(Fotografia de João Pina)
Fez oitenta e cinco anos no passado dia 24. E dele se pode dizer com total propriedade que se não trata de uma vida cheia de anos, mas de oitenta e cinco anos cheios de vida. De uma vida que escolheu o caminho da coragem e da dignidade, ontem contra o fascismo, hoje contra a quietude endémica, a indiferença e o cepticismo político e ideológico de uma democracia que não hesita em chamar filofascista. Com uma independência e uma frontalidade a toda a prova, continua o seu combate solitário, quase quixotesco, através de textos livres, indignados, provocatórios, que teimam em furar o cordão sanitário do politicamente correcto, da aceitação passiva de que não há alternativa. Como este, que em jeito de homenagem aqui reproduzimos.
Mitos do Séc. XX – A Democracia
Mito que remonta à governação de Atenas Cidade, já lá vão 2500 anos. Mito ressuscitado no sec. XVIII da era de Cristo pela emergente classe burguesa. Os amigos de Péricles ressurrectos: les gens de bien, gente que tinha alguma coisa a perder. Mito que ficou consubstanciado na Constituição dos EUA de 1777, nos ideais da Revolução Francesa, no poder político exercido pela burguesia de então.
Assim, sim, exclamaram os crédulos. Agora acabaram os abusos e privilégios da nobreza e do clero, o poder será legitimado pelo povo em eleições, os mais aptos, ilustrados e honestos desempenharão os cargos públicos que nunca mais serão ocupados por favoritismo, razões de riqueza ou nascimento. Liberdade, Igualdade, Fraternidade. O mundo civilizado convertido numa grande, feliz e próspera Atenas.
Em Portugal, o mito da democracia também é fruto da época. Constituição de 1820, vitória liberal, etc. Habitou os sonhos dos antifascistas neste século a findar, durante os cinquenta anos salazarentos. Veio o 25 de Abril. E vieram ao assalto o Soares, seus pares e outros exemplares. A desilusão é cruel.
Pelo mundo fora os créditos do sistema democrático também estão pelas ruas da amargura. O espertalhão de serviço cita Churchill (ou lá quem for): «A democracia é o pior dos regimes, à excepção de todos os outros». Assim sossegam a consciência para mais demagogia, mais entorses, promessas de socorrer os pobres e desfavorecidos. Uma rábula de tal maneira desacreditada, que leva meio eleitorado a abster-se de votar. O modelo democrático, tal como está implantado no chamado mundo ocidental e vai sendo imposto aos países menos desenvolvidos, constitui uma máquina bem oleada (lubrificada a dinheiro) para o exercício do poder absoluto da burguesia capitalista. Embora o funcionamento do sistema tenha vindo a degradar-se. A ferrugem – isto é, a corrupção – aparece a todos os níveis. O modelo está esgotado, dizem uns. Está apodrecido, diz a voz do povo. Mas não, dizem eles. Bastam uma reformazinhas, um rendimento mínimo, um torneio de futebol. Dêem-nos ideias, dêem-nos ideias.
Não contem comigo para dar palpites, para fazer crítica construtiva, para propor alternativas. Nessa esparrela não caio eu. E, confesso, custa-me a perceber o que é que pretende gente de esquerda, grupos e partidos, quando afadigadamente fornecem à burguesia receitas homeopáticas, balões de oxigénio, para lhe prolongarem a existência, para a manter à tona de água.
Vem a talhe de foice lembrar o grupo da Seara Nova quando de 1920 a 26 forneceram à I República toneladas de sugestões reformistas. O fascismo agradeceu tomando boa nota delas… e de alguns seareiros. Rodrigues Miguéis, comunista fundador, insistia numa Câmara Técnica em substituição do Senado. Salazar fez-lhe a vontade e criou a Câmara Corporativa. Gente boa, intelectualmente brilhante, este pessoal da Seara Nova. Ilusões também não lhes faltavam.
Nos tempos virtuosos da ascensão do poderio burguês, exaltavam-se as maravilhas e subtilezas do equilíbrio dos três poderes fundamentais: Legislativo, Executivo e Judicial. Este último era a peça mestra, o sustentáculo do edifício do famoso estado de direito. Mito que a actual classe burguesa no poder tenta, desesperadamente, manter de pé. Em toda e qualquer ocasião se afirma enfaticamente que a justiça é igual para todos, doa a quem doer; que os tribunais lá estão para vigiar o imparcial cumprimento das leis, não permitir os abusos do governo ou os deslizes do parlamento. O Zé Povinho abre um sorriso motejador, acompanhado do sacramental gesto. Pois que não há ninguém por estas terras lusitanas que não saiba, que não sinta, que não declare que a justiça portuguesa está ao serviço dos ricos e poderosos, que só castiga e deixa apodrecer nas prisões os deserdados do nascimento, ou da fortuna, as minorias ciganas ou imigrantes, o cidadão desafecto ao sistema. Os crimes de colarinho branco – desvios de fundos públicos, evasão e fraudes fiscais, corrupção e lavagem de dinheiro, falsificação de concursos e candidaturas, poluição industrial, abusos de confiança, etc. – raramente chegam a julgamento. Os processos arrastam-se durante anos até ficarem cobertos por prescrições ou amnistias. Só há rigor e celeridade contra o Pilha-Galinhas ou o Zé Ninguém. Os solertes «rigorosos inquéritos» e respectivas comissões judiciárias ou parlamentares caíram no mais absoluto ridículo e descrédito.
Os quadros superiores da magistratura transitaram do fascismo para a democracia sem sobressaltos de maior nas carreiras. Os juízes do infame Tribunal Plenário foram sendo promovidos e estão hoje reformados com prisões de centenas de contos.
Uma nova vaga de juízes oriundos em grande parte do MRPP e outros grupos esquerdistas dominam actualmente o aparelho judicial mercê de fulgurante ascensão na carreira. A burguesia filofascista adora semelhantes renegados, espera deles bons serviços, paga-lhes a condizer. O Estado de Direito vai continuar arrumadinho lá no fundo da gaveta ao lado do socialismo soarista.
Perante a falência do equilíbrio triangular, o sistema finge acreditar num 4º poder fiscalizador: a imprensa. Agora englobando todos os modernos veículos da comunicação social, incluindo a recentíssima Internet. Ora, todo o mundo sabe como os grandes capitalistas se apoderaram dos meios de comunicação e informação à escala planetária. A propaganda imperialista, a defesa dos interesses do capital cobre todo o globo, atinge o mais remoto povoado nas montanhas. Os noticiários em todos os países de todos os continentes abrem com a devida vénia às iniciativas americanas, às actividades dos ícones da burguesia. Era a BBC, agora é a CNN a referência universal. A aldeia global vem a revelar o mesmo espírito que a aldeia paroquial. A imprensa livre, a expressão independente da opinião, fica relegada para uma situação de semiclandestinidade. O quarto poder está escravizado pelo poder capitalista. Mais um mito que se esvai.(…)
In: Esta Democracia filofascista edição de autor, Lisboa, 1999, Pg. 185 -188.
Quarta-feira, 27.Maio.2009 at 08:05:48
À letra não subscrevo tudo. Mas subscrevo sem reservas o espírito.
E adoro acima de tudo estas provocações da Manuela Cruzeiro aos funcionários da democracia.
nelson anjos
Domingo, 31.Maio.2009 at 11:05:48
Presto publicamente a minha homenagem a João Varela Gomes, de quem tenho a honra de ser amigo, com quem nem sempre concardarei, mas a quem sempre reconheço a dignidade de carácter,a frontalidade inteligente e a coragem. E acima de tudo a honestidadee intelectual, coisa que anda afastada da maior parte da gentinha que neste país se dedica à política. E não posso esquecer a Maria Eugénia, a Gena, mulher de armas, inteligente e de grande sensibilidade, que desempenhou um papel de primordial importância na Associação de Socorro aos Presos Políticos. Houvesse muitos D. Quixote destes…
Sexta-feira, 19.Jun.2009 at 07:06:44
Amigo Artur
Só hoje, com a necessária assistência técnica, me lanço nesta proeza informática; que tem por fim assinalar a recepção do teu brinde de aniversário, o lindo ramo de palavras com que mimoseaste os meus gloriosos 85. São metas/record que ninguém se atreve a propor-se. Acontecem.Como à tua Mãe, que já leva uns anos de avanço. A propósito:uns cravos para ela, bem embrulhados em amizade.
Sexta-feira, 19.Jun.2009 at 07:06:49
Que sobram para ti e família, podes crer, assim como a velha amizade por todo o vosso clan. A Gena ficou também muito sensibilizada Um grande Abraço, até o repetirmos à esquina dos 90.
Do Francatirador, ainda com pontaria
Quarta-feira, 14.Out.2009 at 04:10:03
Estimado coronel Varela Gomes,
Sou jornalista do Público e estou a realizar alguns trabalhos de reportagem/investigação (dois já publicados no jornal, até à data) sobre os impactos e efeitos da guerra civil espanhola em Portugal. Procuro (até agora, sem sucesso) mais informação e, sobretudo, contactos de antigos participantes portugueses no conflito que ainda possam estar vivos. Conheço o seu livro sobre o assunto e gostaria muito de trocar impressões sobre isso consigo. Esatrá disponível para me aturar?
Os meus contactos são os seguintes:
este mail (carlos.pessoa@publico.pt), o telemóvel 962345452 e o telefone fixo 210111180.
Saudações cordiais,
Carlos Pessoa
Quinta-feira, 18.Mar.2010 at 03:03:51
Só agora dei com este post da Manuela Cruzeiro sobre o cor Varela Gomes e como ele é para mim o símbolo do homem de coragem aproveito para lhe deixar, tardiamente é certo, a minha homenagem pelos seus 85 anos, agora já quase a chegar aos 86.
Tive a oportunidade, o prazer e a honra de conversar com ele duas ou três vezes mais demoradamente o que permitiu por ele aumentar o meu apreço.
Conheci-o em 1961 mas não ele a mim. Eu ocupava com o poviléu de Lisboa a plateia do cinema Trindade e ele a tribuna dos oradores que animavam a campanha eleitoral, a campanha possível, naqueles tempos de pseudo-eleições para a Assembleia Nacional salazarista. O então capitão Varela Gomes electrizou a assistência com o seu discurso mas a moderada comissão organizadora da sessão pusera a falar a seguir a ele um republicano velhinho, seguramente muito respeitável mas que foi posto ali para que os ânimos acalmassem e houvesse uma saída ordeira que não trouxesse dores de cabeça aos mais moderados. Mesmo assim fazendo juz ao discurso do capitão ainda uma parte da ssistência animou as redondezas com umas correrias à frente da polícia.
O segundo “encontro” com Varela Gomes foi no dia de Ano Novo de 1962. Tive de voltar à pressa ao quartel-general de Santa Margarida onde cumpria pela segunda vez o serviço militar obrigatório, para “defender a Pátria” ameaçada pelo golpe de Beja que aliás fracassara e levou à prisão Varela Gomes atingido a tiro na tentativa de tomada do Quartel de Infantaria.