O primeiro texto desta série pode ser lido aqui e o segundo aqui.

 
De todas as construções simbólicas analisadas por JMP nenhuma é mais actual do que o mito colectivo da Europa, melhor dito da CEE.
Na verdade, este parece ser o mito mais consistente da democracia portuguesa, capaz de substituir e fazer esquecer os muitos que nasceram e morreram no intenso e breve período revolucionário. É aliás assim que os agentes políticos activos na cena política, desde 1976 até ao providencial ano de 1986, o apresentam: como verdadeiro desígnio nacional, capaz de preencher o vazio deixado pelo fim de um período glorioso, o ‘ciclo do império’, agora substituído pelo não menos glorioso ‘ciclo europeu’.
E constata o próprio autor que, num primeiro momento de euforia e entusiasmo, o projecto não deixou de mobilizar energias, multiplicando-se os estudos, seminários, conferências, encontros e até embaixadas culturais, com vista a convencer os portugueses por um lado, e a Comunidade Europeia por outro, das vantagens mútuas da nossa integração. Mas esse impulso dinâmico e empreendedor, além de breve, foi marcado pela ambiguidade: a começar pela confusão constante entre CEE, como projecto puramente económico, e Europa, como grande desígnio político, cultural e civilizacional. Com o nosso proverbial irrealismo, envolvemos o objectivo mais prosaico da salvação económica, de que precisávamos como pão para a boca, em solenes discursos sobre a nossa identidade europeia, em nome de um passado comum, e mesmo de uma dívida histórica do velho continente, para com esta ‘pequena/grande nação’.

Sobrou-nos em retórica o que faltou em trabalho concreto. E tudo começou a piorar quando se percebeu que ‘a Comunidade Económica Europeia não era uma instituição de caridade, nem o Eldorado. Que era preciso estudar e preparar dossiês, e que a grande ignorância em que se mantinha não apenas o povo em geral, mas até os empresários e governantes sobre tão áridas matérias, operaria mais uma vez a fatalidade de nos converter de mensageiros do futuro em suas vítimas.’(p. 56)
De novo JMP se aproxima de Eduardo Lourenço, para concluir que também em relação à Europa cumprimos com uma constância surpreendente o ciclo labiríntico das ‘polarizações esquizofrénicas’ em que parece enredar-se o nosso comportamento colectivo. Oscilando entre o papel de parente pobre da Europa e o de parente rico, hesitando entre o sentimento de passiva submissão por nos sabermos frágeis económica, técnica, ou cientificamente, e o de altiva superioridade, por um passado glorioso, não comparável com o de qualquer outro parceiro europeu, fomos incapazes de olhar com realismo o presente, e de investir nele a energia e ambição necessárias.
Em conclusão: fragilidade objectiva (incerteza do presente) e segurança subjectiva (o que somos por ter sido) fizeram com que, uma vez mais, procurássemos o caminho mais curto e de resultados mais rápidos, que é a salvação exterior.

Esta salvação vinda de fora mexeu pouco com a estrutura arcaizante da sociedade portuguesa, sem autonomia, sem hábitos de intervenção, sem densidade e vivência democráticas. Até porque foi liderada por um partido, o PS, que abdicou da busca pela sua identidade ideológica e consequente implantação social (os resultados eleitorais são outra coisa!) transformando-se em ‘partido do estrangeiro’ no sentido que Gramsci, citado por JMP, lhe dá: ‘Quanto mais a vida económica duma nação está subordinada às relações internacionais, mais um partido particular virá a representar esta situação e a explorá-la com o objectivo de impedir que outros partidos rivais o ultrapassem (….) Na realidade esse partido representa não tanto as forças vitais do seu próprio país, mas a subordinação deste e a sua escravatura económica às nações hegemónicas ou a algumas delas’. E conclui JMP: ‘É, enfim, um partido vazio (de projecto, de imaginação, de convicção, de base social – de socialismo) e, por muito que isso nos custe, condenado’ (p.142)
Para os que pensam que a obra de JMP é irremediavelmente datada, reparem na gritante actualidade de mais esta citação que parece escrita hoje:
A questão não é, pois: ‘que fazer para evitar que o PS se alie à direita, para que se assuma de vez como partido de esquerda?’ Mas outra: ‘que fazer face ao facto muito concreto que é o PS não ser aquilo que gostaríamos que fosse?’ Por mais que se procure esconder esse facto e evitar excessos de linguagem que empurrem o PS para a direita, ou que dêem origem a uma divisão do PS tão perigosa para a democracia (o que é verdade) isso não evita que esses riscos cada vez mais se concretizem, ante o falso espanto e culposa impotência dos que acharam melhor ‘fazer de conta que’, em lugar de enfrentar a desagradável verdade da nossa situação política (p.142/43).
‘Fazer de conta’ é a especialidade dos falsos avestruzes, hoje em dia mais frequentes do que os verdadeiros, não vivêssemos nós em verdadeira contrafacção da história da política e da própria vida.