Maria Julieta Guimarães Gandra nasceu a 16 de Setembro de 1917 em Oliveira de Azeméis e formou-se em Medicina, em Lisboa. Aí conheceu Ernesto Cochat Osório, natural de Angola, com quem veio a casar e a ter um filho. Em meados dos anos 40, o casal parte para Angola.
Em Luanda, Julieta Gandra depressa se torna conhecida como médica ginecologista. Atende no seu consultório da Baixa luandense as mulheres da elite branca e atende, nos musseques, as mulheres angolanas, circulando, com igual desenvoltura, nos dois meios. Frequenta o Cine Clube e a Sociedade Cultural de Angola, convivendo com diversos intelectuais que irão estar na origem do Movimento popular de libertação de Angola.
Durante a campanha presidencial de 1958, num comício de apoio a Humberto Delgado, dirigiu-se, no início da sua intervenção, às «mães negras», essas que tão bem conhecia do seu trabalho enquanto médica. Presa no Verão do ano seguinte, outras mães, brancas essas, viriam a exigir que continuasse a prestar-lhes assistência – o que as autoridades, surpreendidas, acabaram por permitir (1).
Acusada de conspirar contra a segurança externa do Estado, bem como de pertencer ao Partido Comunista, foi julgada em Tribunal Militar, em Luanda, sem poder contar sequer com o apoio de um advogado – já que o seu fora detido em Lisboa quando se preparava para embarcar. Condenada a doze meses de prisão, viu a sua pena aumentada para dois anos de prisão maior e medidas de segurança de seis meses a três anos, após recurso do Ministério Público. Julieta recorreu por sua vez – mas o novo julgamento, desta feita em Lisboa, veio apenas aumentar-lhe a pena para quatro anos de prisão maior e medidas de segurança.
Em 1964, a cumprir pena em Caxias, com a saúde muito debilitada, foi escolhida como «prisioneira do ano» pela Amnistia Internacional, saindo em liberdade em Julho de 65. Fica então a viver em Lisboa, numa casa que cedo se torna ponto de encontro de activistas e militantes anti-coloniais e com consultório na rua Manuel da Maia.
Após o 25 de Abril, volta para Angola – acompanhada por Fernanda Tomás, que conhecera na prisão – para ai preparar as bases do Serviço Nacional de Saúde. Mas é a sua saúde que se deteriora e a obriga a regressar a Portugal, em 1978 (2). Morreu a 8 de Outubro de 2007, com 90 anos.
A minha memória da Julieta
Confesso não me lembrar de como e quando conheci a Julieta Gandra. Foi, certamente, depois de, em Março de 1969, ter ido viver para o mesmo prédio em que ela vivia. E, muito provavelmente, no âmbito da recolha de apoios para um militante do MPLA detido em Peniche, o João Baptista, boletineiro dos CTT e pai de 8 filhos, cuja família ficara em Angola e não tinha, obviamente, possibilidade de o visitar.
Certo é que se tornou frequente que descesse um andar para a visitar, ou ela subisse um para se juntar aos diversos jovens angolanos que, na casa que eu então partilhava com a Zé Albarran, se reuniam a discutir a situação em Angola, trocar informações, sonhar com um país independente, ou, simplesmente, dançar e conviver.
Há pouco mais de um ano, enquanto o caixão da Julieta deslizava para o forno incineratório, surpreendi-me ao compreender que tinha mais 30 anos do que eu – e teria portanto nesses anos em que mais convivemos, mais do dobro da minha idade. Creio que nunca mo fez sentir. É certo que, quando chegava, lhe cedíamos de pronto o melhor lugar e nos sentávamos no chão, para a ouvir melhor. Mas isso era apenas prova do respeito que tínhamos por ela. Estava na casa dos 50, mas era uma mulher linda, cheia de vida, e escutávamo-la com uma profunda admiração. À moda africana, respeitávamos os «mais velhos»: e recordo a emoção com que vimos chegar, a um desses encontros, pela mão da Julieta, outro velho militante do MPLA, Ilídio Machado. Eram, ambos, lições de História ao vivo, mas seria extremamente redutor vê-los apenas como isso: a Julieta estava sempre bem informada, trazia novidades, mantinha-se (pelas estranhas vias da clandestinidade, mas também da amizade) sempre a par do que acontecia, quer em Angola, quer em Portugal.
Como «mais velha» que era, tratava-nos por «meninos». Ralhava-me muitas vezes, porque achava que devia controlar melhor a minha cólera. Tinha, também, pouca paciência para lamechices. O que não a impediu de uma grande solidariedade – e alguns bons conselhos – quando se tornou evidente que estávamos, todos os do grupo que se reunia em minha casa, em riscos de prisão.
Data dessa altura – em que a vigilância da PIDE se intensificou a tal ponto que os agentes já não se contentavam em acompanhar as nossas actividades a partir do café das traseiras (informação que nos foi dada, com solidariedade anti-fascista, por alguém que eu nem conhecia), nem sequer em vigiar a porta do prédio, mas se colocavam ao lado dela e, por vezes, nas varandas comuns – um dos episódios que melhor retrata a força, a coragem e o sentido de humor da Julieta. Vinha a entrar no prédio, bastante carregada. Ao lado da porta, um agente da PIDE. Virando-se para ele, disse-lhe: «Em vez de estar aí parado, ajude-me a levar os embrulhos!» E o pide, surpreendido, obedeceu. Pouco depois, batia a Julieta à nossa porta, toda sorridente, a contar-nos o que acontecera. Acho que foi a melhor forma que encontrou de nos incutir coragem.
Quinta-feira, 13.Nov.2008 at 05:11:18
Que belo texto!
Que testemunho, pessoalíssimo e impressivo!
Gostei e alguma coisa aprendi sobre uma mulher de quem só conhecia o nome: Julieta Gandra.
Obrigado pelo seu testemunho.
José Albergaria
Quinta-feira, 13.Nov.2008 at 05:11:54
Um testemunho
Pouco depois do 25 de Abril, e pelo que me lembro, com um pedido desde já de desculpa por qualquer lapso de memória, as CICS (Comissões para a Independência imediata e incondicional das Colónias) tomaram a iniciativa de realizar, em unidade com outras organizações, alguns actos de intervenção política. Nas CICS estavam a Julieta Gandra, a Fernanda Tomas, o Jorge de Almeida Fernandes e sua mulher (historiadora de quem tenho receio de dizer o nome porque, chamando-se Fátima, nunca sei se era a Patriarca se a Bonifácio), o Acácio, engenheiro ligado a uma cooperativa e outros que terei esquecido.
As organizações que participavam nesses actos de unidade foram a LUAR, a LCI, as CBS, o PRP-BR e a URML ou talvez já a UDP. Nas reuniões habituais e mais ou menos regulares, na casa da Julieta Gandra, apareciam, entre outros, a representar as respectivas organizações, o Pedro Goulart, pelo PRP-BR, o Cabral Fernandes, pela Liga, o Mortágua ou o Bronze, julgo eu, pela LUAR, um outro elemento que não recordo pela URML (nem sei se era o próprio Bronze que aparecia por aí e não pela LUAR, se era o Jorge Palma) e eu próprio, José Sousa, pelas CBS, embora, na altura, fosse também elemento da direcção do PRP-BR e tivesse estado no Congresso de constituição de tal partido (naquela hora PRP, prudentemente afastado da sigla BR). O MES nunca participou nesta “unidade”.
Dessas reuniões, dessa gente e das suas organizações saíram dois comícios, um no Coliseu dos Recreios, com a presença de Ernst Mandel, e outro na Voz do Operário (e mais uma vez acrescento, se não estou em erro), apoio a várias manifestações, como a de protesto pela prisão de Saldanha Sanches, e a emissão dum ou mais documentos. Por questões de memória e de falta de documentação, não estou em condições de ser mais detalhado.
A ideia que tenho, contudo, é que esta participação no processo em curso (ainda não revolucionário) era fundamentalmente obra da Julieta Gandra.
Lembro-me, contudo, melhor ou pior, que, uma vez, no início duma das nossas reuniões, a Julieta Gandra apareceu muito excitada, com a morte dum militante da CDE/MDP, por ocasião dum comício de apoio ao MPLA e propôs irmos até ao Rossio. Fomos de carro. A Julieta Gandra, muito cansada, ficou dentro do automóvel, parado em frente do Nicola. Estávamos no Rossio juntamente com muitas pessoas, sem que houvesse uma multidão, quando uma camioneta da PSP apareceu e parou no recanto do Teatro Nacional, do lado do Coliseu. Imediatamente, os polícias saíram e um deles, que me pareceu um sargento ou coisa assim, começou a fazer disparos seguidos e horizontalmente.
As pessoas abrigaram-se nas entradas do metropolitano e eu, preocupado com a Julieta Gandra, atravessei o Rossio, passo perto duma carrinha da RTP ou duma estação de rádio, não sei, donde me disseram para me abrigar porque as balas estavam a passar, e fui finalmente ter com a Julieta Gandra. E a Julieta continuava sentada no automóvel na mesma forma como tinha ficado numa completa serenidade, apesar de, escusado será dizer, estar no campo dos disparos feitos.
Admirei a coragem da Julieta Gandra e o seu domínio de si mesma e algumas vezes falo disto. Acrescento, porque é verdade, que eu fui sempre suficientemente burro para acreditar que alguém, polícia ou não, disparasse com a possibilidade ou o propósito de atingir mesmo qualquer alvo humano.
Quinta-feira, 13.Nov.2008 at 05:11:51
Belo testemunho, José de Sousa.
Venho aqui só para esclarecer que a Fátima que citas é a Patriarca.
Sábado, 25.Abr.2009 at 03:04:20
Sou primo de Julieta Gandra. Meu avô, irmão do Tio Mário e tio de Julieta, foi também médico – Dr. Ângelo Gandra. Republicano puro e duro da 1ª República, foi homem de enorme influência cívica e também política contra o antigo regime.
Como médico foi, tal como Julieta, de ricos e pobres a quem não levava dinheiro e ainda fornecia medicamentos a suas expensas.
Sempre recusou homenagens e agradecimentos.
Ângelo e Julieta eram feitos da mesma fibra, está claro. Personalidades inabaláveis!
Não os conheci – meu avô morreu há 60 anos. Tenho pena de não ter feito uma visita à Dra. Julieta Gandra.
Terça-feira, 21.Jul.2009 at 07:07:19
O MPLA COMO MARCA
O MPLA como Marca representa um poder permanente em função de mais do que a sua história e multiplicidade de histórias e perpetuações das suas tradições.
Um dos factores qualitativos de recriação da sua força consiste na lealdade da corrente regeneradora dos seus aliados.
Os seus atributos, qualidade e expectativas criadas e uma amálgama de resultados e sua funcionalidade reforçam uma narrativa que impulsiona a sua existência.
Não há dúvida de que as crenças sagradas, criações, metas e seu prestígio, sua visão e missão, capacidade de inovação reforçam o seu posicionamento.
A sua suposta notoriedade e fidelização em constante construção criando boas ligações emocionais melhorarão consideravelmente essa marca.
Sendo assim será que a marca MPLA é um sistema propulsor e fonte de criação de valor?
Será que a notoriedade do MPLA continua a ser evocada de forma espontânea?
Para que a marca MPLA se perpetue será necessário que as atitudes das pessoas correspondam a avaliações globais favoráveis.
Não há dúvida que a força da marca MPLA quase se confundirá a um culto descentralizado e de interacções e laços fortes e experiências partilhadas que criam várias identidades verbais e simbólicas.
Para falar da antiguidade da Marca MPLA teremos que falar forçosamente do seu núcleo fundador de Conacry dos anos 60.
A marca MPLA se perpetua pelo seu prestígio devido as associações intangíveis, pelo seu simbolismo popularizado incontornável e grandes compromissos com o passado.
O MPLA como marca, alem de possuir narrativas de sobrevivência, inclui testemunhos que dão a história, significados mais profundos e grande carácter de emocionalidade.
A história do nacionalismo e luta de libertação pelos actores de renome a partir da fundação do MPLA em Conacry pelos seis fundadores bem personalizados, como Viriato da Cruz, Mário Pinto de Andrade, Hugo José Azancot de Menezes, Lúcio Lara, Eduardo Macedo dos Santos e Matias Migueis perpetuarão essa marca de forma reflectida.
Poderemos então afirmar que os fundadores de Conacry foram os agentes prioritários e fundamentais da verdadeira autenticidade da marca MPLA.
A dinâmica da história e a construção de identidades pressupõem estados liminares, pelo afastamento constante de identidades anteriores.
Desenvolver a cultura da marca MPLA exigirá um constante planeamento e estratégias que permitirão reunir e sentir esta marca global.
Para terminar apelaria que nas verdadeiras reflexões que a lenda da marca não obscurecesse a lenda dos fundadores verdadeiros artífices.
Escrito Por:
AYRES GUERRA AZANCOT DE MENEZES
Quarta-feira, 22.Jul.2009 at 12:07:56
Já enviou este texto por mais de uma vez para os Caminhos.
Não quer, em vez de o repetir, escrever sobre o MPLA em Conacry e os fundadores que refere? Como penso que resulta de diversas contribuições aqui trazidas, não pretendemos que este blogue trate apenas da memória portuguesa, mas também da das antigas colónias portuguesas.
Quarta-feira, 29.Jul.2009 at 09:07:49
Obrigado pela oportunidade que me dão de poder informar-vos sobre certa dinâmica nacionalista que representa a gênese (fundação do MPLA a partir de Conacry.
sem decepcionar e corresponder com as vossas expectivas irei desenvolver alguns temas para debate.