Poderia ter sido de outro modo se em Portugal houvesse burguesia forte, coisa que não havia nem há. E não vou ser eu a lamentá-lo.

João Martins Pereira

Há livros que, antes mesmo de serem lidos ou sequer folheados, só pelo título, parecem prometer descobertas que estranhamente nos atraem e inquietam. Um pouco como se deles esperássemos uma revelação e ao mesmo tempo temêssemos que essa tão alta expectativa não resistisse aos primeiros minutos de leitura. Nessa incerteza vivemos algum tempo, alimentado de uma calma tensão que afinal nos prepara para o momento da verdade, do qual surja algo de decisivo que só pode ser a decepção ou o deslumbramento. No Reino dos Falsos Avestruzes é, para mim, um desses livros, cujo título improvável e algo misterioso foi a antecâmara para os momentos de prazer anunciados (e plenamente alcançados) da sua leitura.

George Steiner fala de livros que são «presenças reais» e Eduardo Lourenço fala de alguns como «livros-acto», e para mim estamos perante um desses casos. JMP joga-se inteiro nesta obra de balanço de um percurso individual e colectivo profundamente enlaçados, que tendo como cenário e horizonte o Portugal pós-revolucionário, é também uma lúcida e implacável auto-reflexão geracional e pessoal: «julgo que alguém irá detectar neste livro um sem número de ajustes de contas – e com isso ‘lavar daí as suas mãos’. É claro que haverá nisso alguma razão, certo como é que começo por ajustar algumas contas comigo próprio. Julgo mesmo conveniente acentuar que, por muito que pareça estar a falar de outros são inúmeras as vezes que me auto-retratei sem excessiva piedade» (p.9/10).

Na verdade, sem excessiva piedade, quer com a direita quer com a esquerda em que se filia, JMP regressa em 1984 (recorde-se que data de 1971 uma obra sua intitulada justamente Pensar Portugal Hoje) ao imenso filão que, genericamente e das mais variadas formas, reflecte a persistente e quase obsessiva questão da identidade nacional. Tema por demais abrangente e vago que tem servido para as mais fantásticas construções ideológicas as quais, em vez de fonte de auto-conhecimento, são antes formas de perpetuação de imagens distorcidas e falsas sobre a realidade nacional, o seu passado e o seu lugar no mundo de hoje. É a tão falada «imagologia portuguesa» de que Eduardo Lourenço faz o mais brilhante e certeiro diagnóstico, arriscando com a sua finíssima ironia (as mais das vezes tão mal compreendida!) a terapêutica da psicanálise colectiva.

JMP foi, parece-me, um dos muitos que leu com indisfarçável admiração esse fascinante Labirinto da Saudade, mas foi dos poucos que com ele dialogou, num confronto «corpo a corpo» com aquele que considera «o mais brilhante livro sobre a sociedade portuguesa publicado nos últimos anos» (p.16).

Incomodou-o visivelmente (e creio que um tanto precipitadamente se atendermos à tal ironia lourenceana) a sugestão de regressarmos todos ao divã de Freud…. Mas incomodou-o sobretudo a ideia, repetida até à exaustão, de que temos uma forte mitologia nacional, uma hiper-identidade, que nos defende de todos os acidentes da história, receita segura (quase milagrosa!) contra todas as crises. Porque, afinal, é a direita que tem aproveitado e mesmo explorado freneticamente esse verdadeiro balão de oxigénio para a sua sobrevivência quer antes quer depois do 25 de Abril.

Compete pois à esquerda não só denunciar, mas de alguma forma fazer a arqueologia e a genealogia (Foucault) das forças que sustentam e se sustentam desse complexo sistema de mitos. Partindo de uma concepção de mito como certas ideias-chave que adquirem esse estatuto na medida em que induzem tendencialmente leituras do domínio natural (Barthes) escondendo a sua origem e função ideológica (Marx, e também Gramsci) JMP, com uma «quase heróica perseverança», analisa a mitologia politica do pós 25 de Abril, a partir das seguintes questões:

«O que são as nossas classes dirigentes? De onde vêm? De onde lhes vêm os ideais democráticos? Como procuram articular o poder político com o económico? De que condições dispõem para conseguir uma efectiva hegemonia?» (p.30).

O mapeamento exaustivo dos principais núcleos mitológicos da burguesia pós-revolução – iniciativa privada, libertação da sociedade civil, constituição, ou melhor revisão constitucional, CEE, e outros, todos agrupados em torno do grande mito da democracia – reflecte afinal uma desesperada multiplicação de pequenos mitos sem o potencial de consenso e mobilização dos grandes desígnios nacionais. É que um grande desígnio é um sonho impossível para uma burguesia insegura, dispersa por várias facções e sobretudo incapaz de ultrapassar os traumas do seu próprio nascimento revolucionário. O último de que me recordo foi a mítica adesão à CEE… a partir dai vieram as expos, os campeonatos de futebol, os Magalhães…

Entretanto o fantasma da revolução continua aí, por detrás dessa sucessão desgarrada, desconexa e frágil de pequenos núcleos mitológicos, condenando-os a uma dupla impotência: internamente perdem no confronto com a intensidade dos mitos revolucionários, responsáveis por inesperadas e surpreendentes «recaídas». Externamente perdem, porque são pouco mais do que baratas imitações de modelos das tradicionais burguesias europeias.

Acontece que, mais do que sobrepostas, estas duas impotências se entrelaçam numa complexa relação de reciprocidade: «As mitologias tradicionais das burguesias europeias vêem-se aqui sobredeterminadas por fantasmas, traumas, complexos vários que as impedem de sedimentar» (p. 26).

Curiosa e sintomática esta concessão ao discurso psicanalítico de Eduardo Lourenço. Ou então desejo meu de juntar duas das minhas «presenças reais»: No Reino dos Falsos Avestruzes e o Labirinto da Saudade.

(continua)

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