No dia 1 de Janeiro celebra a Igreja o Dia da Paz. Por uma Mensagem do Papa, datada de 8 de Dezembro, e uma pastoral colectva dos bispos portugueses, do dia 13, são os católicos convidados a participar nas celebrações desse dia e na respectiva vigília.

1. A nota pastoral, em que se alude de passagem à «situação de guerra em que nos encontramos», revela mais uma vez a realidade do compromisso político da Igreja frente ao Estado. Por exemplo, quando refere «os povos ultramarinos que integram a Nação Portuguesa», toma partido pela tese do Governo, que está na origem mesma da guerra; ou quando utiliza a equívoca analogia de Paulo VI entre pacifismo e cobardia, fazendo sua a respectiva aplicação ao caso português; ou ainda quando aponta implicitamente como único remédio para a guerra o desenvolvimento dos territórios, passando por cima da recomendação expressa e insistente do Papa, em relação a qualquer conflito: «O entendimento, as negociações, a arbitragem a que devem intercorrer nas relações difíceis entre os homens; não o ultraje, o sangue ou a escravidão», como voltou a declarar na mensagem citada. Deste modo, a fórmula da Populorum Progressio, «o desenvolvimento é o nome da Paz», pode servir para escamotear o grave problema com que nós, portugueses estamos confrontados – o de um estado de guerra que se arrasta há oito anos e que ameaça prolongar-se indefinidamente; guerra de que muito pouco nos é dado conhecer, quanto às suas verdadeiras causas e em toda a extensão dos males, das destruições e dos sofrimentos incomensuráveis que tem provocado e continua a provocar.

 2. Sabemos que a Paz a que a Igreja nos exorta tem inumeráveis sentidos e desdobra-se em múltiplos aspectos. Para os portugueses, porém, neste momento, a paz tem de ser primordialmente referida – e sem rodeios – à guerra em que estamos envolvidos e de que temos, pelo menos, uma parte da responsabilidade. Tratar da paz nas consciências, da paz nas famílias, da paz na sociedade, da paz no mundo em geral, deixando para segundo plano a paz real e concreta que nos recusamos a procurar desde há oito anos, aparece-nos como aviltante hipocrisia e como grave injúria a todos os que sofrem e morrem e a todos os que continuarão a sofrer e a morrer.

 3. A verdade é que todos nós nos deixámos instalar nesta guerra; que a admitimos como inevitável e imposta; que nos acobardamos sob a desculpa dos riscos que corre quem ousar pôr dúvidas à sua justiça e à sua legitimidade; que somos todos cúmplices de uma conspiração de silêncio à sua volta. Na verdade, procuramos fazer a nossa vida normal e considerar em paz a nossa consciência enquanto em África aldeias inteiras são arrasadas, populações dizimadas, prisioneiros porventura torturados e assassinados; enquanto homens, mulheres e crianças ficam estropiadas física ou moralmente para toda a vida; e , enquanto, mesmo entre nós, milhares de jovens continuam sem acesso a um ensino adequado, populações inteiras sem assistência médica suficiente, multidões de operários sem possibilidades de trabalho na sua pátria.

 4. Nestas circunstâncias, a celebração do Dia da Paz aparece como uma oportunidade para nos despertar e como um apelo à nossa dignidade e à nossa coragem. Vala a pena tomá-la a sério. «a Paz é o dever da História presente», diz Paulo VI. E é-o tanto mais para nós, se atentarmos no lema proclamado para este ano: «A PROMOÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM, CAMINHO PARA A PAZ». Porque temos razões para crer que a guerra que sofremos e que fazemos em três territórios tem nas suas causa e na sua manutenção um claro e persistente desrespeito por esses direitos.

 5. Como responder então ao apelo da Igreja? Muito simplesmente: procurando tomá-lo a sério. Recusar as fórmulas evasivas em que só a oração abstracta e desencarnada esteja presente e procurar com seriedade o sentido cristão da responsabilidade  e do empenhamento pessoal e colectivo, tentando:
– conhecer melhor e adquirir consciência dos males da guerra;
– discutir as «nossas» razões;
– conhecer, e discutir também, as razões dos «outros»,
– assumir o compromisso de trabalhar concretamente pela paz e ver como;
– começar mesmo a fazê-lo. 

6. Vamos fazer isto, enquanto cristãos, e numa igreja, com a convicção de que não estaremos a fazer política – embora o que façamos tenha inevitavelmente incidências políticas. Fazer isto é o que nos permitirá confirmar a nossa fé e continuar a viver em Igreja com um sentido. Fazer isto é aceitar o risco, a dificuldade, a insegurança, a ambiguidade e contradições que tem todo o gesto humano significante. Fazer isto é, finalmente, procurar corresponder à palavra do Senhor, tomando à letra a exortação da Hierarquia. E convirá que cada um de nós tenha bem presente:
-se o inquieta ou não o silêncio de que é cúmplice, ano após ano, e se lhe é possível continuar a suportá-lo;
– que rejeitemos a inevitável acusação de que estaremos a servir-nos da protecção da Igreja e da sua situação de privilégio no nosso país, pois não é um oportunismo cobarde que nos motiva, mas a exigência de viver no concreto a Fé em Cristo;
– que temos sido acusados de não pormos ao serviço da comunidade portuguesa as obrigações que temos como católicos e as possibilidades que os são dadas como tais. 

E finalmente devemos estar conscientes que a participação nesta acto não significará escapatória a trabalharmos como portugueses ao lado dos nossos concidadãos não cristãos na luta pela Paz, mas antes será um compromisso para um maior empenhamento nessa luta.

Lisboa, igreja de S. Domingos, 1 de Janeiro de 1969

DIA MUNDIAL DA PAZ