Público, 15.11.2008

Depoimento
de Eduarda Dionísio

1. João Martins Pereira calou-se, muito antes de morrer, antes mesmo de estar muito doente. E desse silêncio somos todos – mais os amigos do que os inimigos – responsáveis. Culpados, ia dizer. Mas julgo que ele gostaria mais da primeira palavra. Silenciado, silenciou-se. O esquecimento (histórico e prático) do espantoso jornal que foi a Gazeta da Semana é uma pedra bem aguda neste seu silêncio, para mim insuportável – mais de resistência do que de desistência, eu sei.

2. É verdade que JMP sempre acreditou mais em si como homem de saber (preciso), de pensamento (claro) e de escrita (concisa) do que como “actor” de sessões públicas, ecrãs e microfones. E de cargos. A passagem por uma secretaria de Estado foi uma grande e curta excepção. Aguardo, ansiosa, que alguém se ponha a estudar a sua agenda de trabalho, que ele depositou no CD 25 de Abril.
JMP é um caso raro. Arrisco: o único intelectual de esquerda do pós-guerra, nesta terra, sem qualquer sedução pelo “estrelato”, o reverso da vedeta. Um homem das economias, formado nas engenharias, para quem as artes existiam – literatura, evidentemente; cinema, muito; teatro, algum; pintura também.

3. Lembro-me bem da sua caligrafia miúda e da paginação do que escrevia à mão, com margem certa, mais rigoroso do ninguém, entregue sempre a horas, para publicação.

4. Sem ele, nunca teria tido uma relativa segurança quando me meti em “aventuras”. É difícil de descrever e avaliar a sua invisível participação na V campanha das Europeias do PSR, em 1987.
Nunca os 10 anos da Abril em Maio teriam sido aqueles que foram, se não tivesse sido ele a escrever a convocatória para os dois fins-de-semana de festa onde a Abril em Maio nasceu.

5. Escrevi muitos papéis, anónimos, colectivos, quando ele não estava ou já não estava ali, a pensar “como é que o JMP escreveria isto?”
Por isso, não sei como é possível andar-se pelas esquerdas sem nunca ter lido O Reino dos Falsos Avestruzes.JMP (que não acreditava em frentes com inimigos de raiz tornados amigos de superfície) foi e continuará a ser para mim uma referência que não morre. Sou quase incapaz de escrever sem citar umas frases suas que dizem o que não sei dizer de outra maneira: que os dois anos do chamado PREC foram os únicos em que milhões de pessoas viveram no verdadeiro sentido da palavra; que não é possível confundir “empenhados” e “alisados”.
Aprendi com ele que o “não me apetece” é o maior critério para as recusas – o apetite e o não apetite têm política dentro.

6. De há um tempo para cá, tenho tido saudades do JMP e agora vou ter mais ainda. A sua morte abre um grande buraco, que se acrescenta a outros. Gostava de ter pelo menos 50 páginas para poder falar dele.