Os «Caminhos da Memória» suspendem hoje a sua publicação. Começámos este projecto há quase dois anos, procurando corresponder às expectativas de todos os nossos colaboradores e leitores, e é por não querermos defraudá-las que a maioria de nós faz esta escolha: consideramos que o modelo que adoptámos está de certo modo esgotado e que seria necessário adoptarmos um outro para o qual não estamos neste momento preparados.

Como acérrimos defensores da preservação da memória que todos somos, poderemos vir a iniciar outros projectos e continuaremos entretanto a actuar nesse sentido, nas várias arenas em que nos movemos. Incluindo nestas, naturalmente, outros blogues nos quais participamos.

Por ironia trágica do destino, os últimos textos que publicámos incidiram sobre a morte de um dos nossos colaboradores da primeira hora – o José Luís Saldanha Sanches -, quase que em jeito de homenagem e recordando-nos simultaneamente a finitude dos seres e das coisas.

(O blogue manter-se-á em linha, intacto, como se de um livro se tratasse, podendo continuar a ser consultado e/ou citado. Porém, os comentários que possam ser introduzidos a partir de agora não serão publicados, nem haverá respostas aos anteriores.)

14/5/2010. Acaba de ser conhecida a morte de José Luís Saldanha Sanches, colaborador dos «Caminhos». Em jeito de homenagem, republicamos esta entrevista datada de 2008.

 
A Pública de ontem divulgou uma extensa e notável entrevista com Maria José Morgado e José Luís Saldanha Sanches. Com o consentimento deste último, colaborador regular deste blogue, reproduzimo-la na íntegra. Porque muitos leitores poderão não a ter lido e também porque nos parece importante que ela permaneça acessível num blogue com as características dos Caminhos da Memória.

 
Pública, 5/10/2008, Entrevista de Anabela Mota Ribeiro

Ela era a “renegada Morgado” e ele tinha o nome escrito nos muros de Lisboa: “O povo libertará Saldanha Sanches.” Depois desistiram da revolução, tiveram uma filha, descobriram com ela um mundo. Guardaram o inconformismo, a militância. Maria José Morgado e Saldanha Sanches ainda são revolucionários?

Eles já se permitem falar de fraquezas pequeno-burguesas. Como ter sentimentos, ter uma filha, a relação com a infância. Eles já se habituaram a vivê-las. Fazem imensa troça do radicalismo de um tempo – que é a forma de olharam para si, agora, e aceitar que foram outros. São desiludidos maoístas. São descrentes.
José Luís Saldanha Sanches, o fiscalista, não falou de Fiscal. Maria José Morgado, a procuradora incorruptível, não falou de corrupção. Falaram de uma coisa geracional. De um despertar colectivo que começou com a campanha de Delgado, e o apanhou a ele, mais velho. De um movimento que a fez despertar, a ela, na faculdade. Um movimento que apetecia. Foram um casal MRPP. Deixaram de ser MR’s e continuaram a ser um casal.

Num domingo à tarde, recuperaram as memórias de um tempo. Com ironia. Com distância. Com paixão. Talvez eles ainda sejam os mesmos. Sendo outros.
Já não são homofóbicos. Ela pinta os olhos. Ele sonha que está preso e que há nisso alegria. O mote era: “Vida simples, luta dura.” Tudo mudou e tudo ficou na mesma.

Se a vossa filha contasse a vossa história – a do vosso encontro, a do período revolucionário – contaria o quê?
Maria José Morgado (M.J.M.) – Responde tu.
Saldanha Sanches (S.S.) – Ela sabe pouco disso. Quem lhe fala mais do nosso passado revolucionário são as avós. Nem sabemos bem o que ela sabe a esse respeito. Ela é de outra geração, que reage mal à doutrinação.
M.J.M. – Ela ficou um bocado quixotesca, como nós. Penso que isso não é produto da educação, vem no sangue. Nós não somos pessoas viradas para o passado.

Porque é que foram as avós a contar-lhe e não os pais?
S.S. – Não acho adequado. Sobretudo porque ela tem a mesma rebeldia que nós tínhamos. Recusa os valores dos pais.
M.J.M. – Foi muito difícil para ela. Queria contestar os valores dos pais, mas foi sempre uma contestação falhada. O que é curioso é que a miúda sempre mostrou um grande apego por valores que estão fora de moda – liberdade, integridade, generosidade. A prisão, a repressão, a falta de liberdade, a PIDE ir buscar-nos a casa, as cartas que escrevi ao meu marido quando ele estava na prisão e as que ele me escreveu a mim… Os meus sogros passaram pelo menos seis anos da vida deles a caminhar para Peniche ao fim-de-semana; a minha sogra não tinha outro programa; e o resto da semana era para preparar a viagem: levar roupa lavada, os livros que podiam entrar, e pensar nisso. Isso marcou toda a família. A minha mãe também foi depois visitar-me à prisão e foi treinada nessas visitas pela minha sogra. Isso deixou-lhes uma marca de angústia e sofrimento inultrapassável. Isto fazia parte das histórias de criança que contavam à miúda.

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Um texto de José Augusto Rocha (*)

Com a partida de Saldanha Sanches para as longínquas paragens do além, desaparece um cidadão que foi um grande exemplo de coragem, de dignidade e de lucidez e que soube libertar, desde a juventude, o coração de toda a inércia da indiferença. Desaparece alguém que soube dizer sim à fraternidade e ao amor e que na memória dos amigos nasce todos os dias, manhã cedo.

Foi vasta, dura e persistente a luta política de Saldanha Sanches e quando chegou a alvorada do 25 de Abril, estava preso e ia ser julgado no Tribunal Plenário, no seguimento de um despacho de pronúncia, de 1 de Fevereiro de 1974, subscrito pelo Juiz, Serafim das Neves. Militava então no MRPP, organização que o despacho de pronúncia descrevia como “uma organização embrionária do futuro Partido Revolucionário do Proletariado Português e rege-se, quer na sua linha política, quer nos seus métodos organizativos, pelas doutrinas e teorias do marxismo leninismo, adaptando na sua actuação prática os princípios básicos dos processos revolucionários de Lenine e Mao-Tsé-Tung.”

A acusação, para fazer o enquadramento dos crimes contra a segurança do Estado, prosseguia, dizendo: “ sendo portanto uma organização de índole comunista do tipo marxista-leninista-maoista e que preconiza a luta armada, adaptando ainda métodos anarquistas na prossecução da sua actividade e visa como seu principal objectivo, conseguir por meios violentos, quer pela insurreição armada, quer por táctica de guerrilha, o derrube do regime vigente com a consequente alteração da Constituição Política.

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O Zé Luís foi um dos primeiros heróis que conheci. Meses antes de eu chegar à Faculdade, fora apanhado pela polícia durante uma distribuição de comunicados, resistira à prisão e fora baleado. Foi aos gritos de “Liberdade para o Saldanha Sanches” que pela primeira vez participei numa manifestação, no dia do seu julgamento.

Condenado à prisão já sofrida de dez meses, saíu imediatamente. Algum tempo depois, voltaria a ser preso, por poucos dias, na Cantina da Cidade Universitária, e expulso da Universidade por quatro anos.

Passou então à clandestinidade e voltou a ser preso e condenado a três anos de prisão e aplicação de medidas de segurança. Reencontrei-o durante as minhas visitas ao Alexandre Oliveira, em Peniche. Por vezes ouvia, do outro lado do vidro, as suas gargalhadas inconfundíveis.

Depois do 25 de Abril, durante as perseguições ao MRPP, passou alguns dias em minha casa. Era um clandestino exemplar: ajudava na cozinha, lavava a louça e, embora tivesse uma arma, deixava-a fora do quarto que partilhava com a minha filha de poucos meses.

No início dos anos 90, entrevistei-o para a série “Geração de 60”. Tinha mudado bastante, mas afirmava a sua alegria ao olhar para trás e saber que tinha participado na luta para mudar o país: “Acho isso uma alegria permanente na vida de uma pessoa.” Mesmo se o impediu de outro passado: “Namorar, sair à noite, beber um copo de vez em quando.” “Mas”, terminou, “a vida é sempre uma coisa finita, há sempre um número infinito de formas de a usar bem e só se pode usar de algumas formas, não é?”

Um texto de Justino Pinto de Andrade

(UM DIA ALGUÉM ESCREVEU NOS MUROS DE LISBOA:
“O POVO LIBERTARÁ SALDANHA SANCHES”)

Dedicatória:
Aos meus amigos, Diana Andringa e Fernando Rosas, seus amigos e companheiros de longa data. À Doutora Maria José Morgado, esposa de tantos anos e de tantas caminhadas.

1. A morte do Professor Saldanha Sanches é mais um momento de dor. É mais uma vela que se apaga dos tempos da minha juventude. Ele em Portugal, e nós aqui, em Angola, lutámos todos contra o regime injusto e anacrónico que nos oprimia. Somos, pois, contemporâneos das mesmas causas: a luta contra o colonialismo e contra o fascismo que alimentava e se alimentava do colonialismo.

2. Poucos dos que me ouvem (ou lêem) sabem quem foi Saldanha Sanches, já porque ele não era angolano e porque também, nos últimos anos, limitou a sua intervenção pública quase apenas à análise política e económico, em alguns dos órgãos de comunicação social de Portugal.

3. Saldanha Sanches era um brilhante professor de Direito Fiscal e de Finanças Públicas na Universidade Clássica de Lisboa, também na Universidade Católica Portuguesa. Desligado do activismo político directo, continuou, ainda assim, a ser um referencial da democracia e da luta pela democracia portuguesa. Sempre que estivessem em jogo grandes decisões como, por exemplo, actos eleitorais, lá ele surgia a público, dando opinião sobre os actores em concorrência, sobre as propostas políticas, sobre as razões que estavam por detrás das propostas. Comunicava, também, a sua opção de escolha. Ele não era, pois, um absentista da política. Estava sempre atento.

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A vida habitua-nos sem nos habituar a estas notícias, sobretudo quando a velhice nos disputa o viço não perdendo oportunidade de nos corroer as bengalas com que nos apoiamos mais no chão falso da memória que na esperança do projectar, fazer e transformar. A razia de companhias, afectos e admirações já me tocou funda na família (com os adeus dolorosos dos meus pais e de dois irmãos), no meu escritor de culto (José Cardoso Pires), no meu cantor de toda a vida (José Afonso), no amigo que continua na palma da minha mão (o Zé), no único militar profissional de quem fui amigo e tombou em combate de uma forma vil (o major Passos Ramos), no líder político que mais admirei e mais detestei, no meu contraditor político mais estimado e com quem trocava vivas picardias blogosféricas sem o saber ferido por doença implacável (o Jorge Ferreira). Sei que esta lista, nas suas várias qualidades, vai aumentar nos dias que me restarem. Até que uns poucos me digam adeus em saudade rápida porque mais não mereço e assim ficarei aliviado de chorar mais perdas de companhias e referências.

Foi-se o Saldanha Sanches. Não tenho competência para avaliar a dimensão da perda do professor e do fiscalista. E há muito que, politicamente, ele não me impressionava. Respeitava-lhe e admirava a sua frontalidade truculenta e era tudo, o que, nos tempos que correm e segundo as minhas medidas, não era pouco. Mas a perda de Saldanha Sanches acrescenta um novo capítulo no meu índice de baixas. Curtido nas perdas de familiares, amigos, pessoas de culto, faltava-me o género desta perda, o de um companheiro de cela em Caxias. Numa vaga repressiva sobre a contestação estudantil em 1965, um leque seleccionado pela PIDE entre os estudantes contestatários foi encaminhado para a Prisão de Caxias. Eu e a maior parte éramos novatos mas, na minha cela, Saldanha Sanches auto-emergiu como o mais experimentado (já tinha sido preso e baleado) e assumiu-se logo ali como responsável pela cela prisional, distribuindo tarefas e organizando uma lista de reivindicações. Foi breve essa passagem pelos calabouços da PIDE, tanto que nem consta do largo currículo prisional de Saldanha Sanches. Enquanto Saldanha Sanches me “chefiava” em Caxias pela minha insignificância de “preso político de base”, cá fora, no desassossego das famílias dos encarcerados pela PIDE amontoadas às portas da António Maria Cardoso, Esmeralda, a minha irmã mais velha e minha mãe substituta, uma camponesa urbanizada que sempre me reprovava “meter-me em política”, acartando um farnel, impetuava desabridamente, com o seu espírito transmontano, contra os pides de serviço, exigindo a devolução imediata do seu “maninho” e garantindo-lhes que dali não saía enquanto a devolução exigida não se concretizasse. Foram os pais de Saldanha Sanches, já batidos nas anteriores reclusões do filho, usando a sabedoria da experiência, que acalmaram e enquadraram a impaciência dorida da minha irmã. E até eu ver a luz do sol na saída da António Maria Cardoso, os pais de Saldanha Sanches não faltaram um momento no acompanhamento da minha irmã que sofria aquela prisão com a surpresa revoltada de quem nada entendia da necessidade e utilidade de haver quem combatesse a ditadura que ela entendia como uma fatalidade eterna, quase um sortilégio da natureza. Ou seja, enquanto eu em Caxias me subordinava ao “posto por experiência” de Saldanha Sanches, o mesmo género de hierarquia estabelecia-se, cá fora e na cadeia das dores afectivas, entre os nossos familiares. São coisas que a amnésia não corrói.

Até sempre, Saldanha Sanches.

(Publicado também em Água Lisa)

Alguns posts relacionados com os objectivos deste blogue. Notícias ou textos mais descomprometidos (ou não…) do que os habituais e que talvez ajudem alguns a navegar por outras paragens.

 

Memórias do «GOLPE da SÉ» – Três protagonistas, três testemunhos

 

I Curso de Verão de História da República: Republicanos‏

 

A.A.B.M. – João de Deus Ramos

Extracto da comunicação apresentada no Congresso «Guerra colonial e descolonização», Lisboa, 15 e 16 de Abril, Organização da Assoc. 25 de Abril, IHC da Univ. Nova de Lisboa e ISCTE.

Diz-se que os povos felizes não têm história. É talvez porque nos queremos imaginar um povo feliz, que lidamos mal com a história, o que faz de nós uma sociedade distraída e de curta memória. Sobretudo para os episódios mais traumáticos, como aquele que Eduardo Lourenço chamou a ‘mais refinada e incomunicável das nossas tragédias actuais: a guerra colonial’.

O recalcamento é a resposta directa a esta incomunicabilidade, mas apresenta-se em graus e formas bem diversos, desde a pura negação da tragédia, até à dispersão do seu sentido mais fundo e real, em mil pequenos sentidos reconfiguradores dessa dura realidade.

Nesse contexto se produziu todo um complexo glossário feito de expressões oblíquas, enredadas de subtilezas, metáforas, ambiguidades, analogias, e até estranhos jogos de ironia e de sarcasmo que, impostas pela Censura no próprio decurso do conflito, persistem como precioso mas contraditório reservatório de experiências vividas e, como tal, marca identitária de sobrevivência individual e grupal. Veja-se, por exemplo, os regulares encontros de batalhões e companhias que cumprem um estranho ritual de ‘catarse em grupo’, escape para muitos silêncios, que só ‘quem lá esteve’ pode entender. O que significa que, no limite, não falamos da mesma coisa quando falamos de Guerra Colonial.

A começar pelo regime político que a impôs e que sempre se recusou a nomeá-la assim, mas antes Guerra do Ultramar. Para ele não havia guerra, mas uma revolta cruel, bárbara e ilegítima, a exigir uma resposta exemplar. Os militares, portanto, não iam para uma guerra, mas em ‘missão de soberania’, e combatiam não movimentos nacionalistas de libertação, mas bandidos desprezíveis ou terroristas.

Também no interior do universo militar surgiram hábeis e criativas operações semânticas para não chamar as coisas pelos nomes. Os mobilizados que chegavam de novo eram, por exemplo, maçaricos para Angola, os checa-checa para Moçambique e os piriquitos para a Guiné (‘piriquito é pior do que terrorista’, dizia-se em jeito de boas vindas…). Os oficiais do Estado-Maior eram oficiais de alcatifa ou ar condicionado, a metralhadora do inimigo era a costureirinha… e por aí fora… Guerra a sério, não havia, pois o significado, paradoxalmente, era deslocado do seu verdadeiro contexto, para zonas periféricas. Havia, assim, pequenas guerras: nas repartições, nas messes, nos hospitais, nas lojas e mesmo nos espaços de convívio públicos ou privados, onde o apelo à normalidade mais se fazia sentir. Aí sim, fazia-se a guerra, pequena, banalizada, e até parodiada.

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A ler:
Luís Graça, Há 40 anos o Papa Paulo VI recebia em audiência privada, em 1 de Julho de 1970, Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos

Seguíamos num Volkswagen: eu acompanhava-os, até ver. O Alfredo Noales era jornalista do jornal República e tinha recebido do chefe de redacção a incumbência de fazer a reportagem. Para a censura cortar, inevitavelmente, de alto a baixo, claro. Ao seu lado, um amigo nosso, um camarada. No banco de trás seguia eu, impaciente, receosa.

Nas vésperas, tinham sido lançados panfletos por toda a cidade, chamando o povo a comemorar o 1º de Maio, a manifestar-se. Se a ditadura proibia toda e qualquer manifestação, “o primeiro de Maio” era assunto subversivo, cuja referência em lugar público, só por si, podia valer prisão. Nos últimos meses, reuniões e mais reuniões, lá em casa, tudo muito discutido, muito preparado, à porta fechada, mas nada passara por mim. Eu apenas sabia que algumas dezenas de brigadas clandestinas, furtivamente e durante noites e noites, iriam cobrir de propaganda a cidade de Lisboa e os arredores. Papéis, aos milhares, por todos os sítios: apelos à manifestação contra o regime e informação acerca das greves que, nos últimos meses, despontavam, umas a seguir às outras, nas empresas dos arredores.

Chegámos à Praça do Comércio uns dez minutos antes das 6 horas. Primeiro de Maio de 1962. Uma data histórica – que persiste em sobrar-me, em ficar-me para trás, sempre que quero escrever sobre a resistência ou sobre a repressão fascista. Talvez por ter sido a única vez que, em idênticas circunstâncias, passei mesmo ao lado da morte. “A-ssa-ssinos! A-ssa-ssinos! – Não se tratava de um grito demagógico, eles eram realmente assassinos.

O nosso carro ia devagar. As ruas estavam praticamente desertas e, olhando para as lojas e para os cafés, a óbvia normalidade assustou-nos. Estaríamos à beira de um fracasso? Era aquele o resultado de tanto trabalho de organização, tantos meses a fio? “Tem calma, Lena, ainda não são 6 horas!” Tanta reunião, tanta agitação, e um ambiente explosivo, no crescendo das greves, iria dar, assim, em nada? Seria que o povo não tinha coragem de assumir nas ruas o descontentamento que vinha manifestando à boca calada, e que já revelara, de forma tão convicta, tão expressiva, nas eleições do Delgado? Afinal, onde estaria esse povo? “Tem calma, Lena, ele vai aparecer!”Amedrontara-se? Não se atreveria a enfrentar as forças policiais que os estudantes haviam já defrontado, por mais do que uma vez, durante esse ano?

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Portugal

Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me

sentir como se tivesse oitocentos

Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater

os infiéis ao norte de África

só porque não podia combater a doença que lhe atacava

os órgãos genitais

e nunca mais voltasse

Quase chego a pensar que é tudo mentira

Que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney

E o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente

Portugal

Não imaginas o tesão que sinto

Quando ouço o hino nacional

(que os meus egrégios avós me perdoem)

Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo

Anda na consulta externa do Júlio de Matos

Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar

àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera

um futuro de rosas

Portugal

Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos

a ver se contraía a febre do império

mas a única coisa que consegui apanhar

foi um resfriado

Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr encontrar

uma pétala que fosse

das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador

Portugal

Se tivesse dinheiro comprava um império e dava-to

Juro que era capaz de fazer isso só para te ver sorrir

Portugal

Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém

Sabes

Estou loucamente apaixonado por ti

Pergunto a mim mesmo

Como me pude apaixonar por um velho decrépito

e idiota como tu

mas que tem o coração doce, ainda mais doce

que os pasteis de Tentúgal

e o corpo cheio de pontos negros

para poder espremer à minha vontade

Portugal estás a ouvir-me?

Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete

Salazar estava no poder

nada de ressentimentos

O meu irmão esteve na guerra tenho amigos que emigraram

nada de ressentimentos

um dia bebi vinagre

nada de ressentimentos

Portugal depois de ter salvo inúmeras vezes os Lusíadas

a nado na piscina municipal de Braga

ia agora propor-te um projecto eminentemente nacional

Que fôssemos todos a Ceuta à procura do olho

Que Camões lá deixou

Portugal

Sabes de que cor são os meus olhos?

São castanhos como os da minha mãe

Portugal

gostava de te beijar muito apaixonadamente

na boca

Jorge de Sousa Braga, O Poeta Nú, Ed Fenda, 1991

Um texto de Jorge Martins (*)

RODRIGUES – A MAIOR FAMÍLIA SABUGALENSE – Tal como para os Henriques, podemos estabelecer dois períodos para os Rodrigues. O primeiro, entre 1544 e 1704, em que os réus naturais do Sabugal acabariam presos fora do concelho de nascimento. E o segundo, entre 1704 e 1752, em que os réus presos no Sabugal nasceram sobretudo noutros concelhos, mas alguns deles já haviam nascido no concelho, o que revela algum regresso dos Rodrigues ao Sabugal.

Com efeito, entre 1544 e 1704, os Rodrigues nascidos fora do Sabugal foram presos em Pinhel (3), Penamacor (2), Almeida (1), Guarda (1). Entre 1704 e 1752, os Rodrigues naturais do Sabugal foram presos no próprio concelho (6), na Guarda (7), na Covilhã (2), em Viseu (2), no Rio de Janeiro (1), em Seia (1), no Fundão (1), em Miranda (1), em Beja (1), em Lisboa (1), em Tavira (1), em Valladolid (1), na Galiza (1).

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Hitler e o povo

Continua a imperar a interpretação da ascensão e da apoteose do nacional-socialismo como resultado da iniciativa tenaz e carismática de Adolf Hitler, combinada com a actividade de alguns companheiros de missão que o secundaram na direcção infalível de uma política externa belicista e de uma actuação interna ultra-autoritária. Outras explicações associam também a ascensão do nazismo e a afirmação do seu lado mais odioso a uma política de anti-semitismo sistemático que conduziu à Solução Final e à consumação do Holocausto. Pode por isso dizer-se que a historiografia do nazismo e da Segunda Guerra Mundial tendeu a produzir interpretações que de alguma forma foram reduzindo a responsabilidade colectiva da maioria do povo alemão, muitas das vezes apresentado como vítima de um logro arquitectado por uma minoria de delirantes inflexíveis. Aliás, terá sido este princípio, rapidamente fixado após o final da guerra, que fez com que um grande número de responsáveis do aparelho nazi ou seus colaboradores pudesse ter ficado isento de qualquer processo formal de culpabilização, vivendo o resto dos seus dias como respeitáveis e intocáveis cidadãos do regime democrático.

Foi o facto desta leitura dominante ter sido questionada pelo historiador e jornalista alemão Götz Aly que de imediato transformou O Estado Popular de Hitler, quando da sua saída na Alemanha, em objecto de comoção pública e de intensa polémica. Desde logo, porque Aly se esforça por provar que foi uma articulação entre os interesses materiais da maioria dos alemães e as políticas agressivas do regime que permitiu a este erguer-se e afirmar-se. Mas também porque, de um modo algo paradoxal, esta atitude pôde desenvolver-se mais em função da aplicação da vertente «socialista» do Nacional-Socialismo do que do seu programa «nacionalista», aparentemente mais visível. Apoiado em fontes procedentes de organismos estatais de gestão económica e militar, este estudo detalha o modo como o governo nazi instaurou uma relação de cumplicidade entre a promoção dos interesses materiais da maioria dos alemães e a aceitação, por parte destes, da política antijudaica (os bens nacionalizados ou pilhados dos judeus financiaram em larga medida o esforço militar germânico), da agressão contra outros países (transformados em áreas de colheita de bens roubados ou produzidos a baixo custo) e do ataque sistemático contra as populações conquistadas (em larga medida transformadas em mão-de-obra barata destinada a alimentar as necessidades do alemão comum). Neste sentido, Aly cria uma nova associação entre nazismo e práticas sistemáticas de pilhagem. E mostra também de que modo o povo alemão retribuiu, com o seu entusiasmo pelo projecto hitleriano e um elevado empenho no esforço de guerra, o estado de prosperidade que lhe foi oferecido de mão-beijada.

Publicado na revista LER de Abril

Götz Aly, O Estado Popular de Hitler. Roubo, Guerra Racial e Nacional-Socialismo. Trad. de Ana Schneeberger. Texto, 464 págs.

O Tenente Aviador Aparício, lenço azul ao pescoço e ar de quem está meio cá meio lá, entre a terra e o céu, aterrou a Dornier na pista de terra batida de Catió. Quando o primeiro militar que o foi receber o saúda, dispara, rindo-se, “Então, aqui bebe-se?”. Claro que sim. Quem ia deixar o Tenente Aparício morrer de sede? O aviador é levado, de jipe, ao bar de oficiais e são-lhe servidas as melhores iguarias disponíveis, acompanhadas de cervejas bem geladas. Sabia-se deste voo que era, aliás, aguardado ansiosamente há vários dias. Os aviadores eram sempre recebidos como VIPs na messe de oficiais do batalhão de Catió, quartel que, na maior parte do ano, só tinha ligações com o exterior pelo ar. Na época das chuvas, o aterrar de um avião ou de um heli era sempre motivo especial e comportava a emoção de confirmar que Catió existia no mapa. Entre todos os aviadores militares em serviço na Guiné, o marado do Tenente Aparício era o mais festejado e o mais bem-vindo. Não por ser marado mas por ser o mais marado de todos, tanto que era o único que se dispunha a aterrar de Dornier em Guileje. E este quartel era a posição mais martirizada e mais isolada da área de intervenção do batalhão e em toda a Guiné. Por causa disso, a tropa de Catió encaixava bem as risadas sem motivo deste aviador e uma ou outra frase desconexa que ia largando, pelo valor único que ele representava para o batalhão e para o pessoal de Guileje. Após menos de meia hora a descansar, a comer e a beber, o Tenente Aparício ajeitou o lenço azul e levantou-se. “Vamos a isto!”, disse com os olhos a brilharem. Se era o único que aterrava de avioneta em Guileje, aquele era o sítio onde ele mais gostava de ir. Cada viagem era uma aventura. E o Aparício adorava aventuras.

Carregado o correio, medicamentos, algumas peças e acessórios, tudo em quantidade limitada por causa do pouco peso que a aeronave podia transportar, o Tenente Aparício despediu-se. E mandou-me subir. Naquele dia eu ia ser seu companheiro de viagem até Guileje. “Vamos a isto!”, repetiu, replicando mais uma versão das suas risadas. Eu ia para passar uma semana em Guileje, como fazia quase todos os meses, para tratar de problemas com as transmissões e trocar os códigos das cifras da criptografia. E, por isso, seria companheiro de viagem do Tenente Aparício. E uma ida a Guileje era sempre uma emoção, pelo risco e por rever os camaradas martirizados e isolados bem junto da fronteira com a Guiné-Conacri. Para mais, conduzido pelo aviador mais marado da Guiné. O aviador conduziu a aeronave com os jeitos e o ar de condutor habituado a uma estrada de todos os dias. E ia sempre a rir-se, na maior parte das vezes sem se entenderem os motivos. De repente, a janela da Dornier do meu lado salta e desaparece no céu. O ar entra em turbilhão e faz esvoaçar toda a papelada solta. O aviador riu-se ainda mais. Como tendo achado que aquele incidente só ia tornar mais insólita e mais típica aquela viagem e ainda dava para gozar com a cara azulada da preocupação do seu companheiro inquieto e que duvidava que, sem janela, aquela geringonça se pudesse aguentar no ar. O aviador comentou, sem conter o riso: “Eu bem disse na Base que essa merda estava mal apertada, mas não faz mal, o avião não cai, ficamos é com as ideias mais frescas.”. A viagem decorreu, num regalo de vista sobre as matas luxuriantes de verde intenso como era típico do sul da Guiné, permanentemente atravessadas por enormes e serpenteantes cursos de água. Debaixo de nós, o fabuloso Cantanhez expunha a sua beleza única. Sempre a sobrevoar uma zona controlada pelo PAIGC. É que, no sul, tirando os quartéis isolados e sitiados de Catió, Guileje, Gadamael e Cacine, mais uns tantos destacamentos, todos sob o comando militar de Catió, a zona era inteiramente controlada pelos guerrilheiros. Estes, só eram contrariados no seu domínio pelo exército português através de bombardeamentos aéreos, fogo de artilharia e surtidas temporárias das forças especiais. E isto durou até o PAIGC receber os mísseis terra-ar soviéticos, porque, a partir daí, quase todos os aviadores se recusaram a voar no sul. Mas isso foi mais tarde, já o Aparício de lá tinha saído. Voar, naquela zona, era um desafio permanente às antiaéreas da praxe e, quanto a isso, havia que confiar na divina providência ou coisa do género. Naquela viagem, o risco era o costume, a beleza da paisagem idem, só a ventania dentro da cabine estava fora da rotina.
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Em 1964, com o fascismo no seu pleno, eu tinha 25 anos, ia a caminho de me tornar uma marxista-leninista convicta e já lutava fervorosamente nas fileiras do PCP. Para mim, era sagrada a frase “um terço dos países do mundo e dois terços da humanidade vivem em regimes socialistas” e lembro-me que sonhava com a oportunidade de, no futuro, poder conhecer de perto o mais avançado desses países, a “pátria-mãe” das sociedades sem classes – não havia de morrer sem ver o socialismo com os meus próprios olhos.

O dia em que me comunicaram que iria integrar a delegação portuguesa ao Fórum da Juventude, em Moscovo, foi um dos dias mais felizes da minha vida. À partida, éramos 10 – apenas duas raparigas – e nem todos militantes do partido. Saímos de Portugal, a conta-gotas, para Paris. Foi aí que se planeou cuidadosamente essa viagem à União Soviética e foi também aí que ficou um dos companheiros, desistente – o risco de se ser preso no regresso a Portugal era grande.

A 13 de Setembro, ainda Verão na Europa, voei sozinha para Moscovo, trajada tão primaveril quanto me pedia a minha alma. (Hoje, quer-me parecer que, de facto, não tinha ninguém assisado por perto…)

Quando desci a escada do avião, nevava, e não exagero se disser que a temperatura rondava os 15 graus negativos. Atravessei a pista em sandálias e casaquinho de malha, debaixo de uma aba de um opulento casaco de pele de raposa, pertencente à camarada russa destacada para me ir receber. Poucos minutos depois, essa simpática acompanhante recusava, em tom firme do poder, a entrega do meu passaporte à polícia, facultando-lhe uma folha à parte, dobrada em quatro, destinada a ser carimbada conforme o que fora combinado com a Embaixada Soviética, em Paris. (Carimbo de entrada num país socialista dava prisão pela PIDE, seguramente).

Os enormes prédios e a ampla avenida que percorremos após a saída do aeroporto (dezenas e dezenas de quilómetros) deixavam-nos embasbacados: porque, provincianos, nunca viramos nada assim, mas também porque o nosso olhar estava particularmente desperto para admirar as glórias do socialismo.

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(Marcelo Caetano, na varanda da Reitoria)

A propósito da recente comemoração de mais um Dia do Estudante de 1962, venho aqui trazer alguns aspectos menos conhecidos. A história deste dia é, de uma maneira geral, conhecida: a invasão da cidade universitária, as cargas policiais, os plenários, a atitude do reitor, etc. Embora, aqui e acolá, com alguns pormenores menos correctos, mas que não tiram a verdade aos factos. O que é menos conhecido, às vezes mesmo completamente desconhecido, é o seu relato humorado feito em verso. É o caso do aproveitamento dos Lusíadas para relatar uma parte do sucedido.

I
As moças e os rapazes espancados
Que da Universidade Lusitana
Por transes nunca dantes passados
Quasi que perderam a tramomtana (1)
Por ministros e policias escorraçados
Mais do que permitia a estupidez humana
Cantando espalharei esta toada
Enquanto não vier a coronhada

II
Calem-se de Wengoróvias e de Eurico
A fama dos discursos que botaram
Não se fala mais do ilustre génio
Que capitão da polícia nomearam
Que eu canto o espólio vasto e rico
De castanha que as gentes apanharam
E tudo o que a musa antiga trama
Que muita malta ainda está de cama

(1)   No exemplar em meu poder está transmontana, mas é evidente que é um lapso cometido, talvez, por um arreigado regionalista.

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A Biblioteca-Museu República e Resistência irá levar a cabo durante os meses de Maio e Junho o 3º Ciclo de conferências «Memórias literárias da guerra colonial». Aqui fica o programa:

7 Maio às 19h
Não sabes como vais morrer. 7 mais 1 histórias de guerra e regresso atribulado no Vera Cruz por Jaime Froufe Andrade

14 Maio às 19h
Memórias dos dias sem fim por Luís Rosa

21 Maio às 19h
Como vivi a guerra em Quípedra Angola no ano 1963 por António Cadete Leite

28 Maio às 19h
Cisne de África por Henrique Levy

4 Junho às 19h30
Caderno de memórias coloniais por Isabela Figueiredo

18 Junho às 19h
A pele dos séculos por Joana Ruas

25 Junho às 19h
O meu avô africano por Aniceto Afonso

A primeira parte deste texto foi publicada aqui.

Um escritor inglês, Aubrey FitzGerald Bell, testemunhou directamente como o chocava a situação de inferioridade das mulheres face aos homens, num texto publicado em 1915: «A posição das mulheres em Portugal é outro exemplo de vagos ideais. A mulher é colocada num pedestal mas as mulheres nem sempre são tratadas com consideração, e nalgumas zonas do País são pouco mais do que escravas. (…) Ninguém se lembra de protestar contra isto, nem ninguém nota, e nem o Parlamento Republicano, que tão copioso tem sido na produção de legislação, fez qualquer esforço para apresentar alguma lei que tratasse da situação das mulheres, embora lhes tenha negado o direito ao voto. As mulheres camponesas continuam a realizar o dobro do trabalho dos homens e a ganhar metade do salário.»

Outro grave assunto que preocupava as mulheres republicanas era a prostituição. Em 1914 o Governo convocou uma reunião para a debater. Esqueceu-se de convidar qualquer mulher para estar presente. Tal foi novamente motivo de protesto por parte da Liga.

As feministas associavam às suas lutas a situação das crianças, pelo que muitas também se empenharam na chamada Obra Maternal – mais uma vez com pouco sucesso.  Em 7 de Janeiro de 1911 reuniram com Afonso Costa, para pedir mais protecção para a infância e a extinção da mendicidade. Também solicitaram a cedência de uma casa,  (das muitas anteriormente pertencentes a ordens religiosas e que pela extinção destas tinham ficado vazias)  para poder acolher crianças ‘desvalidas’, mas não foram atendidas. Contudo, veio a ser aprovada importante legislação referente aos menores.

As mulheres desta época tiveram que reflectir acerca das suas estratégias: afinal o que era prioritário? Trabalhar para a mudança do estatuto das mulheres, mesmo que para tal fosse necessário combater os políticos no poder, ou era antes sua obrigação ‘defender’ a todo o custo o regime Republicano, que muito precocemente foi alvo de ataques. Algumas não teriam noção sequer deste dilema mas outras, como Maria Veleda, Adelaide Cabete e Ana de Castro Osório enfrentaram-no. Não foi por acaso que também no movimento feminista houve cisões e abandonos e a fundação de outras organizações para além da Liga Republicana, que aliás se extingue em 1919.  Em 1911 é criada a Associação de Propaganda Feminista; em 1914 fundou-se o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas; em 1915, a Associação Feminina de Propaganda Democrática; em 1917, para apoiar o esforço de guerra, Ana de Castro Osório funda a Cruzada das Mulheres Portuguesas.

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O regime republicano que se implantou em Portugal em 5 de Outubro de 1910 visava transformar a sociedade, visava, como vários autores escreveram, acabar com um sistema baseado no poder, mesmo que simbólico, de um rei e dos círculos a ele conexos (aristocracia, igreja) substituindo-o por um sistema baseado numa comunidade de cidadãos.

Muito mais do que o 25 de Abril de 1974, cujo primeiro objectivo era acabar com as guerras coloniais, a República, preparada ao longo de décadas, sonhada e idealizada, tinha horizontes quase utópicos.

Contudo, ao contrário de outras utopias que se desenvolveram ao longo do século XX, com consequências catastróficas, a ideologia republicana estava longe de propôr soluções fixas e previamente delineadas. Tinha alguns princípios básicos, o mais importante dos quais seria a necessidade de separar os poderes da igreja e do estado. Por sua vez os perenes valores republicanos – Liberdade – Igualdade – Fraternidade -estavam bem presentes nas aspirações republicanas.

Um dos horizontes propostos antes do 5 de Outubro dizia respeito à vida das mulheres – alguns republicanos (muito poucos) reconheciam que à face da lei e nos costumes a situação das mulheres era degradante e como tal deveria ser alterada. Mas a sua motivação principal não seria, na realidade, a condição específica das mulheres, mas antes o interesse em arregimentar o maior apoio possível para o ideal republicano. É isto que poderá explicar que se deva à iniciativa de três dirigentes republicanos a ideia da fundação da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas, em 1909.  A proposta nasceu em Agosto de 1908 quando António José de Almeida, Bernardino Machado e Magalhães Lima convidaram todas as ‘senhoras’ que o desejassem para fazer parte de uma Liga. Os objectivos eram «orientar, educar e instruir, nos princípios democráticos a mulher portuguesa.» António José de Almeida chegou a prometer que, ao contrário do que se tinha passado com a revolução francesa, as mulheres não ficariam ‘logradas’ pela futura República. Mas note-se que a Liga era primeiro ‘Republicana’ e só depois ‘das Mulheres’, o que revela a intenção dos seus fundadores. Considerando o que se passou a seguir ao 5 de Outubro, concluímos, de novo, que as suas preocupações principais não se centravam na situação das mulheres, mas antes que consideraram útil do ponto de vista estratégico, cativá-las para os seus ideais. Em 1909 realizou-se um Congresso do Partido Republicano onde se anunciou a necessidade de decretar a igualdade de direitos políticos e sociais para as mulheres.
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«Lá vai o português, diz o mundo, quando diz, apontando umas criaturas carregadas de História que formigam à margem da Europa.

Lá vai o português… lá anda. Dobrado ao peso da História, carregando-a de facto, e que remédio – índias, naufrágios, cruzes de padrão (as mais pesadas). Labuta a côdea do sol-a-sol e já nem sabe se sonha ou se recorda. Mal nasce deixa de ser criança: fica logo com oito séculos.

No grande atlas dos humanos talvez figure como um ser mirrado de corpo, mirrado e ressequido, mas que outra forma poderia ele ter depois de tantas gerações a lavrar sal e cascalho? Repare-se que foi remetido pelos mares a uma estreita faixa de litoral (Lusitânia, assim chamada) e que se cravou nela com unhas e dentes, com amor, com desespero, ou lá o que é. Quer isto dizer que está preso à Europa pela ponta, pelo que sobra dela, para não se deixar devolver aos oceanos que descobriu, com muita honra. E nisto não é como o coral que faz pé firme num ondular de cores vivas, mercados e joalharia; é antes como o mexilhão cativo, pobre e obscuro, já sem água, todo crespo, que vive a contra-corrente no anonimato do rochedo. (De modo que quando a tormenta varre a Europa é ele que a suporta e se faz pedra, mais obscuro ainda).

Tem pele de árabe, dizem. Olhos de cartógrafo, travo de especiarias. Em matéria de argúcias será judeu, porém não tenaz: paciente apenas. Nos engenhos da fome, oriental. Há mesmo quem lhe descubra qualquer coisa de grego, que é outra criatura de muitíssima História.

Chega-se a perguntar: está vivo? E claro que está: vivo e humilhado de tanto se devorar por dentro. Observado de perto pode até notar-se que escoa um brilho de humor por sob a casca, um riso cruel, de si para si, que lhe serve de distância para resistir e que herdou dos mais heróicos, com Fernão Mendes à cabeça, seu avô de tempestades. Isto porque, lá de quando em quando, abre muito em segredo a casca empedernida e, então sim, vê-se-lhe uma cicatriz mordaz que é o tal humor. Depois fecha-se outra vez no escuro, no olvidado.

Lá anda, é deixá-lo. Coberto de luto, suporta o sol africano que coze o pão na planície; mais a norte veste-se de palha e vai atrás da cabra pelas fragas nordestinas. Empurra bois para o mar, lavra sargaços; pesca dos restos, cultiva na rocha. Em Lisboa, é trepador de colinas e de calçadas; mouro à esquina, acocorado diante do prato. Em Paris e nos Quintos dos Infernos topa-a-tudo e minador. Mas esteja onde estiver, na hora mais íntima lembrará sempre um cismador deserto, voltado para o mar.

É um pouco assim o nosso irmão português. Somos assim, bem o sabemos.
Assim, como?

José Cardoso Pires, E Agora, José? (p. 19-21)

Um texto de Isidoro de Machede (*)

O Bairro do Poço Entre as Vinhas era um lugar de habitações clandestinas construídas, tijolo a tijolo, por aqueles que demandavam a cidade grande em busca de uma vida de pão mais assegurado. A grande maioria, desterrados do campo pela mecanização da agricultura que, paulatinamente, os foi empurrando da sua terra pela ausência de jorna. Vivi neste meu Bairro dos momentos mais felizes da minha vida. Foi para mim a academia da sociabilidade solidária entre a infância e a adolescência. A seguir a Nossa Senhora de Machede era, na prática, a minha segunda aldeia, só que colada à cidade grande.

Por si só o nome do Bairro era um livro aberto sobre o local. Um poço entre vinhedos cuja água teria servido para dessedentar os trabalhadores da dita cultura agrícola. Por volta da década de sessenta um qualquer sacripanta, contumaz da beatitude, resolveu renomear o Bairro de Senhora da Saúde. O velhíssimo poço, com a boca em granito trabalhado, ainda lá mora completamente abandonado e ostracizado da história do local.

Tinha o Bairro a particularidade de ter as fronteiras de nascente e poente demarcadas por duas linhas ferroviárias. A nascente, a linha Évora-Estremoz. A poente, a linha Évora-Mora. A Sul do Bairro, na estrada que conduzia a Beja e Reguengos, junto da passagem de nível, bifurcava-se da linha para Estremoz o ramal de Évora-Reguendos de Monsaraz, distanciando-se em direcção a Este.

Daí sempre ter tratado os comboios tu cá tu lá. Ainda as locomotivas eram movidas a vapor. Só depois vieram as modernaças a diesel.
Ver passar aquelas enormes composições com carruagens de passageiros e uma infinidade de vagões de mercadorias, era o rotineiro filme diário. Parávamos as futeboladas e ficávamos ali de dedo espetado a contar o tamanho da serpente com cabeça de ferro.

O êxtase absoluto era viajar nos ditos com toda a gente a balançar certinho, de um lado para o outro, como se fossemos o pêndulo do relógio da avó. E a paisagem a correr vertiginosamente cortada regularmente pelos postes do telefone ferroviário.

Quando recordo o facto do Bairro do Poço Entre Vinhas ser quase uma península rodeada por todos os lados menos por um de linhas ferroviárias, há três coisas que ainda me deixam a remoer inquietudes e aprendizagens da infância. Ter aprendido de que lado estava o vento pela nitidez do apito da locomotiva. O comboio ter um lado fatal, dado ser o principal instrumento de suicídio das gentes das redondezas. E outra coisa que me produzia uma impressão que nunca consegui descortinar. Ainda hoje me aflige a sua nebulosidade. O facto das composições que exclusivamente transportavam militares, fardados de caqui amarelado, do quartel de Estremoz directamente para os barcos atracados em Alcântara e daí para a guerra colonial. A estranheza de os ver passar, com meio corpo fora das janelas, a acenar e a gritar uma alegria que não o era certamente.

O ramal de Mora, é hoje a ecopista da cidade. Faleceu vai para um ror de tempo. O ramal de Reguengos de Monsaraz foi pelo mesmo caminho. O ramal de Estremoz ainda existe, mas o seu uso é quase nulo. Daí que a estação de Évora é, a bem dizer, o final da linha. Entre as poucas composições que lhe dão uso, há seis ligações diárias de e para Lisboa realizadas pelo Intercidades. É uma composição rápida, confortável e a um preço módico. Mais barato que as dos autocarros expresso. Ultimamente tem surgido o rumor que a CP se prepara para encerrar a linha.
Decididamente não entendo a política de transportes deste país. Se é que há alguma coisa para entender?

(Publicado no blogue Alentejanando)

(*) Biografia de Isidoro de Machede

As minhas primeiras palavras são para recordar aqueles que, neste lugar, nesta rua, no dia 25 de Abril de 1974, foram barbaramente abatidos a tiro pela PIDE/DGS. Todos sabemos que a mais tenebrosa das polícias do regime levou a sua sanha criminosa até ao fim.

Ainda hoje, a 36 anos de distância, me custa pensar que as últimas vítimas do fascismo foram jovens, nossos irmãos na esperança de Democracia. Jovens que desejavam ver a sua terra libertada. E não lhes foi permitido. Sobre o que seria viver em Liberdade, não chegaram a saber mais do que o que ouviam dizer, e talvez tivessem lido, acerca das democracias que havia por esse mundo fora. Morreram precisamente quando acreditaram que o seu sonho se tornava realidade.

O tempo corre, falamos, escrevemos e não se esgotam as más memórias. Quando passo ali por trás, junto ao Teatro São Carlos, ainda recordo a força que me chegava de longe, nas vozes do coro em ensaio, enquanto eu procurava não adormecer na frente da agente policial. Alucinação ou magia.

Foi exactamente neste espaço que, durante décadas da ditadura, esteve sediada a polícia política. De tempos a tempos, o seu nome mudava, mas o martírio dos portugueses que se batiam pelos seus ideais e pelos seus mais básicos direitos prosseguia.

Agora, uma gente de negócios endinheirados quis trazer para o imaginário lisboeta uma história de sonhos, apagando uma história nacional de pesadelos e, sobre os escombros dessa sede, ergueu um condomínio de luxo, atribuindo-lhe uma designação que soa indecorosa aos nossos ouvidos de resistentes: “Paço do Duque”.

Olho do exterior a construção faraónica, repudio as pichagens que começaram a aparecer, mas a verdade é que me trazem o encarnado dos pingos de sangue e os desenhos indutores de alucinação que manchavam as paredes enegrecidas das salas de interrogatório. Olho este portão e quase tremo. Não se me apagam as emoções e os medos com que o atravessava, sentada por trás da grade de uma carrinha, vinda do Forte ou já de regresso a Caxias, entalada entre duas agentes da policia. Porque as mulheres, jovens ou não, eram presas na condição de revolucionárias, em igualdade de circunstâncias com os homens, mas depois, uma vez chegadas aos interrogatórios, tinham tratamento suplementar especial. Eram chantageadas na sua dignidade de mulheres, humilhadas, violadas no seu pudor feminino. Atingidas emocionalmente e ameaçadas, nos laços de maternidade. Ainda estão vivas, e festejam hoje o dia da Revolução, algumas companheiras da luta anti-fascista, cujo testemunho pessoal ultrapassaria o que, algum dia, eu poderia contar-vos. Outras já desapareceram: Sofia Ferreira muito tinha para contar. Morreu na semana que hoje termina, com uma impressionante história de vida, dedicada à Resistência.

Não têm conta os portugueses anónimos que aqui permaneceram noites e noites, submetidos à tortura do sono – às vezes, dias e dias de pé, impedidos de se sentarem. Poderão hoje estar mais, ou menos, satisfeitos com o estado do Estado Democrático, poderão divergir mais, ou menos, nas suas posições políticas actuais, mas estou ciente de todos eles se emocionam quando passam neste local.
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Saudação do NAM

25 de Abril 2010

O Movimento Cívico Não Apaguem A Memória! – NAM, saúda todos os participantes no acto da inauguração da placa que sinaliza o local onde se situava a sede da PIDE/DGS, na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa, realizado no dia 25 de Abril de 2010.

Saudamos todos os que durante meio século lutaram contra a ditadura, pela democracia e pela liberdade e que sofreram a prisão e as torturas daquela tenebrosa polícia política. Em particular saudamos os que ali se encontravam presentes, nomeadamente Edmundo Pedro, António Borges Coelho, José Manuel Tengarrinha e Helena Pato. Saudamos os capitães do MFA pelo seu papel histórico no 25 de Abril de 1974 e em particular os que ali se associaram a este acto nomeadamente o cor. Vasco Lourenço e muito especialmente o comandante Luís da Costa Correia o “capitão de Abril” que tomou, com a força militar que comandava, precisamente ali, onde nos encontrávamos, a sede da PIDE/DGS.

Saudamos o Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Dr. António Costa, a Senhora Vereadora da Cultura, Drª Catarina Vaz Pinto pela forma pronta como acolheram a proposta do NAM, lhe deram execução de modo a coincidir com o dia 25 de Abril e participaram neste importante acto de preservação da memória. Saudamos também o director da Cultura, Dr. Mota Veiga, o Director do Património Cultural, arquitecto Jorge Carvalho e demais funcionários da CML que participaram neste acto ou na sua preparação.

Sinalização da PIDE/DGS

De acordo com o programa da inauguração da placa de sinalização da PIDE/DGS na Rua António Maria Cardoso em Lisboa, realizou-se um cortejo que partiu dos paços do concelho da CML onde usaram da palavra a Senhora vereadora da Cultura Drª Cartarina Vaz Pinto e pelo NAM o Professor Jorge Martins que ao longo do mini-roteiro o animou e ofereceu de modo impressivo uma informação histórica da ditadura e do dia 25 de Abril de 1974 relacionada com os locais do percurso.

Após o descerramento da Placa, usaram da palavra Raimundo Narciso pelo NAM, José Manuel Tengarrinha, Edmundo Pedro e Helena Pato na qualidade de ex-presos políticos e lutadores anti-fascistas e o Presidente da CML Dr. António Costa.

O mini-roteiro e o acto final tiveram uma significativa participação de umas 150 a 200 pessoas.

Pela mão de um amigo, recebo o link para um filme que não tinha visto: “Quem é o Ricardo?”, realizado por José Barahona, com argumento e diálogos de Mário de Carvalho.

Chega-me um dia depois do 25 de Abril, um dia depois de ter ouvido um velho resistente antifascista dizer-me – talvez com mais gentileza do que verdade – que tinha aprendido muito ao ouvir os depoimentos dos africanos presos na Campo de Concentração do Tarrafal entre 1962 e 1974, que recolhi em “Tarrafal: Memórias do Campo da Morte Lenta”. E gostaria de o ter visto projectado ontem, caída a noite, na Rua António Maria Cardoso, no muro em frente à sede da PIDE, finalmente assinalada com uma placa, para que se não esqueça os muitos que por ali passaram e, sobretudo, o que foi o regime deposto a 25 de Abril de 1974.

Lamento só o ter visto hoje – mas, mesmo correndo o risco que todos o conheçam já, não quero deixar de o partilhar convosco. E de agradecer ao José Barahona, ao Mário de Carvalho e à Cinequanon por o terem feito.

Em Abril de 61 tinha 13 anos.

Nascida em Angola, seguia com inquietação as notícias que dali chegavam, acompanhadas de fotografias de cadáveres decepados, mulheres fugindo com crianças nos braços. Uma ideia terrível: podia ter sido eu, podia ter sido a minha mãe ou o meu pai, a minha irmã, uma das minhas maiores amigas. Outra ainda: não tenho direito à terra em que nasci. E a tentativa de encontrar explicações, de compreender uma violência à partida incompreensível. Recordações de outras violências, comentários, exemplos. E a evidente perturbação dos adultos a aumentar a minha, a tornar difícil qualquer pergunta, qualquer resposta.

Angola, os acontecimentos no Congo, a prisão e depois a morte de Lumumba, a violência, a dúvida, a insinuarem-se entre as aulas, os livros escolares, as conversas à mesa, as próprias brincadeiras no quintal.

E, de repente, Gagarine. O primeiro homem no espaço.

“Um rosto extraordinariamente jovem e simpático, sob o capacete de couro maleável dos aviadores soviéticos”, assim o descrevia a notícia do Diário de Lisboa, e continuava: “Tem olhar vivo e inteligente, nariz direito, ligeiramente grosso, junto à testa, como o dos pugilistas, lábios carnudos e bem desenhados. Gagarine tem uma covazinha quase imperceptível no queixo.”

Essa covazinha no queixo aproximava-nos, tornava-mo quase familiar. E o primeiro homem a viajar no espaço, o filho de um carpinteiro, a quem a invasão alemã interrompera os primeiros estudos, devolvia a alegria e o sentido a um mundo perturbado. Já não olhava para a terra lembrando-me da minha, manchada de sangue, mas o céu, esse céu onde Gagarine dera a volta à Terra em “exactamente 108 minutos” (volto a citar o DL). A minha cadela, cúmplice de todos os minutos, já há algum tempo era, de quando em vez, rebaptizada de Laika. E eu, eu, por esses dias, adoptei um nome especial, que me permitia recriar com ela, no quintal, fantásticos passeios pelo espaço: Yuri Gagarine, pois claro.

Então eu era o herói e a minha cadela só falava russo…

A direcção do NAM convoca todos os associados e apoiantes da Associação Movimento Cívico Não Apaguem a Memória! – NAM a participar no dia 25 de Abril de 2010 na cerimónia de descerramento-inauguração da placa informativa da localização da ex-sede da PIDE-DGS, na Rua António Maria Cardoso, organizada pelo Movimento Não Apaguem a Memória! – NAM em cooperação com a Câmara Municipal de Lisboa.

Este acto de importante significado para a Memória da luta pela liberdade é precedido por um mini roteiro da Memória com o desenvolvimento seguinte:

Ponto de encontro: Largo do Município, em Lisboa (18.00H)

1º Ponto do roteiro: Rua do Arsenal (Salgueiro Maia: 25 de Abril)

2º Ponto: Largo da Boa Hora (Tribunais Plenários)

3º Ponto: Rua Capelo (Rádio Renascença: 2ª senha “Grândola, Vila Morena)

Chegada e 4º Ponto: Rua António Maria Cardoso (ex-sede da PIDE), às 17.45H

No percurso serão evocados acontecimentos históricos e no final haverá uma breve intervenção do historiador, conhecido lutador anti-fascista e ex-preso político José Manuel Tengarrinha.

Este importante acto de preservação da Memória surge na sequência da luta do NAM pela recolocação da placa evocativa dos cidadãos mortos pela PIDE-DGS no dia 25 de Abril de 1974, na fachada do condomínio privado de luxo que substituiu a sede da PIDE sem que as autoridades então cuidassem,  como era seu dever cívico, da preservação do património histórico da luta pela Liberdade.

O historial dessa luta do NAM em torno da Placa e que no seu desenvolvimento deu origem a esta outra lápide que assinalará a ex-sede da PIDE  é, tal como consta no relatório de actividades do NAM, o seguinte:

«A placa evocativa das últimas vítimas da PIDE/DGS, assassinados no dia 25 de Abril de 1974, afixada por um grupo de cidadãos na ex-sede daquela sinistra polícia política, para lembrar a memória dos jovens que ali sucumbiram, foi retirada, no início das obras de transformação daquele local em condomínio privado de luxo.

Concluída a obra e constatada a não colocação da placa, o Movimento Cívico Não Apaguem a Memoria! (NAM) contactou o responsável pelo condomínio privado (GEF) para exigir a recolocação da placa no local de origem. Numerosos foram os protestos, muitos deles publicados no blog Caminhos da Memória, e registámos mais de duas mil adesões à causa organizada no Facebook para retorno da placa ao seu local de origem. A placa foi então recolocada mas em local de muito pouca visibilidade.

Esta situação desencadeou uma nova onda de protestos que culminaram com uma carta enviada pela direcção do NAM ao presidente da CML, António Costa, a cada um dos vereadores e à presidente da Assembleia Municipal, Simonetta Luz Afonso, para protestar pelo desrespeito à memória de tantas portuguesas e portugueses que lutaram pela Liberdade.

Na sequência desta carta, a vereadora da cultura da CML, Drª. Catarina Vaz Pinto, propôs, no final do passado mês de Fevereiro, uma reunião com a nossa direcção para discutir esta questão.

Nesta reunião o NAM voltou a defender que a placa evocativa das últimas vítimas da PIDE fosse colocada em local de maior visibilidade, após serem avivadas as letras dos nomes dos mortos cuja tinta desaparecera.

Na sequência desta reunião a vereadora da cultura fez-nos chegar a informação de que a CML aceitava a sugestão do NAM de que o edifício da PIDE/DGS fosse sinalizado no espaço público.

Mais recentemente, foi-nos solicitado que propuséssemos um pequeno roteiro, com indicação de alguns pontos que recordassem momentos significativos da liberdade conquistada, em Abril de 74, e que culminaria com o descerramento da lápide de sinalização da ex-sede da PIDE/DGS, no dia 25 de Abril, pelas 17.45H, tal como acima indicado.

Fomos, também, informados de que as letras dos nomes das últimas vítimas da PIDE seriam reavivadas.»

Alguns posts relacionados com os objectivos deste blogue. Notícias ou textos mais descomprometidos (ou não…) do que os habituais e que talvez ajudem alguns a navegar por outras paragens.

 

→ Ana Cristina Leonardo – Do Forte de Peniche à cama do arqtº Paulino Montez passando pelas rendas de bilros — ou da vergonha de ter nascido em Portugal

 

→ Guilherme d’Oliveira Martins – “História do Ensino em Portugal” de Rómulo de Carvalho

 

→ A. Teixeira – A Europa técnica e a Europa ideológica

Primavera, nos anos 70.
Percebi muito bem o recado que o camarada funcionário do Partido me mandou. Na quinta-feira da semana seguinte, iria ao Jardim da Estrela encontrar-me com um amigo, também militante a viver na legalidade, e levava-o para a casa de apoio onde, ultimamente, reuníamos. Não me foi dito de quem se tratava. Que quando o visse logo o reconheceria. Eu ia usar um casaco de malha preto e ele levava uma pasta na mão. Não era preciso combinar mais nenhum sinal, pois também ele me conhecia bem e fora avisado de que a pessoa que o aguardava seria eu. Que às 7.30 em ponto, eu já tinha de estar à porta da entrada do Jardim, no lado norte, isto é, junto à Avenida Pedro Álvares Cabral, e que esperasse que ele se me dirigisse. Senha e contra-senha, tudo combinado. Que, se o amigo não aparecesse ou se, indesculpavelmente, eu me atrasasse, voltávamos lá uma meia hora mais tarde; que devia certificar-me de que o campo estava “limpo”, sem indivíduos ou carros de aspecto suspeito, por perto, blá, blá, blá: os cuidados do costume.

A pergunta que ele iria fazer-me revestia-se de uma grande naturalidade: “O que fazes tão cedo por aqui?”. Porém, a resposta que me cabia dar-lhe era algo absurda para um dia de semana, ainda longe do Verão: “Estou à espera de uma boleia para o Algarve!”. Depois, uma vez cumprido tudo – estas duas frases ditas com absoluto rigor, sem falhas – apanharíamos um táxi para uma transversal à Avenida de Berna, ficando próximos da casa em que nos juntávamos com o camarada funcionário.

Saí da Penha de França muito cedo, para ter tempo de fazer um “corte” na viagem – era obrigatório… – isto é, tomei um autocarro até à Avenida Duque de Ávila, desci, e apanhei um táxi para a Basílica da Estrela. Depois, percorri a pé o passeio que ladeia o jardim, até à entrada norte. Sempre vigilante, olhando de vez em quando pelo canto do olho para trás, a verificar, como habitualmente, se não “ia seguida”.

Às 7. 25, ou por aí, postei-me à porta, observando quem se aproximava. Não tardaram 3 minutos, vejo-o surgir, de pasta na mão, e pensei: “Ai que engraçado! Este gajo é do Partido? Que bom!”. De facto, conhecia-o – era um democrata, um activista associativo que eu muito admirava, um amigo, até – mas tinha-o perdido de vista, havia anos.

Deu-me um beijo.
– O que fazes por aqui tão cedo? (As palavras da frase estavam ditas por uma ordem ligeiramente diferente, mas não seria por isso que não lhe responderia o combinado, pensei.)
– Estou à espera de uma boleia para o Algarve!
– Então boa viagem! Vou andando que estou cheio de pressa. – Disse, dando-me um outro beijo e largando em frente, pela Avenida, em passo acelerado.

“O tipo é parvo! O que lhe deu? Por que não reagiu à senha? Cheguei antes das 7.30, o “terreno está limpo”, tenho um casaco preto vestido, e respondi-lhe exactamente o que estava combinado.”

Ia começar a andar, de regresso a minha casa, chateada, interrogando-me acerca do mistério, quando vi aproximar-se, em passo acelerado, um outro amigo. Vinha de pasta na mão e, mal chegou, nem beijo, nem outro cumprimento:
– O que fazes tão cedo por aqui?
– Estou à espera de uma boleia para o Algarve!
– Vamos lá? – disse o camarada, agarrando-me pelo braço, enquanto nos preparávamos para atravessar a rua, em direcção à Pedro Álvares Cabral.
– Uf! Ó pá, não podes imaginar o que me aconteceu! Dois minutos antes de tu chegares, apareceu-me, não sei de onde, de pasta na mão, o João Cravinho. Deu-me um beijo, e não é que me fez exactamente a pergunta combinada!
– E então?
– Então, respondi-lhe esta coisa do Algarve. Ele fez um sorriso, não sei se achou natural ou não, e desandou. Felizmente estava com pressa… ou terá suposto que eu tinha um qualquer encontro de amor. Olha se tinha ficado à conversa, lá se ia a nossa reunião de hoje!

Angola

Existe uma «falha de memória» no que respeita à vida dos portugueses que retornaram à «Metrópole» – muitos deles pisando pela primeira vez solo europeu – nos anos quentes da descolonização. Uma falha de memória processada em duas direcções: de um lado, esse passado foi praticamente apagado pela maioria dos «portugueses de Portugal», envolvidos na culpa e no remorso da dominação colonial e desejosos de se penitenciarem exorcizando-a; do outro, os próprios ex-colonos foram silenciando o que tinham vivido, esperando talvez, por essa forma, obter uma mais rápida adaptação à sua nova vida europeia. A própria historiografia participou deste processo, aplicando-se a partir de dada altura em conhecer a realidade da guerra ou a emergência das novas nações, mas omitindo uma parte importante da vida «branca» que ficara para trás. Quanto aos ex-colonos, o seu emudecimento contribuiu, imperceptivelmente, para a construção de mitos e fábulas a propósito da experiência passada, sublinhando as boas recordações de uma «vida maravilhosa» que se perdera, mas geralmente abafando as más.

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Um filme de Diana Andringa (*), no IndieLisboa’10

Sexta-feira, 23 de Abril, às 21H30 no Grande Auditório da Culturgest
Domingo, 25 de Abril, às 18H30, no Pequeno Auditório da Culturgest
(Edifício da Caixa Geral de Depósitos, Campo Pequeno, Lisboa)

Chamavam-lhe “o Campo da Morte Lenta”. Os críticos, naturalmente. Que as autoridades, essas, chamaram-lhe primeiro, entre 1936 e 1954, quando os presos eram portugueses, “Colónia Penal de Cabo Verde” e, depois, quando reabriu em 1961 para nele serem internados os militantes anticolonialistas de Angola, Cabo Verde e Guiné, “Campo de Trabalho de Chão Bom”.

Trinta e dois portugueses, dois angolanos, dois guineenses perderam ali a vida. Outros morreram já depois de libertados, mas ainda em consequência do que ali tinham passado. Famílias houve que, sem nada saberem o destino dos presos, os deram como mortos e chegaram a celebrar cerimónias funebres.

“Ali é só deixar de pensar. Porque se não morre aqui de pensamentos. É só deixar, pronto. Os que têm vida ficam com vida. Nós aqui estamos já quase mortos.” A frase é do angolano Joel Pessoa, preso em 1969 e libertado, com todos os outros presos do campo, em 1 de Maio de 1974.

No 35º aniversário desse dia, a convite do presidente da República de Cabo Verde, Pedro Verona Pires, os sobreviventes reencontraram-se para um Simpósio Internacional sobre o Campo de Concentração do Tarrafal.

“Tarrafal: memórias do Campo da Morte Lenta” resultou desse reencontro. Durante os dias em que os antigos presos voltaram ao Tarrafal, gravámos entrevista após entrevista, registando as suas recordações. Trinta e dois presos, desde o português Emundo Pedro, um dos que o estreou, em 1936, aos angolanos e cabo-verdianos que foram os últimos a deixá-lo, no 1º de Maio de 1974, passando pelos guineenses que, ali chegados em Setembro de 62, saíram em 64 uns, em 69 os restantes. Um guarda, Joaquim Lopes, cabo-verdiano e convertido ao PAIGC. Uma das raras pessoas que testemunhou a vida no Tarrafal desde a sua abertura ao seu encerramento, Eulália Fernandes de Andrade, mais conhecida por D. Beba.

É um documentário feito à base de depoimentos e filmado quase sempre no interior do campo, afinal, o espaço em que os presos se moviam. Entre as raríssimas excepções, o cemitério, onde acompanhamos a homenagem dos sobreviventes aos que ali ficaram. Vozes, caras expressivas contra fundo de cela. Alguns objectos surpreendentes: as calças rasgadas pelo chicote e puídas pelo chão prisional, a planta do campo desenhada num osso de vaca, a bengala que testemunha o resultado da tortura. A alegria de se verem lembrados em duas exposições nas celas que tinham ocupado.

* com imagem de João Ribeiro, som de Armanda Carvalho e montagem de Cláudia Silvestre

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