Conceição Neuparth (Centro de Documentação 25 Abril)
Neste novo post da série ABRIL [clicar no logotipo no canto superior direito para aceder ao anterior], abordo as leituras «descontinuistas» do fenómeno revolucionário. Isto é, as que o consideram como ruptura ou corte abrupto com uma realidade conhecida e instauração de uma radicalmente nova. Na convicção de que só o cruzamento de vários olhares – da historiografia aos media – nos aproximará do que insistimos em chamar revolução.
Apesar das distâncias óbvias, que não é de mais assinalar, podemos dizer que à semelhança de Tocqueville, também Michelet tem entre nós os seus «discípulos», na forma como encaram o fenómeno revolucionário.
Curiosamente não foram historiadores, pois faltou à revolução de 74 o seu Fernão Lopes, como sugere Medeiros Ferreira, quando no prefácio ao seu Portugal em Transe afirma. «Custou ainda ao autor não ter recriado, pela narração, o clima emocional de certos momentos, nomeadamente o desencadeado pelas grandes manifestações que ocuparam praças e ruas de Portugal entre 1974 e 1975. E, no entanto, Fernão Lopes esteve sempre presente como um paradigma literário soterrado pela moderna forma de escrever história como se esta fosse objecto de relatório administrativo».
Esta operação de resgate de tudo o que jaz soterrado por uma certa forma de escrever (e fazer) a história, ao mesmo tempo que traduz o inegável fascínio por uma narrativa que devolva à história a sua vocação primordial, significa a busca por uma forma que melhor sirva a natureza específica do terramoto revolucionário, entendido como invulgar sucessão de acontecimentos violentos, geradores da máxima concentração de emoções no mais curto espaço de tempo. O que significa que o historiador que queira separar o inseparável, ou seja, as emoções, as paixões (e até as próprias ilusões) dos acontecimentos, corre o risco de deixar de fora o próprio acontecimento.
Reagindo à tendência dominante entre os seus pares, de se descartarem das emoções, sinónimo de irracionalidade que obscurece e contamina a clareza dos conceitos, Medeiros Ferreira avança, cautelosa mas decididamente: «O 25 de Abril desencadeou profundas alterações nos valores e na vida social nacional. Ele marcou uma era, tantas são as ocasiões em que é tomado como referência: Antes do 25 de Abril… só com o 25 de Abril… depois do 25 de Abril… são expressões coloquiais quotidianas que se impuseram nos últimos 20 anos. A data de 25 de Abril de 1974 marca, pois, o séc. XX e divide a sociedade em antes e depois. Será isso uma revolução? É certamente uma era».
Falando de revolução ou era, o certo é que nos encontramos perante o apaixonante desafio de penetrar nesse vazio conceptual e histórico, nessa suspensão do tempo, nesse rasgão do tecido social, ruptura com o conhecido e origem de algo radicalmente novo que foi o 25 de Abril.
Nesse desafio, os nossos Michelets foram sobretudo os poetas e os escritores que, a quente, nos deram impressivos relatos daqueles dias de brasa, fazendo o que só a literatura sabe fazer: a aproximação do acontecimento pelo seu lado interno, mais íntimo e directo, mas também mais fragmentado e caótico. Sem leituras retrospectivas ou prospectivas, que ensombram como duas transcendências a intensa luminosidade do presente, esta é-nos restituída num grau de pureza extremo.
Esta a razão da grande popularidade das memórias, testemunhos, biografias, que a experiência revolucionária tem inspirado e que, num outro registo (diferente mas não oposto ao da ficção) possibilitam uma outra história, feita de ambientes, sociabilidades, formas de pensar, valores e sensibilidades. Enfim, uma impressão de vida extremamente sedutora e útil.
Em paralelo, os media reflectem e alimentam esse genuíno interesse, muitas vezes, é certo, com preguiçosa insistência em formatos testados e de sucesso garantido. É o caso das repetidas e redutoras leituras da revolução como momento acima de tudo lúdico, ou mesmo folclórico, consagrado pelo estafado «Onde é que tu estavas no 25 de Abril?»
A festa, que não deixa de ser uma componente essencial do fenómeno revolucionário, assume aqui uma centralidade exclusiva que empobrece e compromete a compreensão dos graus de intensidade até ao paroxismo, com que se viveram aqueles tempos de exaltação e de vertigem, mas também de perturbação e de angústia, porque neles se jogou a própria vida. Ora essa experiência-limite não se recupera através de uma vaga nostalgia, que de tão vaga, acaba na pragmática validação da máxima «Quem aos 20 anos não é marxista é porque não tem coração. Quem aos 40 ainda o é, é porque não tem juízo!».
Falemos então da idade sem juízo (se quisermos da idade da inocência) das suas aventuras e peripécias, curiosidades mais ou menos «saborosas» pelo seu ineditismo, bizarria e excentricidade. Mas não encerremos a revolução nessa espécie de álbum de família que folheamos com a terna bonomia com que olhamos os inevitáveis excessos da juventude.
Sendo certo que os excessos (de jovens e menos jovens) não são estranhos à revolução, o que mais perturba é que, regra geral, são os mais eufóricos de ontem, os mais resignados e desencantados de hoje, os mais apressados a situar a revolução numa espécie de lugar exótico, limitando-se a exclamar: «eu estive lá!».
Paradoxalmente, esta leitura de dentro, sob a capa da aproximação vivencial e afectiva, acaba por instaurar um grau de estranheza e distanciação semelhante às leituras exteriores de que falámos a propósito das versões continuistas. O que parece estar próximo, está afinal suspenso num tempo e lugar longínquos, estranhos, irrecuperáveis. O passado visto como reserva arqueológica, habitada por gestos, palavras e sons anacrónicos e definitivamente arquivados.
Perguntar «Onde é que tu estavas no 25 de Abril?» tem de ter outro sentido.
(continua)
Segunda-feira, 15.Dez.2008 at 11:12:05
Não é a forma – quase poética, e por isso muito bela – que Manuela Cruzeiro utiliza neste seu texto para falar de coisas da história, a razão da minha perplexidade. Em discussões sobre se o 25 de Abril teria sido ou não uma revolução, também não me meto. O que me parece é que, a “ … ruptura com o conhecido, e origem de algo radicalmente novo que foi o 25 de Abril …” não terá sido assim uma ruptura tal, se atendermos a que “ … são os mais eufóricos de ontem, os mais resignados e desencantados de hoje …”.
Independentemente da forma como uns e outros classificam a data – revolução ou outra coisa – penso terem sido atribuídos ao 25 de Abril, por uma literatura por vezes descuidadamente épica, virtudes e marcos que ele de facto não alcançou, ou que pura e simplesmente não lhe pertenciam.
Apenas a título de exemplo, permito-me juntar mais uma frase de referência às que Manuela Cruzeiro refere: “25 de Abril: o dia da Liberdade”. Por mim, muito embora o que para a maioria aqui possa haver de heresia, penso precisamente o contrário: é o 25 de Abril que é credor da Liberdade e não o contrário.
A Liberdade é anterior ao 25 de Abril e à democracia, que são expressões dela. Uma breve passagem por Caxias e Peniche permitiram-me perceber que dentro das cadeias havia gente muito mais livre, do que a maioria dos que se encontravam cá fora e pensavam que o eram.
Entre outros, parece-me necessário desfazer este equívoco originário – do 25 de Abril que trouxe a Liberdade – e que confunde esta com as liberdades formais e administrativas próprias do modelo político democrático.
nelson anjos
Terça-feira, 16.Dez.2008 at 01:12:23
Mais uma vez, muito obrigada, Nelson, pela persistente, exigente e rápida reacção ao meu novo post sobre Abril.
Penso, contudo que o seu texto, apesar de breve, concentra um conjunto de questões tão vasto, complexo e desafiante que não tenho a pretensão de responder a todos. E mesmo às que tento responder, não sei se o farei satisfatoriamente.
1. As leituras Descontinuistas sobre o 25 de Abril, ou seja, basicamente as que o consideram uma revolução são, por razões já expostas anteriormente, escassamente representadas na historiografia. Ao contrário temos ao nosso dispor um vasto filão literário que, inspirando-se directamente na experiência vivida pelos protagonistas directos dos acontecimentos nos dá um retrato tão vivo e intenso que não podemos dispensar se quisermos falar de revolução. Por ex. não conheço melhor radiografia desses dias de brasa, do seu antes e do seu depois, do que a obra poética de M Alegre ( passe a publicidade, que ele não precisa!) como não conheço imagens mais intensas do momento revolucionário do que o ciclo de poemas que Sophia lhe dedicou.
2. Dir-me-á que falo de excepções, uma vez que a revolução foi e é tema de literatura de muito má qualidade. ou até de uma literatura irremediavelmente datada.Certíssimo. Mas para o efeito, embora a grande literatura nos dê muito maior prazer estético, no limite um mau romance ou um mau poema pode ser precioso para o registo de um conjunto de emoções, de sentimentos, de imagens que são a matéria prima das revoluções.
3.Daí serem os escritores os melhores intérpretes desse tempo saturado de acontecimentos, mas fortemente dominado pelo imaginário e constituído por elementos da mesma constelação: crenças, ilusões, símbolos, mitos e heróis. Como escreveu F. Furet ‘a revolução é o imaginário de uma sociedade transformado no tecido da sua história,
4. A difícil relação Euforia/resignação, tem a ver com algo que Eduardo Lourenço já tratou magistralmente: a nossa esquizofrenia, o nosso labirinto das polarizações do tudo ou nada, ou melhor ainda: a nossa original forma de viver os grandes acontecimentos da nossa história: como espectadores de nós próprios, ausentes de nós mesmos, descentrados. De alguma forma gozámos aquela revolução (daí o excessivo peso da festa nos registos memorialistas) mas não a fomos.
Ps: registo com muito agrado o seu gosto pela forma que designa ‘quase poética’ da minha forma de falar das coisas da história. Tomo a referência (obviamente exagerada, mas muito lisongeira) como um sinal da sua concordância com uma história que não seja ‘mero relatório administrativo’ (Medeiros Ferreira dixit)
Terça-feira, 16.Dez.2008 at 05:12:09
Não me prestando a exercícios de falsa modéstia, considero contudo não reunir os requisitos mínimos para merecer uma lição com esta qualidade, e, além do mais, grátis.
São apenas 6.30 h. da manhã, aqui em Luanda, e já ganhei o dia.
O meu muito obrigado, Manuela.
nelson anjos