Primavera, nos anos 70.
Percebi muito bem o recado que o camarada funcionário do Partido me mandou. Na quinta-feira da semana seguinte, iria ao Jardim da Estrela encontrar-me com um amigo, também militante a viver na legalidade, e levava-o para a casa de apoio onde, ultimamente, reuníamos. Não me foi dito de quem se tratava. Que quando o visse logo o reconheceria. Eu ia usar um casaco de malha preto e ele levava uma pasta na mão. Não era preciso combinar mais nenhum sinal, pois também ele me conhecia bem e fora avisado de que a pessoa que o aguardava seria eu. Que às 7.30 em ponto, eu já tinha de estar à porta da entrada do Jardim, no lado norte, isto é, junto à Avenida Pedro Álvares Cabral, e que esperasse que ele se me dirigisse. Senha e contra-senha, tudo combinado. Que, se o amigo não aparecesse ou se, indesculpavelmente, eu me atrasasse, voltávamos lá uma meia hora mais tarde; que devia certificar-me de que o campo estava “limpo”, sem indivíduos ou carros de aspecto suspeito, por perto, blá, blá, blá: os cuidados do costume.
A pergunta que ele iria fazer-me revestia-se de uma grande naturalidade: “O que fazes tão cedo por aqui?”. Porém, a resposta que me cabia dar-lhe era algo absurda para um dia de semana, ainda longe do Verão: “Estou à espera de uma boleia para o Algarve!”. Depois, uma vez cumprido tudo – estas duas frases ditas com absoluto rigor, sem falhas – apanharíamos um táxi para uma transversal à Avenida de Berna, ficando próximos da casa em que nos juntávamos com o camarada funcionário.
Saí da Penha de França muito cedo, para ter tempo de fazer um “corte” na viagem – era obrigatório… – isto é, tomei um autocarro até à Avenida Duque de Ávila, desci, e apanhei um táxi para a Basílica da Estrela. Depois, percorri a pé o passeio que ladeia o jardim, até à entrada norte. Sempre vigilante, olhando de vez em quando pelo canto do olho para trás, a verificar, como habitualmente, se não “ia seguida”.
Às 7. 25, ou por aí, postei-me à porta, observando quem se aproximava. Não tardaram 3 minutos, vejo-o surgir, de pasta na mão, e pensei: “Ai que engraçado! Este gajo é do Partido? Que bom!”. De facto, conhecia-o – era um democrata, um activista associativo que eu muito admirava, um amigo, até – mas tinha-o perdido de vista, havia anos.
Deu-me um beijo.
– O que fazes por aqui tão cedo? (As palavras da frase estavam ditas por uma ordem ligeiramente diferente, mas não seria por isso que não lhe responderia o combinado, pensei.)
– Estou à espera de uma boleia para o Algarve!
– Então boa viagem! Vou andando que estou cheio de pressa. – Disse, dando-me um outro beijo e largando em frente, pela Avenida, em passo acelerado.
“O tipo é parvo! O que lhe deu? Por que não reagiu à senha? Cheguei antes das 7.30, o “terreno está limpo”, tenho um casaco preto vestido, e respondi-lhe exactamente o que estava combinado.”
Ia começar a andar, de regresso a minha casa, chateada, interrogando-me acerca do mistério, quando vi aproximar-se, em passo acelerado, um outro amigo. Vinha de pasta na mão e, mal chegou, nem beijo, nem outro cumprimento:
– O que fazes tão cedo por aqui?
– Estou à espera de uma boleia para o Algarve!
– Vamos lá? – disse o camarada, agarrando-me pelo braço, enquanto nos preparávamos para atravessar a rua, em direcção à Pedro Álvares Cabral.
– Uf! Ó pá, não podes imaginar o que me aconteceu! Dois minutos antes de tu chegares, apareceu-me, não sei de onde, de pasta na mão, o João Cravinho. Deu-me um beijo, e não é que me fez exactamente a pergunta combinada!
– E então?
– Então, respondi-lhe esta coisa do Algarve. Ele fez um sorriso, não sei se achou natural ou não, e desandou. Felizmente estava com pressa… ou terá suposto que eu tinha um qualquer encontro de amor. Olha se tinha ficado à conversa, lá se ia a nossa reunião de hoje!
Sexta-feira, 23.Abr.2010 at 08:04:14
Hoje estou em dia de dúvidas. Terminei a leitura do “A Sombra do que Fomos”, de Luís Sepúlveda, a que fui conduzido por sugestão deixada pela Joana Lopes.
Não defendendo a perspectiva de que o negro seja a única cor possível para pintar o que foi dramático, fiquei contudo na dúvida se a ironia bem humorada, por vezes mesmo hilariante, com que o autor recorda a resistência do povo chileno à ditadura, constituirá o melhor contributo para a preservação da memória desses tempos negros da história do Chile. Ou não transmitirá antes a ideia enganosa de um fresco ligeiro, daquilo que de facto o não foi. E lembrei-me, a propósito, de algumas crónicas – não me refiro particularmente a esta – da Helena Pato.
nelson anjos
Sexta-feira, 23.Abr.2010 at 02:04:56
Além das várias crónicas – em que procurei transmitir o inequívoco dramatismo das situações a que se reportam – escritas para estes Caminhos da Memória,nos últimos meses, o Nelson Anjos pode ter muitas outras, testemunhos pessoais igualmente pesados sobre a ditadura fascista, no meu livro “Saudação, Flausinas, Moedas e Simones” da Ed. Campo das Letras, aqui citado em diversas adaptações. Mas lá que, na luta anti-fascista, houve acontecimentos, momentos, histórias que nos provocaram o riso, na própria hora ou algum tempo depois, houve. Não vejo por quê escondê-los. Escondê-los seria deturpar a realidade, apagar pedaços da História. Porque a vida é assim – até na dureza da realidade podemos ser confrontados, episodicamente, com o humor. Como uma compensação na situação, ou uma fuga interior ao abatimento ou mesmo ao aniquilamento. Eu sempre assumi esse humor.
Sexta-feira, 23.Abr.2010 at 02:04:32
Encontros casuais + coincidências = perigo (naquele tempo)
:)
Sexta-feira, 23.Abr.2010 at 03:04:03
Sem dúvida! Creio, aliás, que os jovens podem ver nesta pequena história inúmeros aspectos terrivelmente condicionantes da luta contra o fascismo, por exemplo, as chamadas regras conspirativas – pelo menos, foi escrita também com essa intenção.
Helena Pato
Sábado, 24.Abr.2010 at 10:04:50
eu gostei muito de lê-la (aqui e no livro), Helena.
e acho que estas histórias em que se recorda o “perigo” com humor, só nos fazem bem, neste país, já de si tão melodramático.