O texto que se segue contém excertos de uma carta de Liz Sevcenko, publicada no jornal Herald Tribune, de 23.12.2008.
«A memória é um terreno central sobre o qual se constroem e asseguram no futuro as democracias. A inextricável relação entre a história e os direitos humanos vem sendo cada vez mais reconhecida por instituições locais e internacionais. Comissões de Verdade e Reconciliação em muitos países vêm exigindo espaços de memória e confrontando os aspectos mais difíceis e sensíveis da história das nações, reconhecendo nesse labor um requisito fundamental duma sociedade aberta.
Todos os governos são responsáveis por manter um acesso aberto ao passado dos povos. Não se trata apenas de decidir se os arquivos devem ser abertos ou manter-se fechados e ocultos. A democratização da história – e usar a história para sustentar uma democracia saudável – exige fóruns públicos que permitam às pessoas lidar abertamente com o passado, em todos os seus aspectos de desonra e glória.
Apagar a memória dum passado de repressão politica e de resistência contribui fortemente para aceitar culturas de repressão no presente. Pelo contrário, criar espaços de debate e reflexão sobre esse passado, em todos os seus aspectos e consequências no presente, pode ajudar a construir uma cultura de militância democrática. O tratamento que cada nação dá ao seu passado necessita de ser tomada a sério como uma indicação segura de compromisso com os direitos humanos.»
Quinta-feira, 15.Jan.2009 at 06:01:05
Este texto parece-me extremamente oportuno e, não sei se por coincidência ou não, vem contrariar algumas considerações que em mail recente dirigi a um dos elementos do colectivo “Caminhos da Memória”. Trata-se do que então referi como me parecendo a sensibilidade dominante nos escritos publicados neste blogue, – o tratamento do passado, omitindo a sua projecção no presente, e ainda menos a sua valorização como saber acumulado para abordar o futuro.
O método da análise levou o homem a fragmentar a realidade e a estudar de forma especializada cada fragmento, isolando-o do todo, como se fizesse sentido por si só. “Analisar” e “conhecer” passaram a ter praticamente o mesmo significado. E o tempo não escapou também a esta forma de olhar.
Passado, presente e futuro deixaram de constituir manifestações de um fenómeno uno e, cada uma dessas partes do todo passou a constituir objecto de estudo isolado, por especialistas dedicados. Os historiadores dedicam-se ao passado e utilizam os seus métodos próprios; do presente encarregam-se os políticos; e os futurologistas reservam-se o estudo do futuro.
Ora, parece-me importante que os historiadores reformulem a sua profissão e não se remetam a uma condição de coveiros do passado. Aliás, o cultivo da memória deve consistir precisamente na recusa de que o passado fique sepultado no passado. A procura da síntese do tempo é para mim o sentido mais interessante deste post.
nelson anjos
Quinta-feira, 15.Jan.2009 at 04:01:05
Ainda bem que foi colocado este “post” (passe a redundância) e que houve o comentário do Nelson Anjos. Sobretudo este último explicita muito melhor alguns dos meus comentários a anteriores “posts”, onde por vezes fiz críticas (meio veladas) e, algumas vezes, sugestões no sentido de não se ficar “embasbacado” a olhar para o passado, sem se tirarem ilações para o presente e se esquissarem perspectivas de acção futura.
Quanto a mim pouco interesse haverá, por exemplo, em historiar os grupos da esquerda revolucionária (imediatamente anteriores e posteriores ao 25 de Abril) se esse estudo não for completado com uma análise crítica das acções posteriores dos seus actores e o do seu actual enquadramento político.
Isso é melindroso? Se calhar… Mas sem a coragem de um debate aprofundado sobre este assunto, pouco partido se poderá tirar do conhecimento do nosso passado recente.
Um passo positivo e promissor nesse sentido foi, por exemplo, a excelente entrevista efectuada a Saldanha Sanches e aqui publicada.
Quinta-feira, 15.Jan.2009 at 08:01:30
Inteiramente de acordo com o texto “postado” por Vera Jardim e com a ideia que “apagar a memória dum passado de repressão politica e de resistência contribui fortemente para aceitar culturas de repressão no presente”. Creio que muitos de nós sentem, precisamente, que a sociedade portuguesa aceita demasiado essa cultura de repressão.
Estou bastante menos de acordo com o comentário de Jorge Conceição. Não creio que se trate, aqui, de “ficar embasbacado a olhar para o passado”, mas de procurar conhecê-lo melhor, e dá-lo a conhecer, porque só assim dele se podem tirar ilações para o presente e o futuro. Acho que temos ainda de recuperar o muito que nos foi escondido, ou deturpado, pela existência da Censura. Censura que não nos limitou apenas no momento, mas nos legou para o futuro (o agora presente)a ausência de documentos, sons, imagens, necessários ao conhecimento desse passado. Basta ver quão poucas imagens dispomos das manifestações estudantis dos anos 60 em Portugal… e quantas pessoas continuam a dar como verdadeira a propaganda que lhes foi servida durante esse longo período. Há muito trabalho ainda a fazer para dar a conhecer o que foi a nossa realidade – e não creio que fazê-lo seja pouco interessante.
Sexta-feira, 16.Jan.2009 at 01:01:15
Diana Andringa: eu não tinha em mente os factos anteriores ao 25 de Abril e muito menos, por exemplo, o que se passou aqui ao lado em 1936 e anos seguintes. Evidentemente que trazer para a ordem do dia todos os factos que foram omitidos ou simplesmente esquecidos, recuperado-os, revisitando-os, revendo-os, etc. e publicitando-os, é – tem sido – importantíssimo. É uma actividade a todos os títulos louvável e que muitos de nós esperavam.
O que pretendi dizer (e referia-me sobretudo a factos ocorridos essencialmente no período imediatamnete a seguir ao 25 d Abril) é que acho insuficiente, por exemplo, descrever os grupos maoístas ou a actividade do MES nos anos setenta, sem debater porque se extinguiram ou porque sofreram transformações e como foram elas. E sobretudo tentar entender porque muitos activistas de então mudaram, não somente os seus discursos, mas sobretudo as suas práticas poilítica e social.
É desinteressante? Foi casual? É a evolução “natural”? É o poder? Sim, não, talvez… A verdade é que as, pelo menos aparentes, viragens à direita foram mais que muitas. E muitos dos mais acalorados militantes da esquerda revolucionária, logo que o panorama político nacional começou “a estabilizar” foram em grupo e a correr inscrever-se, por exemplo, no PS (que anteriormente atacavam), para não falar dos que foram até ao PSD ou que, com apadrinhamentos partidários, se tornaram gestores de várias coisas.
Sem pretender que se possam arrumar todos estes destinos numa teoria, acho que um debate que avance por aqui dentro, apesar de mexer com muitos melindres pessoais, dar-nos-ia perspectivas muito importantes, não apenas para a nossa actividade de hoje, mas também para as gerações futuras. Sobretudo aquelas que hoje descreem da acção política.
Outro engulho que é preciso ultrapassar é o do público destinatário. Temo que os que têm interesse em vir ler e comentar os “posts” deste blogue (e doutros semelhantes) sejam apenas aqueles que sempre estiveram informados do nosso passado recente, com apenas algum eventual lapso de memória. O destinatário mais importante será o público não informado, que viveu ou vive à margem da história da nossa sociedade. Como chegar até ele?
Sexta-feira, 16.Jan.2009 at 01:01:50
Os quatro comentários já feitos a este post vão ao fundo das questões relacionadas com a razão de ser deste blogue. Partir de factos e experiências passados, não numa perspectiva saudosista mas para melhor perceber o presente e perspectivar o futuro foi, desde sempre, o que nos moveu e nos move.
E, no entanto e como já disse ao Nelson porque foi a mim que ele dirigiu o mail a que se refere: isto é APENAS um blogue, não um centro de investigação ou de estudos históricos e há que ter em conta, com realismo, essa limitação. Os Colaboradores, de um modo geral muito ocupados, escrevem com a maior das boas vontades, quando podem, o que podem, em relação com os trabalhos que estão a desenvolver ou com experiências que vão desenterrando e descrevendo.
Além disso, se há quem tenha apetência por textos mais «teóricos», há, quase no extremo oposto, quem prefira Testemunhos (os tais que muitas vezes transpirarão nostalgia para alguns). A variedade de colaboradores ajuda naturalmente a satisfazer gostos diferentes.
Finalmente, o Jorge toca num ponto crucial: seremos lidos fundamentalmente por um público já informado? Honestamente temo que sim, mas não tenho meio de o saber, a não ser por quem deixa comentários e por mails que vou recebendo. Mas há gente relativamente nova que nos lê sistematicamente e que «agradece» o que fazemos. Como atingir quem vive à margem disto tudo? Aceitam-se sugestões…
Uma nota final: o Vera Jardim contactou-me à hora de jantar e só não se meteu ainda nesta conversa por absoluta falta de tempo. Mas tentará fazê-lo.
Sexta-feira, 16.Jan.2009 at 01:01:22
Sinceramente, não consegui (mas talvez lá chegue) descortinar a relação entre a “carta de Liz Sevcenko” lembrada por José Vera Jardim e os comentários de Nelson Anjos e Jorge Conceição (que elogiam a “carta” e não a contrariam). Há qualquer coisa que não bate certo, parece-me. Se me ajudarem, agradeço.
Como Diana Andringa comentou, o problema maior da historiografia e da memória de povos saídos de longas ditaduras é que, pela censura, pelo controlo dos registos e dos arquivos e pelo monolitismo propagandístico, muitos dos traços fundamentais da então vida colectiva ou não existem ou o que permanece são as versões que as próprias ditaduras davam das suas virtudes e superioridades, expurgando traços de dissonâncias e das próprias aberrações do regime (inclusive os seus crimes). Os efeitos maléficos da herança desta higienização a que as ditaduras procedem às suas práticas são tremendos em termos futuros no que respeita à continuidade histórica, cultural e de costumes entre as ditaduras e as suas superações. Por um lado, o mais importante, para as gerações mais novas nascidas pós-ditadura que, por falta de visão retrospectiva, olham para a sociedade como se o seu parto coincidisse com a sua experiência (veja-se, mero exemplo, a forma corriqueira como este ou aquele toque autoritário é fácil e rapidamente caracterizado como “fascista” ou “salazarista” ou “de censura”). Entretanto, os saudosistas das ditaduras vão vendendo o seu peixe, por impunidade face a falta de contraditório fundamentado, tentando contrapor um hipotético “eldorado” perdido face a dificuldades da vida presente (nomeadamente, quanto à autoridade, à segurança e à paz social, com as histórias que todos conhecemos do apelo ao “Salazar que faz falta” e que um concurso televisivo demonstrou que os saudosistas não se reduziam ao meio dos taxistas). E essa é uma questão de todos os povos que viveram ditaduras, veja-se o regresso do culto a Estaline na Rússia de hoje. A ignorância, seja por falta de documentos ou por escassez de testemunhos, ajuda a estes problemas (ausência de conhecimento de onde saiu esta democracia, construção e difusão de um estereótipo positivo da ditadura sem qualquer ligação com a realidade vivida). E do que aqui li da “carta de Liz Sevcenko” só confirma a necessidade de recuperar o máximo da memória que anda perdida e corre o risco de se apagar consoante lei da vida vai mandando embora quem viveu os “tempos de chumbo”.
O projecto defendido de que o mais interessante e útil na recolha da memória do passado é interligá-lo com o presente dando-lhe uma dinâmica de transformação, é obviamente não só fascinante como aponta uma nobre meta. De facto, essa é a utilidade maior da memória – ajudar o presente e projectar o futuro. Mas este projecto, para ter pés para andar, tem de ter pés, de preferência calçados. E na reflexão colectiva sobre o passado político, cultural, da moral e dos costumes, há uma carência objectiva de suportes pois temos, ainda, uma memória muito coxa. O futuro tem sobretudo a ver com as gerações mais novas, quanto mais souberem do passado melhor se amanharão com a sociedade que vão construindo, competindo-lhes fazerem a síntese. As gerações que viveram a ditadura o que podem fazer de melhor, prestes que estão a deixarem a vida activa e influente? Não é exercerem o contraditório sobre a limpeza dos crimes da ditadura e darem testemunho da realidade vivida (sofrida) nos melhores anos da sua vida?
Sexta-feira, 16.Jan.2009 at 01:01:13
Enquanto estava a escrevinhar o meu comentário anterior, o Jorge Conceição disse de sua justiça sem que eu fosse a tempo de ter em conta este seu segundo comentário. A posição dele ficou-me, agora, muito clara.
Sexta-feira, 16.Jan.2009 at 11:01:56
Agradeço ao Jorge Conceição ter esclarecido a sua posição. Quanto à questão de qual é o público deste blogue, não tenho resposta. Mas espero que as chamadas de atenção feitas noutros blogues, quando do seu lançamento, possam ter chamado a atenção de outros leitores. E que os textos aqui “postados” – ensaios, testemunhos ou entrevistas, porque os leitores não são todos iguais – não desmereçam essa atenção.
Sexta-feira, 16.Jan.2009 at 11:01:27
Alguns complementos ao que entretanto foi dito.
Pegando no que a Diana diz, uma informação quanto a blogosfera e público: há 132 blogues que referiram o CdM nos últimos seis meses (o que já não incluiria os que só o anunciaram quando foi lançado, isto se interpreto bem os resultados apresentados hoje no Technorati e se eles estão actualizados) – do Blasfêmias ao Arrastão, para citar apenas os dois blogues, de direita e de esquerda, mais lidos em Portugal. Não é portanto fácil saber quem cá vem. Sem contar com todos os leitores, e são muitos, que não chegam através da blogosfera (como, por exemplo, os que recebem a Newsletter por mail).
Num outro comprimento de onda, gostaria de assinar por baixo o que o João diz no último parágrafo do seu primeiro comentário: «O futuro tem sobretudo a ver com as gerações mais novas, quanto mais souberem do passado melhor se amanharão com a sociedade que vão construindo.» Os mais novos estão dispostos a ler factos e histórias de vida, muito mais do que elaborações teóricas sobre história propriamente dita. Comprovei-o isso em contactos recentes, nos quais me foi dito, por adolescentes de 18 anos: «Ouvir essas coisas ajudar-nos-á a lutar contra qualquer hipótese de novas ditaduras.»
Sexta-feira, 16.Jan.2009 at 06:01:20
Motivos de natureza pessoal e profissional têm-me impedido de estar tão presente aqui nos Caminhos da Memória quanto gostaria. Por isso confesso que deixei passar o início desta conversa que levanta alguns temas muito importantes e que merecem um debate que, aqui em Portugal, praticamente não tem existido. Vou tentar recuperar minimamente, pedindo desde já desculpa se não puder responder de imediato a alguma interpelação.
Penso que vem para o caso, aliás, dizer que ensino numa universidade temas de «história recente» ou de «história do tempo presente» (tenho mesmo uma cadeira com este segundo nome que, apesar de ser de opção, até é a cadeira com maior número de alunos da minha faculdade), e, por tal motivo, tenho razões acrescidas para me empenhar no assunto. Ele interessa-me enquanto cidadão e do ponto de vista profissional, embora nunca tenha separado as duas condições e ache mesmo que elas não devem ser separadas. Mas a experiência das aulas é-me particularmente cara e útil: mantenho-a há quase 30 anos e ela tem-me permitido ir acompanhando alterações de percepção e de comportamento em relação às questões da «memória histórica» (o conceito em si merece uma conversa que agora nos ia desviar do que aqui importa) que podem participar no aclaramento destas questões. Claro que falar disto numa faculdade de humanidades implica particularismos, e por isso não confundo os meus jovens com «os jovens». Mas como também não vivo barricado na sala de aula, vou olhando que se passa do lado de fora.
Às tantas o intróito tem mais conversa que o resto, mas gostava de dizer isto para associar a alguma experiência o que a seguir digo quase em forma de telegrama (bem sei que isto é um comentário, e não um post…):
– A memória é sempre construída e jamais podemos pensar em preservá-la em cada geração como a geração anterior a viu (e hoje as «gerações» mudam quase a cada ano, como sabemos…). Temos sempre de procurar manter referências e sinais do passado, mas dialogar com eles e reconhecer que, inevitavelmente, muitos deles irão perdendo completamente o poder que detiveram em certa altura. Se o não fizermos transformamo-nos numa espécie de «velhos dos Marretas» azedados com o mundo e magoados com os jovens que «não nos compreendem».
– A história recente pode ou não ter uma função prática e política. A história, toda ela, vive a meio caminho – eu sei que isto não é consensual entre os historiadores – entre a arte e a ciência. O exercício do primeiro aspecto é muito importante para alargar o seu impacto social pois é ele que atrai as novas gerações para o passado (da mesma forma que as atrai um romance ou um filme). A prática do segundo aspecto é essencial para impedir que esse passado seja completamente reinventado e, como tal, apagado.
– O estudo de temas, recentes ou não, não tem, por isso, de ter sempre «uma ligação à realidade», embora o carácter «quente» do passado mais recente torne essa ligação quase sempre inevitável. No entanto, podem e devem estudar-se temas do passado recente pelo seu interesse próprio e não apenas pelo seu valor prático. Pegando no exemplo dado, a história da extrema-esquerda é complexa mas razoavelmente curta, e, num certo sentido, torna-se difícil «quebrá-la» num dado ponto. Mas por vezes teremos de o fazer do mesmo modo que o fazemos em física quando estudamos um fenómeno em laboratório sem com isso termos de olhar a todo o instante para a conjunção das forças gravitacionais que mantêm os planetas no seu curso. Outras vezes poderemos fazê-lo, consoante o ângulo e os objectivos do estudo em causa.
– Sou absolutamente contra deixar o presente (e o futuro) para os politólogos (e os políticos, e os sociólogos, e os antropólogos), remetendo os historiadores ao mero exame do passado. Para não me alongar mais posso referir o tema que serviu de eixo a uma aula de recuperação que dei na semana passada: «Gaza e o conflito israelo-palestiniano». Viajando da expansão do Império romano às imagens que nos chegam via Internet (que é, muito mais que dos jornais ou da televisão, onde a maioria dos estudantes e dos jovens urbanos de classe média ou superior vão hoje buscar a sua percepção do mundo).
Agradeço a vossa paciência.
Sexta-feira, 16.Jan.2009 at 06:01:19
Esqueci-me do mais importante. Espaços de debate e reflexão sobre o passado que não deve ser apagado, sim, com certeza. Mas pensando-os muito bem, pois grande parte dos que existem, ou de algumas iniciativas que com eles confluem, têm servido mais para afastar do que para aproximar. Logo, contribuem para o apagamento.
Sexta-feira, 16.Jan.2009 at 10:01:30
Apreciei muito o comentário de Rui Bebiano.
Julgo que a História não é uma simples exumação do passado, mas é essencialmente uma forma de “ver o presente”, de onde se parte e onde se questiona o que aconteceu, o que se faz com um ao que chegámos implícito. Mudam-se os presentes, dilui-se uma História, esboça-se uma outra.
No entanto, o discurso histórico que está em curso não deve ter fins instrumentais e, pelo contrário, deverá ser feito esquecendo de que existe um público, ou mesmo uma população, e uma sua projecção possível, imediata.
Isto não quer dizer que a História seja obrigatoriamente uma mentira. Quer dizer que se escreve num certo quadro social, que, como qualquer outra forma de conhecimento, está sujeita a cauções várias, a do tempo, muito particular neste caso, as de método, as da compatibilidade com outros ramos das ciências sociais, etc.
Pelo que penso a História não pode chutar, para longe, os politólogos, os sociólogos, os economistas, os antropólogos, os filósofos, os geógrafos, os demógrafos, os prospectivistas etc. Viverão, então,em boa sociedade e sem exclusões, nem inclusões únicas ou “exclusivas”. E aqueles também não podem empurrar os historiadores para longe de si.
Não sendo uma simples exumação do passado, é preciso, contudo, que se conheça esse passado. Tanto mais que ele está tapado, escondido, adulterado, falseado pelo jogo dos mais variados interesses sociais a começar pelos que cabiam num regime que durou 48 anos e que, quase como um totalitarismo, tudo absorveu e tudo deturpou. E muito, muito silenciou ou até abortou. E é preciso para que as pessoas usem, com maior amplitude, as liberdades, os direitos, para que participem na vida pública, para que estejam de corpo inteiro na sua sociedade. O historiador é um cidadão, claro, e seria até desejável que perdurassem mais os seus esforços como cidadão do que os seus trabalhos como historiador. Diria que uns e outros estão um pouco em relação inversa.
Conhecer o passado para mais e melhor se participar no presente. Certíssimo. Mas fazer conhecer o passado , ou deverei dizer um passado, não é trabalho fácil e tem de encarar muitos e complicados problemas.Como me parece que Rui Bebiano diz.
Atenção dispensável: eu não sou nem um historiador, nem um historiógrafo.
Sexta-feira, 16.Jan.2009 at 11:01:58
Mas qual é a dúvida, Rui Bebiano? Claro que o testemunho memorial sobre o passado é sempre uma interpretação-reconstrução. Não podia ser de outra forma, a menos que se tivesse as chaves do cofre onde se guardam as “tábuas”. E que quem recebe um testemunho sobre uma experiência que não viveu não escapa à necessidade de fazer a sua filtragem interpretativa e elaborar, por si mesmo, escolhas permanentes para preencher o puzzle entre passado, presente e futuro. No fundo, a questão, a verdadeira questão, são as fontes, as que ampliam as escolhas. Quanto mais diversas, substantivas, credíveis, e se possível contraditórias, melhor será a escolha, mais fácil é a interpretação-reconstrução.
Não é por acaso que a posição sobre as fontes divide os que temem e os que desejam o julgamento histórico (naturalmente, sobre a vertente utilitária do político). Para abreviar, olhe-se para a “querela espanhola” sobre a guerra civil e o franquismo. Quem é pelo silêncio e quem é pela investigação?
E julgo que há que haver alguma distância relativamente ao interesse e captação pelas “gerações novas” e que não dependem do voluntarismo pedagógico dos mais velhos mesmo sendo a pedagogia remédio para muitos males. A actual merece algum culto fetichista como sendo portadora do Futuro? É algum paradigma? De quê? Se a posição dominante actual for a do hedonismo, ou a do niilismo, ou a do individualismo, e dispensar os nexos históricos, quem garante que as próximas “novas gerações”, quando a actual calçar as pantufas, não vai querer encontrar o fio da meada? O problema com os documentos e os testemunhos é que estes, se não são investigados e recolhidos em tempo, perdem-se e há uma parte que é irrecuperável. Navegar à vista com o interesse e motivação das actuais “novas gerações” pode ser gratificante, sobretudo para os que ensinam, mas é um simples depósito à ordem. O futuro é mais que isso.
Permita ainda que lhe coloque duas questões, pedindo-lhe desculpa pelos transtornos em ocupação do seu tempo laborioso e precioso:
1 – É ou não certo que este blogue se pode gabar do handicap de ser olhado de lado por sectores tradicionais da guarda da memória e especialistas na sua cristalização (além dos nostálgicos da ditadura, é claro)? E esse desconforto não é prémio não procurado por não ser apologético nem prosélito e não ter uma orientação ideológica, antes ser compósito, plural e até semi-caótico na sua organização, além de desproporcionado na valia teórica e nas competências dos seus contribuintes (nos posts e nos comentários)? E, nestes sentidos, não é um contributo positivo para que o conhecimento e interpretação do passado se solte do balanço entre o monolítico e o academismo?
2 – Considera ou não que, no que toca à memória do fascismo construída pelo antifascismo, há uma re-contribuição a fazer, como pagamento de dívida acumulada pela forma como, sobretudo imediatamente após o 25 de Abril, se afunilou e simplificou a história do fascismo e do PREC, transformando-a num tempero de azeite e vinagre, destruindo as nuances e os ângulos, numa espécie simplificada de romance de polícias e ladrões (e tão canhestramente que a tornou intragável, por ser má literatura, para os mais novos, os que não viveram a ditadura)? E, pior que tudo, ao carregar-se no maniqueísmo e na simplificação, sempre com os “mesmos maus” e os “mesmos bons”, criou uma desertificação de análise e interpretação que, perversamente, acabou por atenuar as dimensões dos crimes das ditaduras e o seu prolongamento, por portas travessas, para uma parte do viver democrático?
Aceite os meus melhores cumprimentos.
Sábado, 17.Jan.2009 at 12:01:13
Desformalizando a conversa (caro João Tunes, desculpe a ironia amigável, mas última frase faz-me lembrar um requerimento, coisa que por aqui não é usual…), tento responder às questões que me coloca directamente.
– «Mas qual é a dúvida?». Nós não a temos, mas sabemos também que existe quem a tenha. O comentário não é para um de nós, mas para quem nos lê, e nem todos pensamos da mesma forma. Além disso, dentro e fora do círculo das pessoas que da história (evito a maiúscula sempre que posso) fazem a sua profissão, ainda existe muita gente com certezas. A certeza de que a sua verdade, ou verdade dos que reconhece com direito a defini-la, é «a Verdade». E para o defender desvaloriza o testemunho, principalmente o oral, porque este se questiona, se contradiz e se reconstrói a todo o momento de uma forma mais intensa que o escrito (que nem por isso será necessariamente mais «verdadeiro»).
– «É ou não certo que este blogue se pode gabar do handicap de ser olhado de lado por sectores tradicionais da guarda da memória e especialistas na sua cristalização (…)?». Sim, claro que sim, por alguns sectores, sobretudo aqueles para quem a memória serve a história e esta visa um «grande desígnio». E se para que este seja cumprido for preciso apagar ou manipular, apaga-se ou manipula-se. Mas tal não significa que a verdade de quem aqui escreve seja necessariamente antidogmática e não tenha dificuldades em dialogar com outras verdades. Até por ser do núcleo que organiza este blogue e que nele trabalha regularmente, uma das penas que tenho – e seria óptimo se conseguíssemos mudar isto (já o tenho dito em mails trocados privadamente) – prende-se com o facto de haver poucas vozes dissonantes e um discurso ainda algo geracionalmente marcado. Não estou a dizer que esse discurso é «mau», e menos ainda descartável, pois se o fizesse estaria a falar contra mim próprio. Mas sim a dizer que seria bom que pudéssemos ouvir outras formas de ler e de dizer o passado que nós próprios não praticamos porque temos o lastro que temos. Se o fizéssemos, ou quando o fizermos – dentro ou fora do blogue – veremos como certos nichos sagrados que associamos à nossa memória são relativizados. Claro que me estou sempre a referir a gente que se interessa por estes temas, independentemente do seu BI.
– «Considera ou não que, no que toca à memória do fascismo construída pelo antifascismo, há uma re-contribuição a fazer (…)?». Mas absolutamente. E, na minha modesta escala, é nisso até que, enquanto historiador de profissão, ando agora a trabalhar. O que o João Tunes diz toca o essencial: a defesa da memória e a construção de uma história viva passam pelo seu estudo sem complexos, sem compromissos, e, em consequência, pelo reconhecimento da sua complexidade (e da subjectividade contextualizada das interpretações). Pois quando lemos a história a partir de catecismos ou exaltamos a memória com actos solenes, estamos a contribuir para a sua desvalorização e o seu esquecimento.
Penso pois que com o João Tunes só tenho proximidades de análise. Se no outro comentário ficou a impressão do contrário, terá sido meu o defeito. Quanto a casos e momentos concretos, havemos de discordar em muita coisa. Felizmente, digo eu.
Anoto ainda, em relação ao comentário de José Eduardo de Sousa, que está longe de mim qualquer veleidade de superioridade da História em relação a outros saberes. Com os quais deve obrigatoriamente colaborar. Inter e transdisciplinarmente. Pelo contrário, um dos males de alguma historiografia é precisamente a sua falta de humildade e a sua incapacidade de diálogo com outras pessoas que, a partir de outras lógicas, falam das mesmas coisas.
Sábado, 17.Jan.2009 at 08:01:50
Obrigado, Rui Bebiano, pela sua generosidade em dar respostas às questões que levantei. Em estado tão agradecido me fico que me dispenso de apurar o que significa o “caro” com que me tratou.
(com saudação sem formalidades regimentais para não ofender os usos e os costumes aqui praticados)
Sábado, 17.Jan.2009 at 09:01:08
Eu tenho a percepção de que existe não só essa incapacidade de diálogo da parte de muitos historiadores, mas, parece-me mais, parece-me que esses diversos saberes, a partir de outras lógicas e falando das mesmas coisas, como diz o Rui Bebiano, são “ignorados” pelos esses mesmos historiadores. Pelo que eu tenho lido e tenho vindo a apreciar, encontro poucas excepções.
Ora dado o tempo em que se faz a História, aquele que está passando, parece-me que ela só abarca o seu objecto, com o mínimo de inverdades e deturpações, se se sujeitar, incondicionalmente , à caução “científica” de quantas das ciências sociais poderão, na medida do possível,cumprir essa função. O objecto é o mesmo, mas só um ângulo diferente poderá completar ou corrigir o que se vê de um certo ponto de vista.
Também me agradaria ver desenvolver-se uma boa e contínua discussão sobre os problemas da História dos nossos dias. Parece-me que a nossa “actualidade” o exigiria. Eu, por exemplo, bem gostaria de saber o que é uma fonte histórica, para uma História dos nossos dias.. E mais ainda um facto histórico. Etc.
Desculpe o tempo que ocupei. Vendo-o ocupado, não estou a sugerir-lhe que entre num debate deste tipo. E muito menos com a minha participação, uma vez que não tenho qualificações para tal.