Conceição Neuparth (Centro de Documentação 25 Abril)

Falar do 25 e Abril é um impulso individual inevitável em quem, como eu, fez deste acontecimento o seu objecto de estudo mais persistente e apaixonante, mas também uma imposição a que, naturalmente, se compromete o colectivo dos «Caminhos da Memória», consagrado aliás no seu estatuto editorial. Ou seja: a nossa condição de caminhantes da memória não nos obriga só a percorrer esforçadamente os atalhos e veredas dos territórios mais sombrios da ditadura; também nos concede o supremo júbilo de passear pelas avenidas ensolaradas que a Revolução rasgou. Se essas largas avenidas acabaram em congestionadas rotundas em que, em constante pára-arranca, procuramos sem êxito as saídas, isso é já outra história, ou melhor, outro andamento da história.

Neste primeiro andamento, fatalmente breve, dadas as circunstâncias, mas que me pareceu oportuno como abertura ao tema (obrigada Rui, pelos teus magníficos textos sobre Outubro de 1917!) tentarei falar de revolução em geral, para depois passar à nossa, em particular.

Falar de revolução não está na moda. Nos nossos dias, um padrão hegemónico de análise e prática social proclama que a ideia de revolução entrou em crise. Na verdade, o século XX que se iniciou com a própria ideia de revolução no exacto sentido de que o mundo ia mudar de base, terminou com a solene proclamação da sua radical impossibilidade.

Vista como um anacronismo ou uma impossibilidade histórica, face ao processo económico e social do capitalismo – considerado objectivo e fatal, portanto de acordo com a ordem natural das coisas – ela é anatemizada com a marca do voluntarismo, da violência e do totalitarismo.

Esse processo de anatemização apresenta graus e níveis de complexidade que, simplificando, vão da anomalização (Hannah Arendt), à patologização (François Furet) e finalmente à psiquiatrização (Richard Pipes) num movimento que faz deslocar o conceito de Revolução da esfera do político para o da psico-patologia. Estes e outros conceitos, bem como as novas leitura que possibilitam, estão na base de uma cada vez mais aguerrida e apetrechada frente crítica a que a actualidade vem submetendo a ideia de revolução, segundo um processo argumentativo que, de uma forma ou de outra, acaba por percorrer os seguintes topos: deriva totalitária, ameaça dos valores constitutivos da civilização ocidental, carácter artificial (não natural) das revoluções, resultados sociais e económicos catastróficos face à normal e saudável lógica reformadora. Consequentemente: recusa da sua legitimidade social.

É claro que esta desvalorização da ideia de revolução na historiografia contemporânea e a perda do seu imenso património histórico e simbólico na consciência colectiva não pode desvincular-se da ofensiva politica de um liberalismo triunfante que encontra no pensamento dos autores citados (e de tantos outros) um poderoso aliado. Na verdade, o conflito entre revisionismo histórico (que, segundo Domenico Losurdo, um dos seus mais empenhados antagonistas, visa «a liquidação de toda a tradição revolucionária») e historiografia clássica (por alguns designada corrente jacobina-marxista) só aparentemente pode limitar-se a um puro conflito metodológico entre escolas historiográficas diferentes, pois configura, na verdade, um conflito ideológico-político, a que os historiadores não podem subtrair-se.

André Glucksmann, por exemplo, considera que a morte anunciada da revolução é uma gigantesca manipulação histórica, pois que todo o século XX é atravessado «por revoltas inesperadas pelos poderes instalados: levantamentos anticoloniais, resistências antifascistas, insurreições anti-soviéticas das populações de Leste». A sentença de morte a que os seus adversários a condenaram parece então contrariada de forma brutal pela realidade. Que, por sua vez, se encarrega também de corrigir a teoria. Pelo menos, para todos aqueles que não manifestem a arrogância de pensar que «quando a teoria não está de acordo com os factos, tanto pior para estes».

Não por acaso, o termo revolução é aqui substituído por revolta. Por muito que tenham de comum, algo de essencial e nuclear as distingue: a visão holística da revolução, face a uma perspectiva mais fragmentária e parcelar da revolta; o projecto de uma revolução científica, radical e final, face a um levantamento mais espontâneo e localizado. O carácter teleológico dos «amanhãs que cantam» da revolução total, face ao carácter interminável e imperfeito da revolta.

Se falar de crise da ideia de revolução significa falar da clamorosa falência histórica desse modelo de revolução científica, e das consequências inesperadas, indesejáveis, trágicas e perversas desses projectos humanos colectivos, estamos (quase) todos de acordo que a revolução morreu.

Entretanto, a realidade social e política, na sua dramática e plural divisão entre forças que agem no sentido da mudança e forças inibidoras, continua a ser terreno fértil de sementes de revolta. Como escreve François Châtelet «Na condição de abandonar as palas ideológicas das revoluções finais e das contra-revoluções apocalípticas, descobriremos nas revoltas sociais, intelectuais e culturais, nem tudo, nem nada, um impulso da história, o sal da terra».

(Continua)

* 25 de Abril – Ruptura ou Continuidade?

* 25 de Abril – Amnésia ou mentira?

* 25 de Abril – Euforia e resignação

* 25 de Abril – O triunfo do imaginário

* MFA – Herói colectivo

* António de Spínola – O Herói Supletivo

* Vasco e Otelo – A atracção dos opostos

* Cunhal e Soares – Os «inimigos íntimos»

* Costa Gomes – O Mal Amado