Continua a imperar a interpretação da ascensão e da apoteose do nacional-socialismo como resultado da iniciativa tenaz e carismática de Adolf Hitler, combinada com a actividade de alguns companheiros de missão que o secundaram na direcção infalível de uma política externa belicista e de uma actuação interna ultra-autoritária. Outras explicações associam também a ascensão do nazismo e a afirmação do seu lado mais odioso a uma política de anti-semitismo sistemático que conduziu à Solução Final e à consumação do Holocausto. Pode por isso dizer-se que a historiografia do nazismo e da Segunda Guerra Mundial tendeu a produzir interpretações que de alguma forma foram reduzindo a responsabilidade colectiva da maioria do povo alemão, muitas das vezes apresentado como vítima de um logro arquitectado por uma minoria de delirantes inflexíveis. Aliás, terá sido este princípio, rapidamente fixado após o final da guerra, que fez com que um grande número de responsáveis do aparelho nazi ou seus colaboradores pudesse ter ficado isento de qualquer processo formal de culpabilização, vivendo o resto dos seus dias como respeitáveis e intocáveis cidadãos do regime democrático.
Foi o facto desta leitura dominante ter sido questionada pelo historiador e jornalista alemão Götz Aly que de imediato transformou O Estado Popular de Hitler, quando da sua saída na Alemanha, em objecto de comoção pública e de intensa polémica. Desde logo, porque Aly se esforça por provar que foi uma articulação entre os interesses materiais da maioria dos alemães e as políticas agressivas do regime que permitiu a este erguer-se e afirmar-se. Mas também porque, de um modo algo paradoxal, esta atitude pôde desenvolver-se mais em função da aplicação da vertente «socialista» do Nacional-Socialismo do que do seu programa «nacionalista», aparentemente mais visível. Apoiado em fontes procedentes de organismos estatais de gestão económica e militar, este estudo detalha o modo como o governo nazi instaurou uma relação de cumplicidade entre a promoção dos interesses materiais da maioria dos alemães e a aceitação, por parte destes, da política antijudaica (os bens nacionalizados ou pilhados dos judeus financiaram em larga medida o esforço militar germânico), da agressão contra outros países (transformados em áreas de colheita de bens roubados ou produzidos a baixo custo) e do ataque sistemático contra as populações conquistadas (em larga medida transformadas em mão-de-obra barata destinada a alimentar as necessidades do alemão comum). Neste sentido, Aly cria uma nova associação entre nazismo e práticas sistemáticas de pilhagem. E mostra também de que modo o povo alemão retribuiu, com o seu entusiasmo pelo projecto hitleriano e um elevado empenho no esforço de guerra, o estado de prosperidade que lhe foi oferecido de mão-beijada.
Publicado na revista LER de Abril
Götz Aly, O Estado Popular de Hitler. Roubo, Guerra Racial e Nacional-Socialismo. Trad. de Ana Schneeberger. Texto, 464 págs.
Quinta-feira, 06.Maio.2010 at 06:05:42
O entendimento que Rui Bebiano deixa expresso acerca da corresponsabilidade entre o povo alemão e o Fuhrer – que também partilho – relativamente ao regime nazi, vem lembrar mais uma vez a necessidade de um estudo semelhante acerca das razões profundas que permitiram em Portugal o tal quase meio século de fascismo. A que não me parece também estranha a duradoura cumplicidade entre Salazar e o “bom povo português”.
E esta necessidade é tanto maior, quanto importa acautelar que o “bom povo português” deixe de puder continuar a contar com o conforto de desculpas e justificações, proporcionadas por demónios exteriores a si mesmo, pelo que lhe possa acontecer hoje ou amanhã.
nelson anjos
Quinta-feira, 06.Maio.2010 at 11:05:00
Inteiramente de acordo, caro Nelson Anjos. Pelo menos até à Segunda Guerra Mundial, o apoio de grande parte dos intelectuais portugueses – e mesmo, pelos indícios, de uma boa parte da população – aos valores e à dinâmica do Estado Novo, foi inequívoco. Para não falar da cumplicidade na «questão colonial». Há muita História por fazer, sem dúvida.