O mito da ditadura «branda» do Estado Novo – desmentido em inúmeros episódios de assassinato e tortura aos opositores – torna-se verdadeiramente anacrónimo se nos confrontarmos com algumas descrições do que foi a brutalidade da actuação policial em África. Tortura na Colónia de Moçambique. 1963-1974, publicado pela editora Afrontamento em 1977, traz-nos o relato dessa realidade pela voz das vítimas. Segundo é informado no prefácio, a sua recolha deriva de um inquérito «promovido pelos juristas que, logo após o 25 de Abril, se integravam no grupo conhecido pelo nome de Democratas de Moçambique e que se propunha, dentro da então ainda colónia, divulgar os princípios da Frelimo.» Detive-me na história de Beatriz Jorge Cossa, de 23 anos, que transcrevo tal qual vem no livro. Não é fácil, mas vale a pena ler.

Causa e forma da detenção: ser casada e viver com um homem. Acusação de ser amante. Por fim, simpatizante da Frelimo.

Presa a 18 de Setembro de 1973. Já ia grávida, a filha nasceu na prisão. Se não aceitasse não comia nada nesse dia. Não teve assistência durante o parto.

Data do primeiro interrogatório: 20 de Setembro de 1973.

Forma de interrogatório a que foi sujeita:

Prenderam-na em casa, de dia, e o marido bateu-lhe. O marido chamava-se Gonçalo Macaia. Prendeu-a um africano com um motorista africano. Levou-a para a Machava e prenderam-na sozinha numa cela. Bateram-lhe. Davam-lhe má comida e más falas durante um mês. No mês seguinte, ficou doente com a comida e os maus tratos. Durante o interrogatório obrigavam-na debaixo de maus tratos a dizer que era amante de um homem da Frelimo. Durante todo o tempo que esteve presa era hábito durante a noite fazerem-lhe propostas desonestas, mexerem-lhe e serem atrevidos e se não aceitasse naquele dia não comia nada.

Os interrogatórios foram sempre na Machava. O agente que a interrogava chamava-se Rui Raposo. Tinha duas mantas para dormir. Casa de banho suja e sem água. Nasceu a filha sem assistência alguma. Quando ela ao fim dum mês saiu para o pátio pediu ao servente para lhe dar uma lâmina para cortar unhas e o cordão umbilical do bébé. Foi libertada a 3 de Maio de 1974.

Outras declarações: não lhe deram assistência e ficou suja e feia durante e depois do parto. Só depois da visita da Cruz Vermelha começaram a tratar do bébé. Mas a mãe ficou como estava. A placenta saiu – levou tempo – mas ela ainda se sente adoentada. O bébé ficou com a cabeça levemente deformada.

Quando dormia acordavam-na, nua, aos pontapés, e batiam-lhe com um pau e insultos à mistura. Ficou com desarranjos intestinais. Quando tentava falar com outros presos ficava de castigo na cela, sem comida.

Viu três pessoas saírem mortas. Viu um homem, de nome Mogoda Sitoi, urinar sangue depois dos maus tratos; não sabe se morreu.

Mora com a Rosalina Butelezi pois não tem casa. Procura trabalho.

Tortura na Colónia de Moçambique. 1963-1974. Depoimentos de Presos Políticos. Porto: Afrontamento, 1977, p.23.

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