A CDE de 1969

 

Em 1969 alguns democratas sentiram a necessidade de se organizar num movimento em moldes tais que a participação das pessoas fosse real (até aí os movimentos democráticos tinham sido dirigidos por personalidades). Gerou-se, a partir de então, um processo que levou à criação de bases, quer geográficas quer socioprofissionais, que, pelo desenvolvimento do seu trabalho político, tiveram uma intervenção determinante na orientação e prática do Movimento. Este processo foi já suficientemente forte para levar à cisão CDE-CEUD, mas ainda assim deficiente de modo a permitir que as personalidades (cúpulas) desempenhassem um papel relevante dentro do Movimento. 

Foi neste contexto, e apesar dos erros ainda cometidos, que o «movimento legal» tomou posição contra a guerra colonial, propôs-se praticar a democraticidade de base, procurou ser não eleitoralista e, pela primeira vez neste país, definiu uma opção socialista. 

Na evolução lógica deste processo o Movimento tenderia, por um lado, a aprofundar os princípios por que se orientava e, por outro lado, a passar cada vez mais o poder para as bases. 

  

A CDE DE 1973

O que se verifica em 1973?

A opção socialista é rejeitada a pretexto de que afastaria do Movimento certos sectores da burguesia, com os quais se contava para a «grande unidade antifascista», ou, posteriormente, aceite em termos tão ambíguos que só poderia servir para contentar certos sectores do Movimento e isolar outros nunca servindo para uma aplicação prática de tal princípio.  

Nos limites dessa «grande unidade antifascista» surgem como práticas mobilizadoras a luta antimonopolista (e não a luta contra o capitalismo), a luta pelas liberdades fundamentais (e não a luta contra o aparelho de estado burguês), a luta contra a guerra colonial em termos humanitários (e não em termos de luta de classes).

 

PRÁTICA ANTIDEMOCRÁTICA

Todo este retrocesso, no que respeita aos princípios e prática do Movimento, está intimamente ligado a outro retrocesso que se tem vindo a verificar, relacionado com o democratismo de base – a retomada da direcção pelas cúpulas. Assiste-se a uma prática antidemocrática manifestada claramente, entre outros nos seguintes pontos:

  • a) Atribuição de voto individual aos elementos da executiva na comissão distrital.
  • b) Proliferação de «delegados» na Comissão distrital, que nada representam, ou por serem de comissões socioprofissionais de que não se pode afirmar a existência, ou de grupos de jovens mulheres, trabalhadores, que são desdobramentos de certas bases. Por outro lado, manifesta-se relutância na aceitação de delegados de algumas bases.
  • c) Deslocação de grupos de elementos da base estudantil a outras bases no sentido de aí obterem maiorias formais quanto a pontos tidos por importantes.
  • d) Insuficiente e, por vezes, distorcida informação feita às bases do que se passa no Movimento.
  • e) Discriminação e tentativa de isolamento de algumas bases do Movimento.

 
  

EXPLICAÇÃO DE UMA LINHA POLÍTICA – OPÇÃO SOCIALISTA

Em 1969 o movimento CDE definiu-se como tendo o objectivo do socialismo, o que passou a designar-se por «opção socialista».

Não se pretendia com isso, nem pretendem aqueles que hoje continuam a lutar pela opção socialista, que um movimento como este, legal, alcançasse pelos seus próprios meios, o socialismo. O socialismo será alcançado pela conjugação de várias formas de luta, de que as mais importantes serão com certeza as resultantes da organização dos trabalhadores.

Mas o movimento legal, aceitando existir nas nossas condições, não pode deixar de se integrar nesse objectivo global, que tem de ser comum a todas as lutas e contribuirá, com os meios que estão ao seu alcance, para a luta geral pela conquista do socialismo.

O importante será definir se a luta que se trava, seja com o movimento legal, seja com outras formas de luta, tem como objectivo imediato o socialismo, ou tem como objectivo a democracia.

É assim que a luta contra os monopólios e pelas liberdades fundamentais tem como objectivo imediato a democracia e não o socialismo.

Quando se ouve falar em luta contra os monopólios, deverá observar-se porque não se fala então em luta contra o capitalismo. Entendemos nós, quando falamos de em luta contra o capitalismo, que aí estão incluídos, como é evidente, os monopólios. Portanto, sendo contra o capitalismo, somos também contra toda e qualquer forma de capitalismo.

Porque falam então em luta contra os monopólios os defensores da proposta da Executiva? Porque não falam simplesmente em capitalismo? Porque, dentro do capitalismo, apenas estão contra os monopólios, pondo de fora o pequeno e médio capital, os pequenos e médios comerciantes e industriais. Com isso se abre a porta para uma aliança com a pequena e média burguesia.

E que significaria acabar com os monopólios e continuarem os pequenos e médios comerciantes e industriais? Como patrões que são, como burguesia que são, instalar-se-iam no poder e transformariam a sociedade a seu modo. E apesar de serem pequenos ou médios exploram menos, pagam melhor? Que diferença sente um trabalhador ao ser explorado por um pequeno, um médio ou um grande burguês?  

E de resto, numa época de grande concentração de capitais, onde a saída se faz do capitalismo para o socialismo, é impossível voltar atrás, passar para o domínio do pequeno médio capital.

De tal modo aberrante surge esta substituição de luta contra o capitalismo por luta contra os monopólios, que realmente nos perguntamos se os interesses que se pretendem representar são realmente os dos trabalhadores ou se são os da pequena e média burguesias. E perguntamos também quem é que, de boa fé e desejo de encarar de frente o problema, se deixa enganar.

  

LIBERDADES FUNDAMENTAIS E LUTA ANTIFASCISTA

O mesmo se passa quando a proposta da executiva fala em liberdades fundamentais. Com certeza que nós, que lutamos pelo socialismo, também lutamos pelas liberdades (para os trabalhadores, entenda-se, e não para a burguesia se organizar).

Mas pôr como objectivo as liberdades – de expressão, de associação sindical, etc. – é pôr como objectivo uma sociedade democrática burguesa onde não pareceria haver censura, onde as pessoas se poderiam reunir e organizar «livremente», onde os trabalhadores teriam sindicatos para defenderem os seus interesses, mas onde tudo se passaria com o capitalismo no poder, usufruindo dos mesmos benefícios (ninguém pensa decerto que os capitalistas franceses ou ingleses são mais pobres que os portugueses) e permitindo aos trabalhadores uma ilusão terrível, que ao longo de 50 anos nada produziu, pensar que o Estado português, em profunda crise económica e social, organizado com um poder fascista, possa evoluir para a democracia.

A luta pelas liberdades fundamentais enquadra-se na palavra de ordem «antifascista» que substitui o anticapitalismo. Nós, que nos dizemos anticapitalistas, também somos antifascistas, mas entendemos que isso não chega, que o fascismo é apenas a expressão que o capitalismo assume em Portugal e que mais além do que uma luta contra o fascismo é preciso travar uma luta contra o capitalismo. Ao lutar contra o capitalismo devemos denunciar todas as expressões fascistas, devemos lutar contra elas. Mas não devemos criar a ilusão de que o capitalismo, sem a sua forma fascista, é menos capitalismo, é menos explorador.

Mais uma vez aqui são a pequena e média burguesia as interessadas numa luta somente antifascista, desejosas de liberdade para se organizarem económica, social e politicamente.

Também a luta anticolonial tem que ser encarada e explicada duma forma que denuncie o carácter da exploração colonial, demonstrando que a guerra é uma guerra de classes, em que os exploradores lançam uns contra os outros trabalhadores portugueses e africanos. É uma guerra contra os povos das colónias e o povo português e é isto que deve ser demonstrado em vez da perspectiva piedosa e humanitária contra os massacres e contra os prejuízos (o que não quer dizer que não devam ser referidos).

  

ELEITORALISMO, LEGALISMO, REFORMISMO

Estes objectivos e esta forma de encarar os problemas, que surgem em documentos e em discussões, não passam no entanto de palavras. Interessa-nos saber qual a prática. As palavras podiam ser outras (a executiva e o plenário até encaram, por questão de unidade, aceitar simultaneamente um documento em que se fala de opção socialista como objectivo e outro, o seu próprio documento, em que se fala de luta contra os monopólios e pelas liberdades fundamentais como objectivo) a prática seria a mesma. 

A prática do movimento tem sido até aqui eleitoralista, legalista e reformista.

Eleitoralista dentro da medida em que, embora o negando, todo o trabalho tem sido feito com vista às eleições. A campanha de recenseamento foi a grande palavra de ordem levada às bases. Recensear quem, como e para quê? Passada esta campanha fala-se agora em candidatos, lançam-se documentos a falar em candidatura. Daqui até ao acto eleitoral outra coisa se não fará; as ilusões de que alguma coisa possa mudar com as eleições vão sendo alimentadas.

Entretanto respeitam-se os métodos e o modo de vida que o governo permite, interessado que está em ter uma oposição a concorrer ao acto eleitoral. Evita-se tudo o que possa despertar a repressão, caminha-se no terreno demarcado pelo adversário, fazem-se as lutas possíveis dentro da «legalidade», é-se legalista.

Enfim, quando se fala em habitação, em ensino, em saúde, fala-se em termos de «melhorar» as condições de habitação, de ensino, de saúde, protesta-se contra os erros, propõem-se soluções. Não se coloca o problema de maneira a demonstrar que a habitação, o ensino, a saúde só poderão transformar-se em serviço dos trabalhadores, quando deixar de haver qualquer tipo de capitalismo.

Nós outros pensamos que as condições de vida dos trabalhadores só poderão ser modificadas, que a habitação, o ensino, a saúde, só poderão estar ao seu serviço, quando houver uma profunda transformação económica e social, quando deixar de haver capitalismo para haver uma sociedade socialista.

E àqueles que nos dizem que não podemos querer tudo de uma vez só, que temos que lutar por pouco de cada vez, perguntamos que resultados tem dado esse método, usado ao longo destes 50 anos?

Do acima exposto, podemos concluir que, com os princípios definidos pela actual CDE e a prática que lhes corresponde não vão ao encontro dos verdadeiros interesses dos trabalhadores, a participação destes no Movimento está sujeita aos interesses da pequena e média burguesia e, logo, controlada por esta.

  

EM CONCLUSÃO:

– A nossa decisão de abandonar o Movimento foi tomada com pleno sentido de responsabilidade política. Continuar presente no Movimento CDE significava identificarmo-nos com trabalhos que, em última análise, representavam uma renúncia à opção socialista e à tomada de poder pelos trabalhadores, isto é, seria um serviço à causa do reformismo e ainda a nossa identificação com uma prática legalista e eleitoralista.

– O abandono do Movimento não significa a renúncia dos nossos princípios e objectivos políticos e, pelo contrário, constitui a afirmação de que nos encontramos determinados a desenvolver uma prática em perfeita linha de coerência com tais princípio e objectivos.

 
Lisboa, Julho de 1973

Um grupo de democratas

2 Respostas to “«Porque saímos da CDE»”

  1. nelson anjos Says:

    É evidente que, a desconcertante fragilidade e incoerência das ideias expostas, decorridos 35 anos de história, é hoje fácil de criticar.

    Fica-me contudo a ideia que, mesmo avaliado no seu contexto – Julho de 73 – seria já então possível e desejável um entendimento menos infantil, mais consistente e mais esclarecido, do que aquele que o texto veicula. Tanto mais, se considerarmos tratar-se de um manifesto subscrito por um grupo, de alguma forma representante de um sector da elite do pensamento político de esquerda, do país, na altura.

    “Um grupo de democratas” como subscritor de um manifesto socilista? – seja lá o que for uma coisa e outra, salvo melhor opinião parece-me que democratas eram os que ficaram ;-0)

    nelson anjos

  2. Joana Lopes Says:

    Tem razão, Nelson, nas duas críticas que formula:

    – A consistência e a qualidade do documento não são grandes. Mas há que situá-lo não só na época, mas no contexto de uma situação de rescaldo, ainda a quente, de uma cisão. Além disso, ele sai de um grupo de pessoas que, embora numa plataforma comum, tinha grandes diferenças internas – como o futuro veio a demonstrar.

    Quanto à assinatura, essa está mesmo datada. Não me lembro, de todo, se discutimos qualquer outra hipótese. Mas «um grupo de socialistas», por exemplo, seria certamente conotado com o PS de M.Soares, fundado poucos meses antes.

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