Carta a Mário Pinto de Andrade – Clicar para ler
   (Arquivos da Fundação Mário Soares)

 
Conheci-a em S. Tomé, no início dos anos 90, quando a entrevistei para a série “Geração de 60” – mas já há muito conhecia o seu nome e alguns dos seus poemas.

Filha de uma professora primária e de um funcionário dos Correios, Alda do Espírito Santo vem, em meados da década de 40, estudar para Lisboa, onde priva de perto com alguns dos futuros dirigentes dos movimentos de libertação das colónias portuguesas de Áfica, como Amílcar Cabral, Mário Pinto de Andrade e Agostinho Neto.

A casa onde vive em Lisboa, no nº 37 da R. Actor Vale, é, aliás, um dos centros de reunião dos jovens patriotas africanos em Portugal. Aí se passa grande parte da actividade do Centro de Estudos Africanos, idealizado por Francisco Tenreiro e Mário Pinto de Andrade, aí decorrem as regularmente palestras que, sobre temas tão diversos como a Linguística, a Geografia ou a História, visavam uma consciencialização cultural e política em torno das questões coloniais, do assimilacionismo e da defesa do colonizado.

Mário Pinto de Andrade explicava com ironia as vantagens que a casa da família Espírito Santo oferecia aos activistas anti-coloniais:

“As actividades no 37 da rua Actor Vale tinham um ar de família. Primeiro, porque se passava numa família conhecida, a família Espírito Santo. E todos os pretos eram família, não é? E era ao Domingo, ao Domingo à tarde. Estava camuflado por reuniões de pretos em família. Na família Espírito Santo. Não levantou, durante algum tempo, nenhuma suspeita da parte dos informadores que pululavam certamente por essas ruas da Praça do Chile. Mas, quando em 1953 se operou a resistência dos santomenses às medidas do governador Carlos Gorgulho, sobre o trabalho obrigatório dos nativos, aí sim. Houve evidentemente uma revolta, conhecida, que se materializou no massacre de 3 de Fevereiro, dos primeiros dias de Fevereiro de 1953, e os elementos da família Espírito Santo foram presos e houve aí uma pausa nas nossas actividades. Foi então que, retrospectivamente, a polícia fez a relação entre as reuniões de Domingo, culturais e a resistência dos santomenses em Fevereiro de 1953.”

Alda Espírito Santo que, desde 9 de Janeiro, se encontrava no arquipélago, denuncia, em carta aos amigos (que pode ser lida aqui, cedida pela FMS), como tudo se passou:

“Confesso-vos que, se eu não estivesse cá a viver, a ver e sentir a exterminação total a que pretendiam reduzir os nativos, eu julgaria que em tudo isto houve uma boa parte de exagero. Eu desejo fazer uma exposição simplesmente baseada em dados concretos para que façais sentir aí todo o estendal de crimes que se passou aqui, porque é mpossivel que fique no silêncio toda esta tragédia que estamos vivendo e que em Portugal se continue a julgar que foi uma rebelião de nativos, quando tudo o que se passoui não foi mais do que uma matança em série, uma loucura colectiva de parte da quase totalidade da população branca às ordens do governador e seus acólitos.”

Ela, de que houvera já um poema incluído no Caderno de Poesia Negra de Expressão Portuguesa, “Lá no Água Grande” (“Lá no “Água Grande” a caminho da roça / negritas batem que batem co’a roupa na pedra. Batem e cantam modinhas da terra”…), retratará o massacre num outro poema Onde estão os homens caçados neste vento de loucura” ( O sangue caindo em gotas na terra/ homens morrendo no mato/ e o sangue caindo, caindo…/ Fernão Dias para sempre na história/ da Ilha Verde, rubra de sangue, /dos homens tombados/ na arena imensa do cais.”…) (1)

Depois da independência de São Tomé e Príncipe, em 12 de Julho de 1975, Alda Espírito Santo, autora do hino nacional (2), foi Ministra da Cultura e da Informação, deputada e presidente da Assembleia Popular.

Morreu no dia 9, em Luanda, na Angola por cuja independência também lutara, mas sonhara diferente, em carta escrita a Mário Pinto de Andrade, em Agosto de 1974.

O Governo santomense decretou luto de 5 dias.

(1)
O sangue caindo em gotas na terra
homens morrendo no mato
e o sangue caindo, caindo...
Fernão Dias para sempre na história
da Ilha Verde, rubra de sangue,
dos homens tombados
na arena imensa do cais.
Ai o cais, o sangue, os homens,
os grilhões, os golpes das pancadas
a soarem, a soarem, a soarem
caindo no silêncio das vidas tombadas
dos gritos, dos uivos de dor
dos homens que não são homens,
na mão dos verdugos sem nome.
Zé Mulato, na história do cais
baleando homens no silêncio
do tombar dos corpos.
Ai, Zé Mulato, Zé Mulato.
As vítimas clamam vingança
O mar, o mar de Fernão Dias
engolindo vidas humanas
está rubro de sangue.
- Nós estamos de pé -
nossos olhos se viram para ti.
Nossas vidas enterradas
nos campos da morte,
os homens do cinco de Fevereiro
os homens caídos na estufa da morte
clamando piedade
gritando pela vida,
mortos sem ar e sem água
levantam-se todos
da vala comum
e de pé no coro de justiça
clamam vingança...
... Os corpos tombados no mato,
as casas, as casas dos homens
destruídas na voragem
do fogo incendiário,
as vias queimadas,
erguem o coro insólito de justiça
clamando vingança.
E vós todos carrascos
e vós todos algozes
sentados nos bancos dos réus:
- Que fizeste do meu povo?...
- Que respondeis?
- Onde está o meu povo?
...E eu respondo no silêncio
das vozes erguidas
clamando justiça...
Um a um, todos em fila...
Para vós, carrascos,
o perdão não tem nome.
A justiça vai soar,
E o sangue das vidas caídas
nos matos da morte
ensopando a terra
num silêncio de arrepios
vai fecundar a terra,
clamando justiça.
É a chamada da humanidade
cantando a esperança
num mundo sem peias
onde a liberdade
é a pátria dos homens...
             (É nosso o solo sagrado da terra)

 
(2)

Independência Total

Independência total,
Glorioso canto do povo,
Independência total,
Hino sagrado de combate.
Dinamismo
Na luta nacional,
Juramento eterno
No país soberano de São Tomé e Príncipe.

Guerrilheiro da guerra sem armas na mão,
Chama viva na alma do povo,
Congregando os filhos das ilhas
Em redor da Pátria Imortal.
Independência total, total e completa,
Costruindo, no progresso e na paz,
A nação ditosa da Terra,
Com os braços heroicos do povo.

Independência total,
Glorioso canto do povo,
Independência total,
Hino sagrado de combate.
Trabalhando, lutando, presente em vencendo,
Caminhamos a passos gigantes
Na cruzada dos povos africanos,
Hasteando a bandeira nacional.
Voz do povo, presente, presente em conjunto,
Vibra rijo no coro da esperança
Ser herói no hora do perigo,
Ser herói no ressurgir do País.

Independência total,
Glorioso canto do povo,
Independência total,
Hino sagrado de combate.
Dinamismo
Na luta nacional,
Juramento eterno
No país soberano de São Tomé e Príncipe.;