Guiné 1964

 
Um texto de José Augusto Rocha (*) 
 
A 25 de Novembro de 1963, embarquei no cargueiro «Ana Mafalda», (1) adaptado à pressa para transportar outra e nova carga – homens soldados – rumo à guerra colonial da Guiné.  A partir desta data, como que começou outro tempo na minha vida e, tantos anos passados, vem dar testemunho breve da memória daquela guerra o ex-tenente miliciano, José Augusto Rocha.

Fá-lo em condições privilegiadas de um amadurecimento de tempo passado, ou seja, potenciado por aquilo que um dia tão bem recordou Eduardo Lourenço, citando Teixeira de Pascoais: «o futuro é a aurora do passado». Na verdade, desde aquela longínqua data de 1963 até aos dias de hoje, já lá vai muito futuro, o suficiente para re-iluminar uma vivência pessoal que agora transmito pela primeira vez e que sei comporta elementos desconhecidos daquela guerra.

Nos anos sessenta, a ordem de incorporação e a ida para a guerra colonial estava indisfarçavelmente ligada à repressão política e à PIDE. Esta articulação era particularmente visível em relação ao movimento estudantil e em especial aos seus dirigentes. As medidas de repressão do aparelho do Estado, ao nível das forças armadas, eram várias e diversificadas e iam desde a incorporação em  estabelecimentos militares disciplinares de correcção, como o de Penamacor, onde foi internado, por exemplo, o Hélder Costa e o João Morais, até incorporações antecipadas e transferências arbitrárias de quartéis, de acordo com estritas ordens da polícia política (PIDE).

No meu caso, libertado do Forte de Caxias, em Julho de 1963, fui incorporado logo em Setembro, para minha total surpresa, no «Regimento de Lanceiros 2», conhecido como o quartel da polícia militar, unidade de confiança do regime político do Estado Novo. Vim a encontrar aí outro dirigente associativo, da Associação dos Estudantes da Faculdade de Letras, o João Paulo Monteiro, filho do exilado político Adolfo Casais Monteiro. A surpresa de imediato foi esclarecida. O treino militar do 1º ciclo, naquele Regimento, era muito duro e de verdadeiro castigo e, logo que terminou, ambos fomos transferidos para a Escola Prática de Infantaria de Mafra, por despacho do então Ministro da Defesa Nacional, General Mário Silva.

Cumpre assinalar que ambos gozávamos de forte simpatia entre os cadetes instruendos e mesmo dos Alferes instrutores do Quadro. Fui chamado ao Comando e aí o Capitão Semedo (irmão do actor de teatro, Artur Semedo) fez questão em dizer que a convocatória queria expressar o seu profundo desacordo pela transferência, mas que ela era exterior ao Regimento e provinda de ordens do poder político. Terminada a instrução em Mafra, fui colocado, como Alferes Miliciano, no Quartel de Caçadores 5”, em Lisboa. Esta unidade militar era a unidade da confiança política do governo e comandada pelo Major Portugal, conhecido elemento da Legião Portuguesa. Tal como tinha acontecido no «Regimento de Lanceiros 2», cedo gozei de grande simpatia junto dos Alferes Milicianos e do próprio Capitão da Companhia, Capitão Vieitas. Por força disso, fui escolhido pelos oficiais milicianos para integrar a mesa do Comando no dia oficial da Unidade e para em nome deles fazer o discurso oficial.

Não tardou que novo despacho do mesmo General Mário Silva ordenasse a minha transferência para Évora, para a Companhia de Caçadores de Infantaria 557, rumo à Guiné, sendo que a Companhia donde fui transferido embarcou para um lugar relativamente calmo, a cidade da Beira, em Moçambique.

Esta transferência foi muito controversa, com oposição, por escrito, do próprio Comandante da Companhia. Sincero ou não, por sua vez, o Major Portugal chamou-me ao Comando onde manifestou o apreço que os oficiais tinham por mim e sugeriu que apresentasse uma exposição escrita, que ele a remeteria às autoridades superiores. Recusei e lá fui para a Guiné, no «Ana Mafalda».

Cheguei à Guiné em 3/12/63 e, logo em 14 de Janeiro de 64, a Companhia 557, comandada pelo Capitão João Luis Ares e de que eu era o segundo comandante, por ser o Alferes Miliciano mais classificado, foi integrada na maior operação de toda a guerra colonial, a «Operação Tridente», destinada a libertar a Ilha do Como, onde o PAIGC tinha a sua bandeira hasteada, simbolizando a primeira região libertada da Guiné Bissau.

Fui, então, transitoriamente retirado da Companhia e fiquei em Bissau como elo de ligação, para o envio de alimentos e o mais necessário à sua sobrevivência.

Em Bissau, acabei por formar uma espécie de tertúlia no «Café Bento» – à data, frequentado também pelo hoje Major Tomé e pelo advogado Orlando Curto – com o cirurgião do Hospital Militar de Bissau, António Almeida Henriques, que conhecia de Viseu, donde ambos éramos naturais, e o reanimador daquela equipa cirúrgica, António Rosa Araújo, que mais tarde, muitos anos depois, viria a defender, como advogado, no conhecido processo judicial «caso dos hemofílicos», também conhecido por «processo do sangue contaminado».

Estes dois oficiais médicos não escondiam a sua discordância com a guerra colonial e deles – e da guerra – vou contar duas significativas memórias, para, de seguida, passar à «Operação Tridente».

Um dia, as tropas portuguesas, numa operação não longe de Bissau, acabaram por capturar um dirigente da guerrilha, que gravemente ferido, acabou por dar entrada no hospital militar, onde foi operado pelo Almeida Henriques. A PIDE montou uma segurança especial no hospital e o Almeida Henriques e o Rosa Araújo tudo fizeram para retardar a alta do prisioneiro, que iria cair nas mãos da PIDE. Até que um dia foi marcada a sua saída para o dia seguinte. Quando na madrugada desse dia Almeida Henriques foi ver o prisioneiro, este estava cheio de sangue, com os intestinos todos fora da barriga, que ele tinha aberto com uma lâmina de barbear para, assim, evitar – o que conseguiu – os interrogatórios daquela polícia.

António Rosa Araújo – infelizmente já ceifado pela morte – era um cidadão exemplar, cheio de determinação e coragem, com quem vim a fazer uma das melhores amizades da minha vida. O «Movimento Nacional Feminino» fazia umas incursões femininas à Guiné, para fazer a chamada acção psicossocial e retemperar as solidões de muitos elementos do exército…

Um dia, coube a vez da própria presidente do movimento – Cecília Supico Pinto – ir a Bissau e visitar o Hospital, acompanhada pelo Comandante em Chefe, Brigadeiro Louro de Sousa. Logo que chegaram, este mandou chamar o «oficial de dia», na circunstância o Rosa Araújo, que se recusou a comparecer, alegando afazeres médicos, tendo enviado, em substituição, o «sargento de dia». Foi um evento considerado da maior gravidade – grande bronca! – e o Rosa Araújo foi de castigo para o mato, donde regressou passados alguns dias, por ser insubstituível no Hospital.

Um terceiro testemunho e este bem diferente, diz respeito aos primeiros sintomas de pública contestação da própria guerra. Um dia fui abordado no sentido de poder auxiliar um Capitão que se recusava a continuar a combater nas condições que existiam. Esse capitão era Barão da Cunha, que contava com a solidariedade de um outro, o Capitão Cavaleiro. Com ele, dirigi-me ao Notário de Bissau e aí foi feita uma procuração em nome de Mário Soares e, penso, não tenho a certeza, que também de Salgado Zenha, para que o pudessem patrocinar, para a hipótese de vir a ser detido, o que logo aconteceu. Este oficial veio preso para Lisboa e, ao que me informaram, encarcerado na Trafaria, mas nunca soube dos desenvolvimentos posteriores que este caso assumiu, mas que considero da maior importância, porque marca o início de uma contestação militar mais vasta e intensa que viria a acontecer.

Existe informação vária sobre as batalhas e forças militares que integraram a «Operação Tridente», mas nenhuma sobre a C.C.Ç. 557, de que eu era, como referi, o segundo Comandante. «A operação Tridente», assim chamada por integrar os três ramos das forças armadas portuguesas, implicou efectivos na ordem de 1200 homens, aviões, fragatas e lanchas de desembarque. Na rigorosa descrição feita pelo oficial do exército da república da Guiné Bissau, Queba Sambu, a ilha do Como tem uma superfície de 210 kms quadrados, 166 dos quais são lodo das marés, sendo constituída por um litoral de terrafo, lamaçais que, na maré baixa chegam a atingir quatro kms entre a terra firme e os canais, de fluxo e refluxo marítimos. Seguindo-se ao terrafo, estendem-se as bolanhas (arrozais) com alguns palmares, sendo o centro da ilha de matagal. Nas bolanhas, de largos canais de irrigação, o nevoeiro só permite uma visibilidade de três a cinco metros.

Foi nesta ilha que, no dia 14 de Janeiro de 1964, desembarcaram os 145 soldados e oficiais da C.C.Ç. 557, numa operação muito arriscada em que os soldados foram salvos de asfixia e atolamento completo no lodo, por cordas lançadas pelas lanchas de desembarque. O médico da Companhia, de nome Leitão – aliás um bom fotógrafo – tirou fotografias do acontecimento, mas o rolo acabaria por ser confiscado e perdeu-se esse testemunho documental.

A operação terminou de forma dramática para as populações da ilha, tendo sido destruídas e queimadas as tabancas (aldeias indígenas) aí existentes, e abatidas centena e meia de vacas e tudo o mais que constituía a forma de viver daquelas populações, como máquinas de costura, camas, roupas, etc…

As tropas regressaram a Bissau e foi deixada na mata do Cachil a CCAÇ 557, num aquartelamento feito à pressa com troncos de palmeiras na vertical e em tudo parecido a um aquartelamento índio. Sem água potável, sem alimentação e expostos à malária e a severas condições de carência e sofrimento, estes homens totalmente isolados e comendo meses a fio só rações, dependiam do mundo exterior de uma barcaça que, de vez em quando, ia ao centro de Comando situado na povoação de Catió. Encurralados naquele curto espaço de mata, lamaçais e bolanhas, estes homens viveram uma verdadeira odisseia de isolamento e condições infra humanas de sobrevivência, acossados por acções de ataques ao quartel e flagelações das forças do PAIGC, entretanto regressadas à Ilha, após a retirada das tropas da Operação Tridente para Bissau.

Embora oficialmente conste que a Operação Tridente desalojou o inimigo da ilha do Como, a verdade é que a guerrilha a retomou e actuou nessa operação de acordo com a flexibilidade de ir e vir, evitando sempre o combate frontal e concretizando no terreno a subtil definição do guerrilheiro de Che Guevara, segundo a qual «o guerrilheiro é o jesuíta da guerra, quer isto dizer que os elementos essenciais da guerrilha são a surpresa, a perfídia e a acção nocturna.»(2)

Quando o capitão da Companhia foi de férias, vim de Bissau para o quartel de Cachil, para assumir as funções de comando, tomando contacto com homens destruídos psicológica e humanamente por condições tão duras de sobrevivência e onde situações de saúde física e mental se agravavam, dia a dia, à espera do dia redentor de uma substituição por outros efectivos.

Vivia-se este ambiente, quando um dia apareceram, lá no céu, dois aviões «Fiat», que, para surpresa nossa, começaram a picar sobre o quartel e a metralhar toda aquela zona, nomeadamente junto ao improvisado cais do rio, onde estacionava a barcaça de ligação a Catió.

Em desespero, ordenei que fossem lançados para o ar very-lights e um grupo avançasse com a bandeira nacional, para mostrar que éramos tropa amiga, ao mesmo tempo que por via rádio comunicava com o Comando de Catió, para que o engano fosse desfeito. Os aviões desapareceram no horizonte e ninguém ficou ferido. Na minha vida já tive dois acidentes graves de viação, mas aviões a jacto a picar sobre a minha cabeça, é acontecimento digno da linguagem própria de uma crónica de Fernão Lopes, quando no cerco a Lisboa, dizia: «era coisa espantosa de ver…».

Junto ao cais, entretanto, ficaram os destroços dos garrafões de vinho, grades de cerveja e rações de combate, que tinham sido abastecidos naquele dia à companhia!!!… O médico da companhia tirou fotografias do ataque, que infelizmente não disponho para ilustrar esta minha memória.

Fui a Bissau e protestei junto do Comando e encontrei-me com os aviadores que me informaram que tinham acabado de chegar à Guiné e faziam uma operação de reconhecimento, pensando que se tratava de forças inimigas… Que eu saiba, só houve dois enganos em ataques da aviação: este e um outro sobre os fuzileiros navais, de que resultaram, tanto quanto me lembro, dois mortos.

Acabámos por ser rendidos por outra Companhia e enviados para a zona da vila de Bafatá, donde regressei a Portugal a 24 de Novembro de 1965, para terminar o curso de Direito, que a minha expulsão da Universidade de Coimbra e de todas as escolas nacionais, por dois anos, tinha impedido de concluir.

Assim, também concluo, em prosa necessariamente enxuta e breve, esta crónica da guerra da Guiné, que espero ampliar nas minhas memórias, em curso de escrita.

 
(1) – O navio «Ana Mafalda» e o «Ana Rita» pertenciam á família dos Melos e os nomes deles correspondia a nomes das suas netas… Estes barcos transportavam da Guiné amendoim (mancarra em linguagem guineense) que era produzido na zona de população de etnia Fula, por isso, penso que o chamado «Óleo Fula», que anda por aí no mercado, tem a ver com esta origem do amendoim.
(2) – «Manual do Guerrilheiro», Che Guevara.
(3) – As fotografias dizem respeito à construção do quartel do Cachil e nelas se pode ver também os atolamentos de viaturas «Unimog» e construções em zinco dos dormitórios, bem assim os alagamentos de toda a zona do quartel.

 
(*) Biografia de José Augusto Rocha