O primeiro texto desta série pode ser lido aqui.
Enumerámos no post anterior os pequenos núcleos simbólicos da democracia pós-revolucionária, assim como as causas que, no entender do autor, os fazem frágeis, desgarrados e dispersos. É que, para além de reflectirem antigos traumas de uma burguesia historicamente inconsistente, incapaz de um projecto claro de futuro de inspiração europeia, eles reflectem também um outro mais recente e violento: o ter nascido de uma revolução.
Estas duas ordens de factores originam um discurso legitimador complexado e ressentido, construído muito mais pela negativa do que pela positiva. Na ausência de uma grande causa mobilizadora que seria, por exemplo, o combate pela liberdade contra a ditadura fascista, a nova democracia parece preencher esse vazio com um outro combate que é ao mesmo tempo a sua certidão de nascimento e o seu manual de sobrevivência: o combate contra a memória de 74-75, obsessão e trauma da nossa classe política.
Ou seja: A democracia, que na Europa tem correspondido a uma necessidade orgânica de desenvolvimento económico capitalista, aparece entre nós apenas como necessidade de afirmação de uma classe política que construiu a sua própria mitologia á medida do fantasma que queria exorcizar: o gonçalvismo.
‘A política portuguesa tem sido um mero exorcismo destinado a libertar-nos dos demónios e maldições que nos possuíram nesses anos descabelados e os sacrifícios que regularmente nos são pedidos tomam o ar de expiação das terríveis culpas que nos são imputadas por termos posto este pais no caos e na anarquia’ (p.49)
Essa marca genética, tão facilmente decifrável, retira potencial simbólico e conteúdo substancial ao grande mito estrutural da democracia. Por isso, não simplesmente democracia, mas ordem democrática, instituições democráticas, defesa da democracia, democraticidade das decisões, são uma sequência retórica que invade o discurso político, numa esforçada descoberta daquilo que outros países já haviam conquistado há muito e, portanto, viviam a um nível de evidência e organicidade que dispensava a necessidade de adjectivar aquilo que era a substância da sua prática social e que chamavam tão simplesmente sistema democrático.
Também aqui ficámos pela imitação que frequentemente resvala para o mais vazio e abstracto formalismo. Somos democratas, pois então. Não cumprimos rigorosamente e sem batota as suas regras sagradas?
A política reduzida à sua versão mínima, a ‘normalidade democrática’ confinada à auto-proclamação das virtudes do jogo partidário não chegam, contudo, para alimentar e mobilizar energias colectivas, como demonstram as sucessivas crises que a jovem democracia tem atravessado. Assiste-se então ao recurso a um segundo grupo de mitos, figuras ou ideias que ultrapassem o formalismo e a abstracção em nome de algo mais concreto e visível. São os mitos de salvação.
O maior potencial mobilizador que anunciam é, no entanto mais aparente do que real, e o seu aparecimento é, já por si, um sinal da ‘auto-descrença dos dirigentes das famosas instituições democráticas, na sua capacidade de gerar nesse quadro fórmulas capazes de se imporem pelo jogo simultâneo da autoridade e do consenso’.(p.51/52)
De que falam, pois, os mitos de salvação? Mais do que da possibilidade real de resolver a crise estrutural de uma sociedade, falam ainda e sempre da imaturidade das suas forças políticas, e traduzem a falsa solução de uma fuga para a frente, através de uma figura carismática, investida de excepcionais poderes de mobilização e unificação.
Ao longo destes 35 anos, tivemos vários, mas o período estudado por JMP foi nitidamente marcado por Ramalho Eanes. Na verdade, ele foi até ao apogeu de Cavaco Silva, o símbolo e o garante do regresso do país à ordem e à disciplina fortemente abaladas com o episódio revolucionário.
Vencedor do 25 de Novembro, perfil de militar ‘puro e duro’ nos antípodas da imagem dos capitães de Abril (as patilhas e os óculos escuros dos primeiros tempos suscitam inquietantes paralelismos com conhecidos chefes militares da América Latina) a figura vai-se suavizando: ‘Aliadas as virtudes do beirão, a que uma tipologia de almanaque nos habituou, às virtudes militares, bem conhecidas desde os livros da escola – aí temos a imagem interior feita para nos devolver serenidade e confiança, à qual os especialistas de marketing político ajustam uma adequada imagem exterior cuidando-lhe do penteado, do fato, da pose, ou mesmo do discreto humor/sorriso programados’. (p. 64/65)
Eis, segundo JMP, o retrato-robot do salvador ou regenerador, a que ciclicamente recorremos, numa reciclagem ocasional e preguiçosa, em que o ritmo a que criamos e devoramos os sucessivos e fragilizados ‘heróis’ é directamente proporcional à ancestral impossibilidade de contrapor a esse resignado demissionismo (que outros chamarão destino ou desígnio…), uma ideia para Portugal (‘Falta aqui uma grande ideia ó Pascoaes!). Uma ideia apenas, exige JMP, um simples projecto que aproxime este regime do modelo que escolheu – uma democracia representativa parlamentar – mas que se tornou na sua grotesca caricatura.
Escrevia ele em 1981: Como é possível que, sete anos depois, se não tenha ‘recuperado a economia’, recorrendo às ‘grandes cabeças’ de um Constâncio, de um Silva Lopes, de um Jacinto Nunes, de um Cavaco, de um Salgueiro? Como é possível que, esmagada a ‘euforia popular’, não tenha ao menos esta sido substituída pela ‘euforia dos empresários’ (o que, não sendo agradável, seria lógico) mas apenas pela dos especuladores, contrabandistas, passadores de divisas, ‘advogados de negócios’, traficantes de influências, dos novos-ricos das luvas e dos favores – enfim, de quem se aproveita da fragilidade do Poder e não da sua força? (p.49)
Como é possível? Interrogam-se aqueles que ainda conservam essa capacidade, em 2009.
(continua)
Segunda-feira, 21.Dez.2009 at 07:12:20
O país da Diana Andringa é grande com’o caraças. E, quando o local de trabalho é o país, corre-se o risco de, ao sair de casa de manhã, regressar-se apenas oito ou quinze dias depois. Foi o que me aconteceu mais uma vez, regressando contudo felizmente ainda a tempo de ler o texto da Manuela Cruzeiro e deixar mais uns desabafos.
Em certa altura da minha actividade profissional fui chamado a participar em programas de investigação aplicada, na área das radiocomunicações, tendo tido então oportunidade de privar de perto com alguns doutores, e outros tantos doutorandos. E apercebi-me que um dos seus objectivos principais consistia em produzir “papers”. Muitos “papers”. Quantos mais “papers” melhor. Percebi também posteriormente que a generalidade dos tais papers mais não era que plágios de outros papers, eles por sua vez também já descendentes em 3ª ou 4ª geração de gloriosas gerações anteriores de papers.
Claro que eu já sabia que Goethe sempre olhara a comunidade académica com uma cáustica e distante sobranceria; (aquela do “quem não sabe, ensina” só pode ser de gente mazinha e despeitada …). Nietsch, o maldito, esse nunca sequer foi bem aceite na universidade. Stuart Mill e muitos outros nunca a frequentaram. Para já não falar do mais radical de todos eles, Jesus Cristo, que, detentor do saber que lhe atribuem os seus cronistas (também conhecidos no meio por evangelistas) parece ter sujeito não poucas vezes a vexames os doutores do Templo – a universidade de então. E ainda por cima, ao que parece, até se deu ao luxo de não deixar qualquer “paper” escrito.
Ciente de tudo isto, e se não me falha a memória, creio que foi Delleuze (ou Steiner?) que alguma vez escreveu, algures, que a barreira mais difícil de transpor para afirmar um novo conhecimento, é o conhecimento já existente e oficialmente reconhecido. E o Galileu que o diga! – ia pagando com a pele as suas “heresias”.
Não fora a experiência que já referi, e continuaria a remeter estes comportamentos para razões de mau feitio, nuns casos, despeito noutros, e a alimentar a esperança de que ali para os lados do mar Morto, mais dia menos dia, fossem também encontrados uns paperzinhos devidamente assinados: J.C.
Ora, embora não tomando a parte pelo todo, que na circunstância é grande – a parte – quem sou eu para não alimentar também as minhas sérias reservas relativamente à tal ilustre – já vimos que algumas vezes nem tanto – comunidade académica?
Servem estes considerandos para realçar o que me parece ser a saudável irreverência da Manuela, mais uma vez patenteada neste texto, relativamente aos cânones do tal saber oficialmente homologado, fazendo coro com JMP, e não temendo arriscar caminho a corta-mato e de pé descalço, – que é como quem diz, sem rede – por atalhos menos ortodoxos, estando-se literalmente nas tintas, ao que me parece, para o que possam pensar ou deixar de pensar os tais academicamente correctos.
nelson anjos