboracionistas guineenses era exactamente o oposto do que aconteceu – concretizar a rendição e passagem para o lado colonial das forças do PAIGC que operavam na região, após aparentemente bem sucedidas negociações de aliciamento realizadas antes. Finalmente, com enorme carga simbólica, pelas circunstâncias em que as liquidações se concretizaram (assassinatos a sangue frio e com requintes de crueldade de pessoas que se encontravam desarmadas). O certo é que o que se previa ser um momento alto da contra-guerrilha, a desarticulação operacional da intervenção do PAIGC no norte da Guiné e com efeitos devastadores na moral e na operacionalidade dos guerrilheiros anticoloniais, transformou-se num dos mais desmoralizadores insucessos do exército colonial português, com enorme impacto psicológico negativo na convicção de combate do exército colonial.

Por razões diversas mas confluentes, este episódio marcante da guerra colonial e as suas sequelas, do ponto de vista psicológico e simbólico, nunca teve tratamento adequado quer da parte da literatura portuguesa sobre a guerra colonial (nomeadamente na componente historiográfica) como da bibliografia do PAIGC ou a ele afecta. Do lado português, entende-se que uma derrota com aquela dimensão e aqueles contornos seja difícil de digerir, embora as vitórias e as derrotas devessem ter o mesmo peso analítico e factual no tratamento histórico do passado colonial feito guerra de conservação do império. O silêncio e pudor do PAIGC perante os acontecimentos é mais difícil de entender, a não ser pela dificuldade de admissão das divisões internas que o precederam e pela forma bárbara como as execuções dos militares portugueses e dos seus colaboradores guineenses, para mais desarmados, tiveram lugar.

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Planicie Alentejana  

Mais um ano para o início do cumprimento do serviço militar só servia para adiar o inevitável. Tinha que bater lá com os costados, mais tarde ou mais cedo. A guerra estava para lavar e durar e tinha-se atolado num impasse lodoso. Mas enquanto o pau vai e vem, folgam as costas, dizia-se e diz-se. Quem tem vinte e três anos, a minha idade de então, tem é pressa de viver e vive ao momento. Além de não ser nada entusiasmante a ideia de vestir farda, marcar passo e ir para África alimentar teimosias de quem quer andar ao contrário dos ponteiros do relógio da História. O meu «compromisso académico» estava praticamente cumprido. Tinha uma única disciplina «pendurada» que tinha sobrado por causa de uma precedência. Dava três horas de aulas por semana, a sebenta explicava tudo o que havia para saber sobre «órgãos de máquinas» (assim se chamava a disciplina) que metia bielas, cambotas e pistons. No Porto, não me deixavam matricular por causa de um processo disciplinar que lá tinha suspenso por motivo das lutas estudantis, o regresso às aulas em Lisboa (de onde tinha sido despachado para o Porto pelas mesmas razões que agora não podia continuar na Invicta) estava condicionada à garantia de não pôr os pés nas aulas e só lá ir para fazer as frequências. Não me marcariam faltas e eu que arranjasse apontamentos para me entender com as cambotas e as bielas. Tudo bem, o que interessava era o direito a mais um ano de adiamento na hora de vestir a farda, estupidificar na Ordem Unida, cheirar pólvora na carreira de tiro e o pior que se adivinhava vir a seguir. E ir para o interregno militar (três anos da minha vida!) com o curso concluído permitia-me que terminada a tropa procurasse um emprego interessante. Mas não ia ficar um ano parado e sem aulas a preparar exames que não dava luta de estudo. E o meu casamento estava previsto para se dar antes de me fardar. Emprego como deve ser, nem pensar, sem serviço militar cumprido ninguém aceitava mancebos. Jornais lidos de fio a pavio à procura de uma coisita qualquer para me entreter e ganhar uns cobres, desato a responder a esmo aos anúncios em que vou encalhando.  

Às tantas, recebo carta de Ferreira do Alentejo propondo-me ir dar aulas durante um ano lectivo num colégio particular. Lá fui, procurando o director. Apareceu-me o Cura da terra que acumulava com as funções de professor, director e proprietário do Colégio. Ajustámos o preço que era sovinado, e bem sovinado, pelo clérigo. Eu daria aulas até Junho seguinte e ele pagaria, nesse último mês, os honorários das férias grandes. Para meu espanto, o meu Curso de Química pareceu-lhe apropriado a leccionar Geografia e Ciências Naturais, além de Matemática e de Físico-Química. Como a mão-de-obra era barata, ele aproveitava ao máximo. Acordo verbal feito, instalo-me em Ferreira, quarto alugado junto à Estação das camionetas da EVA e lugar contratado na mesa dos comensais do Regedor na companhia de meia dúzia de agrónomos que tratavam do regadio alentejano. O Cura, homem de grande corpanzil e enérgico, tinha vindo do Norte para evangelizar as terras pouco crentes do Alentejo. Tinha metido na cabeça que havia de energizar a modorra alentejana e levar os ímpios sulistas ao bom caminho. Era homem de mil ocupações – presidente do clube desportivo da terra e dinamizador da criação de corais alentejanos pelas redondezas. Além, é claro, das suas funções de docência, directoria e embolso dos lucros do Colégio que tinha, como clientela, os ricos e remediados do sítio que queriam os filhos com o Liceu feito mas sem irem e virem todos os dias de Beja. Era o que hoje se chamaria explorar um «nicho de mercado». 
 
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Publicado originalmente no blogue Água Lisa

Numa altura em que a Justiça anda, na consideração pública, pelas ruas da amargura (muito por culpa própria, quando procurou ou deixou mediatizar-se), é oportuno que se pare para pensar no percurso que fez para aqui chegar. E, para isso, interessa, desde logo, saber-se de onde veio. Ou seja, em que árvore foi enxertada. Nesse mister, é oportuníssima a edição do volume volumoso sobre como, décadas atrás, se julgavam os “crimes sociais e políticos” ou os “crimes contra a segurança do Estado” numa obra de académicos que documentam até à exaustão e à perplexidade a ignomínia vestida de toga que perseguia e punia a diferença, desde a grossa à comezinha (*).

Desde então, dessa Justiça sumária comandada a partir da polícia, muito foi o caminho percorrido quando as dobradiças do portão da ditadura se partiram. As mulheres, antes disso sujeitas ao ónus do sexo, irromperam pela magistratura dentro. A legislação floresceu e sofisticou-se com nós. A frequência de Direito passou a ser expediente de licenciatura para meio mundo incapaz de escolher vocação. O segredo de Justiça serve para ser violado por acosso de jornalistas desejosos de partilharem incontinências, vendendo-as em papel ou no écran. Hoje, é um cumprimento formal dizer-se que a Justiça é autónoma e um dos pilares da democracia. Resta o caminho urgente de uma reforma e da redignificação da Justiça que a desaproxime da balbúrdia pública e do seu enxovalho, reversos das suas contradições e vaidades. Para isso, primeiro que tudo, tem que converter-se à humildade do respeito.

Excepto para os apostados na morte do Estado, para que o Estado Totalitário se reerga, no modelo Salazar-Caetano ou seu simétrico, a esperança na recuperação da Justiça, enquanto Justiça democrática, tem direito a existir. E esse voto de confiança pode e deve colher-se no percurso feito que este livro oportuníssimo ilumina. Lê-lo é uma lição sobre a escala de entorses, comparando a prova do tempo dos crimes justiceiros com o dos entorses de crescimento. Mas, for favor, não demorem tanto no caminho a caminhar.

(*) – “Tribunais Políticos – Tribunais Militares Especiais e Tribunais Plenários durante a Ditadura e o Estado Novo”; Irene Flunser Pimentel, João Madeira, Luís Farinha e Maria Inácia Rezola, com coordenação de Fernando Rosas. Edição Temas e Debates/Círculo de Leitores.