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Acabara de me fazer “amigo” do Jaime Mendes no Facebook.  Já éramos amigos desde os anos 60, década que ganhou fama de mágica por causa dos Beatles, do movimento Hippie, da luta contra a guerra no Vietnam, da ida de Iuri Gagarine ao espaço e Neil Armstrong à Lua, do Maio de 68, da Primavera de Praga, do movimento feminista, do direito ganho pelas mulheres portuguesas (creio que só as universitárias!) à perda da virgindade sem perda da honra e outros acontecimentos que viraram o mundo do avesso.

Nesses anos 60, como muitos outros da minha geração estudávamos, namorávamos e conspirávamos nos cafés de Lisboa. Conversas cifradas e sussurradas no meio de caras desconhecidas entre as quais tentávamos adivinhar a do informador da PIDE que não deixaria de por ali andar de serviço. Procurávamos instintivamente identificá-lo, adivinhá-lo. Pela cara, pelos gestos, pelo modo de nos observar, pela sua frequência no café.

O nosso “quartel general”, era o café Pão de Açúcar na Alameda Afonso Henriques, no sítio onde ainda hoje está, mas muito diferente. Estudantes do Instituto Superior Técnico quase todos e activos associativos, frequentávamos as aulas de engenharia, e a escola superior de política e cultura, a associação de estudante. Frequentávamos a polícia de choque, correndo à sua frente e conspirávamos contra a ditadura de manhã, à tarde e à noite. O Carlos Marum, a Noémia, o Mário Lino, a Paula Correia, o Rui Martins, a Clara, o Santos Marques, o Rui Pereira, a Teresa Spranger, a Teresa Tito Morais, o Gabriel e mais alguns, a viver por perto, na casa dos pais como o Jaime Mendes ou em quartos alugados, como eu, constituíamos a guarda avançada dos “conspiradores” do Pão d’Açúcar, certos de que mais ano menos ano acabaríamos com o regime fascista ou mais dia menos dia acabaríamos na prisão. Conseguimos, quase todos, atingir as duas metas. A começar pela última, é claro.

O Jaime Mendes preparava-se na cidade universitária para ser médico que veio a ser com proficiência, fama e proveito seguindo a tradição da família, enquanto eu me familiarizava com a engenharia electrotécnica no IST a dois passos dali. Cresciam em mim então duas paixões que resultaram inconciliáveis. Uma pela Física das partículas que “esmiuçava” a matéria, outra pelo derrubamento da ditadura, independência das colónias e pela sociedade nova se dizia estar a construir o Homem Novo. Venceu esta.

Mas regressemos ao Facebook.

– Então qual é o teu blog? – interroguei o Jaime Mendes – Que ainda não tinha, faltava escolher o nome. Recentemente anunciou-me, naquela feira de “amizades” e bolsa de encontros que é o Facebook, que já velejava em velocidade de cruzeiro.

Um dos seus primeiros posts foi dedicado ao sogro, Tito de Morais, um dirigente histórico fundador do PS, político muito respeitado e carismático representante da ala esquerda do Partido Socialista.  A leitura fez-me recuar ao ano de 1973, ia eu no meu oitavo ano a viver na clandestinidade e na sexta casa clandestina, então em Odivelas. A Leonor já ia com três anos de idade (e de clandestinidade mas sem dar por isso) a Maria esperava o José para Março do ano seguinte.

O post do Jaime conduziu-me ao histórico e clandestino primeiro e único (antes do “25 de Abril”) encontro de delegações do Conselho Directivo do Partido Socialista, recém- constituído e do Comité Central do PCP, em Paris. O “Comunicado Comum” saído da reunião e publicado no Avante clandestino de Outubro de 1973 (na imagem) refere como data o mês de Setembro mas não oferece, por causa da PIDE, mais nenhuns dados, nem o dia, nem o país ou a cidade onde teve lugar ou a composição das delegações.

Sei que a reunião foi em Paris porque participei nela e lembro-me bem de que ocorreu na manhã de 12 de Setembro de 1973, como explicarei.

O encontro realizou-se numa escola situada numa “mairie” do PCF disponibilizada por este partido “irmão” para esse encontro. A situação clandestina de Cunhal, a presença da PIDE em Paris e as ligações desta, segundo se cria, aos serviços secretos franceses obrigava a cuidados especiais. Foi assim que fui a um encontro com Mário Soares em local previamente combinado pelos partidos para o conduzir ao local da reunião. Foi à saída de uma estação de Metropolitano pelas 8h da manhã, com senha e contra-senha.

Recordo muito bem a data porque Mário Soares me informou, muito consternado, o que se tinha acabado de passar, na madrugada de 11 de Setembro, no Chile. O golpe militar de Pinochet e o assassinato do presidente Salvador Allende. Não podíamos adivinhar os 20 mil mortos que se seguiriam às mãos dos golpistas e da feroz ditadura que travou os primeiros passos do que se esperava vir ser a primeira experiência mundial de uma revolução socialista pacífica e assente em eleições com base numa aliança entre comunistas e socialistas que levaram o socialista Allende a presidente da República.

Uma aliança destas com resultados tão decisivos e auspiciosos no Chile parecia-me, tendo em conta as desavenças entre comunistas e socialistas portugueses, surpreendente e utópica em Portugal. Não diga isso, respondeu-me um dirigente do PC Chileno com quem estivera um ano antes. Olhe que nós também. Ainda poucos anos antes da aliança confrontávamo-nos violentamente, cada qual na sua trincheira de inabaláveis razões.

Na conversa com Mário Soares a caminho do encontro conversámos também sobre as movimentações que ocorriam nas Forças Armadas Portuguesas e sobre Spínola.

Há coisas de que me lembro perfeitamente mas outras, aparentemente mais fáceis de guardar não consigo recordar, por exemplo a exacta composição da delegação do PS. Além de Mário Soares lembro perfeitamente a participação de António Macedo mas não do terceiro membro da delegação. Tito de Morais? Ramos da Costa?

Há um momento que me ficou gravado impressivamente na memória. Discutia-se o conteúdo do documento que era suposto ser aprovado ali pelos dois partidos e do qual se esperava o maior impacte em Portugal, nos limites dos circuitos clandestinos e da boca a boca porque a censura não dava lugar para a mínima notícia de tal acontecimento, nem rádio, nem jornais e muito menos televisão. A não ser nas ondas curtas da Rádio Portugal Livre (do PCP a partir de Bucareste), da Rádio Voz da Liberdade (da Frente Patriótica de Libertação Nacional, com a voz de Manuel Alegre, a partir de Argel), da Rádio Moscovo ou da BBC.

Esse encontro criou uma grande expectativa, tanto maior quanto se sabia da dificuldade de relacionamento entre o PCP e PS e se pressentiam novas e talvez decisivas dificuldades do regime e do Governo de Marcelo Caetano exposto ao descontentamento dos capitães com a continuação infindável das guerras coloniais.

A certa altura da reunião, Cunhal defendia que no documento ficasse explícito que ambos os partidos “reconheciam o direito à independência total e imediata das colónias portuguesas” onde a guerra durava há 12 anos. Macedo levantou objecções. Algumas “sensibilidades” do PS recusavam a admissão, assim sem mais nem menos, da “independência total e imediata” das colónias. Mas Mário Soares interrompeu António Macedo e garantiu que o PS estava de acordo e poderia ficar assim no comunicado.

Muitos anos depois, aí pelos anos 90, relatava eu isto num debate, creio que na SIC, quando um dos participantes, antigo dirigente político de partido radical me interrompeu com um aparte

– Lá estás tu a branquear o Mário Soares.

Respondi-lhe que lamentava desiludi-lo mas que fora assim que as coisas se passaram.

Reparei também – voltando a 12 de Setembro de 1973 – que Cunhal já trazia o comunicado muito preparado e apenas fez ali algumas alterações propostas por Mário Soares. Operacionalidade, evitando assim nova reunião (clandestina) para a redacção final do documento, e quiçá, mais propostas de alteração.

Lembro-me que a manhã não estava radiosa do Sol português. Paris mergulhava numa atmosfera cinzenta que diminuía o fulgor da mais bela capital do mundo.  Mais bela…  talvez depois  de Lisboa e Nova York. Há opiniões.

Tinha vindo a Paris para uma reunião secreta do Comité Central do PCP que decorrera algum tempo antes e que aprovou um longuíssimo documento intitulado “Por uma grande campanha política de massas (PELA LIBERDADE, PELA FIM DA GUERRA COLONIAL, POR UMA VIDA MELHOR). Fiquei mais algumas semanas retido por uma agenda (como hoje se diria) que incluía várias tarefas incluindo este encontro com o PS.

Ainda estive mais uma vez com Álvaro Cunhal antes de partir para Lisboa, por Biarritz, de comboio, para San Sebastian em autocarro turístico. Daqui, de novo, de comboio até Puebla de Sanabria, próximo de Bragança, depois para o outro lado da fronteira em Portugal a pé por caminhos serranos guiado por um “passador” de pé rápido e pouca conversa como convinha a quem não quer ser identificado e me deixou, num descaminho de macadame, num carro do aparelho de fronteira do PCP, que me levou a Bragança. Aqui esperava-me o meu amigo Pedro Ferreira que me trouxe até Lisboa. Para entrar em casa ainda meti táxi, meia hora a pé e verificação em local pré-estabelecido do sinal de “casa em segurança” posto nesse dia pela Maria que teve de se aguentar sozinha com a nossa filha durante mais de um mês em que andei por fora.

Viagem pouco prática? Talvez. Mas segura. Foi assim, com cautelas e caldos de galinha, disfarces e sustos que me desencontrei da PIDE durante dez anos em Lisboa e arredores. Uma das vezes até aluguei uma casa numa rua do Bairro da Beneficência bem perto do sinistro e mítico, José Gonçalves, chefe de brigada, da PIDE. Era um bom truque. Ali ao lado dele a polícia não desconfiaria. Mas foi sem querer, confesso. Só na primeira visita do “controleiro” Ângelo Veloso, fiquei a saber, quando arregalou os olhos “passado” com a minha decisão. Foi então que me socorri daquela estulta explicação.

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