É com um prazer muito especial que este blogue conta, a partir de hoje, com a colaboração de Manuel António Pina.
Um texto de Manuel António Pina (*)
Originalmente publicado em Notícias Magazine, de 20/10/2008 (aqui com ligeiras modificações).
Conheci-a em 1974, nos improváveis dias do 25 de Abril. Ao longo de madrugadas intermináveis, sonhávamos então o mais excessivo dos sonhos, o da Liberdade. Nós tínhamos 20 ou 30 anos, ela 60. Atordoados, nós acordávamos, esfregando ainda deslumbradamente os olhos, de uma obscura noite sem sonhos; ela transportava consigo algo raro, um passado. E algo luminoso, a que, por não saber que nome tem, chamo fidelidade. Deslumbramento e fidelidade eram tudo o que possuíamos; com tão pouco, tentávamos ensinar a sonhar, na campanha de dinamização cultural do MFA, gente que, como aquela, ciméria, de que fala Plínio, nunca sonhara.
Com Judith Cortesão descobrimos o mais esquecido dos direitos, o direito de agir de acordo com aquilo em que se acredita. Um dia ensinou-nos o que chamava de «técnicas de sobrevivência». Sobrevivente de revoluções falhadas e interrogatórios sob tortura (os mais duros no Uruguai, com um saco na cabeça e sem poder prever quando ia ser agredida), sabia do que falava. A primeira dessas «técnicas» era (como esquecê-lo nos dias que correm?) acreditar em alguma coisa.
Hoje lembro-me de algumas das suas memórias como se fossem minhas. A sua primeira evasão, das Mónicas, aos 16 anos; a fuga às tropas franquistas através dos Pirinéus, juntamente com o pai, Jaime Cortesão, depois da derrota da República; a mula que transportava as arcas com as fichas da História de Portugal tombando por uma ravina e dois milicianos descendo, presos por cordas, para as recuperar com os canhões troando cada vez mais perto. Uma noite, enquanto a Rádio dava a notícia da ocupação da Renascença, deitou numa panela tudo o que havia nas rações de combate que nos forneciam os militares, carne, peixe, frutas, doces. Como durante a fuga de Espanha com os víveres que cada um levava. «Sabe a memória, disse ela; mas vocês ainda não podem reconhecer o sabor».
Quando a Revolução morreu, ela sumiu-se. Só agora soube da sua morte, no ano passado em Genebra. Tinha 92 anos. Que me lembre, nenhum jornal português deu a notícia. E, contudo, Judith Cortesão foi uma das mais admiráveis personalidades portuguesas (reivindiquemo-la já que nasceu no Porto) do século XX.
Cidadã de ideias mais do que de países, professora, médica, ecologista, escritora, Judith Cortesão (que foi casada com Agostinho da Silva) tinha seis diplomas universitários – Medicina, Letras, Biologia, Antropologia, Biblioteconomia e Climatologia. – e falava 14 línguas, incluindo chinês e árabe. Leccionou em universidades de 16 países. Integrou várias comissões da UNESCO, e as da ONU sobre Poluição Marinha de Origem Terrestre, no Quénia, e do Património da Humanidade, no Canadá; representou, além do Brasil, o Peru, o Uruguai e a Inglaterra em congressos internacionais de Medicina, Literatura e Educação. Já com 70 anos, ainda participou em duas expedições à Antártida. Tinha condecorações da NASA e do governo brasileiro. No Brasil há uma Casa Judtih Cortesão dos Povos de Língua Portuguesa. Portugal sempre foi pequeno de mais, e ocupado de mais com outra gente, para lembrar-se de pessoas como ela.
(*) Biografia de Manuel António Pina
Quinta-feira, 23.Out.2008 at 04:10:02
Há uns anos atrás o presidente do Brasil Lula da Silva condecorou-a. A Matriarca da ecologia do Brasil E outras homenagens e o aproveitamento do seu espólio científico e cultural se seguirão no Brasil e outros países que beneficiaram desta ilustríssima portuguesa renegada pelo país que improvavelmente se lembrará dela.
Parabéns ao Manuel António Pina que a trouxe também aqui aos Caminhos da Memória.
E se a partir daqui lançássemos um repto à blogosfera para que Portugal não esqueça( ou melhor fique a conhecer)esta grande mulher filha de um grande homem? Também ele português.
E se alguém com tempo e posses fizesse um levantamento do “património” humano português, esquecido, ignorado, perdido por nós, por esse mundo além e apreciado e bem aproveitado “lá fora”?
Domingo, 26.Out.2008 at 10:10:41
Começa a ser entusiasmante poder acompanhar a elevada participação, e acima do mais, a qualidade dos textos e dos temas que se sucedem. Em todos encontro forte motivação e até algumas surpresas!!!Como esta do texto de Manuel António Pina, sobre esta personagem para mim praticamente ignorada e assumo a minha ignorância, acredito como a de muitos dos meus concidadãos, que terá sido Judith Cortesão. Vou “catar” dados, porque me abriu o desejo de melhor conhecer os feitos dests nossa compatriota.
Pires da Silva
Sexta-feira, 31.Out.2008 at 12:10:56
Fiquei maravilhado com este blogue. Embora não necessitem da minha ajuda para o dar a conhecer, vou fazê-lo no meu blogue. Talvez comece por ligá-lo com este post sobre Judith Cortesão. Parabéns!
Sexta-feira, 31.Out.2008 at 01:10:52
Muito obrigada pela sua atenção a esta casa. Já fui espreitar a sua.
Sábado, 22.Nov.2008 at 06:11:21
Parabens Xara de Pina, em colocar algumas belas mensagens, ou recados, como ela adorava dizer, que nao deixaria escritos e sim alguns recados para ajudar os seus eco-espioes ou agentes multiplicadores do seu enorme saber, e principalmente em partilhar o saber e assim sermos jardineiros do planeta e da Vida. Judith Cortesao, comigo habitou nos seus ultimos anos no Brasil, em uma pequena cabana na cidade de Ilopolis (Vale do Taquari), no Brasil, antes de adoecer e ir para Genebra. Passavamos dias e noites conversando e articulando como poderiamos ainda salvar o mundo, faziamos muitos projetos ambientais, culturais, de saude publica. Alguns conseguimos levar avante, outros ficaram pelo caminho para mais tarde realizar-mos. Todos atuais e de urgencia. Judith, tambem era uma visionaria. Mas um dos seus ultimos desejos, era com mais de 85 anos de idade em conseguir uma bolsa de estudos e ir estudar Teologia Ecumenica na Suica. Que todas as crises que aflingem a humanidade seria resolvida com o Ecumenismo e com o dialogo intereligioso. Quando ela voltou ao convivio dos filhos na Europa, estive com ela em Genebra e em 2003, eu era assessor do Ministro Gilberto Gil em Brasilia e o meu maior feito de gratidao a inesquecivel mestre, foi o de organizar, recebe-la e estar com ela aqueles tres ultimos dias em que viveu no Brasil, para receber do Presidente Lula e de Gilberto Gil, a Gran Cruz da Ordem do Merito Cultura Brasileiro, e na mesmoa cerimonia no Palacio do Planalto, o presidente entregou in-memoriam a Agostinho da Silva igual honraria. Foi a ultima vez que Judith e Agostinho deixaram os seus recados em Terra Brasileira.
Quarta-feira, 06.Maio.2009 at 04:05:08
Tive a graça de conviver por um ano na minha pequena cidade de Ilópolis,RS. Foi o último ano de Nossa Matriarca no Brasil. A singeleza da sabedoria desta anciã que parecia mais uma garota a contar histórias nas noites aquecidas pela lareira na casa onde vivia com quem se aprochegasse.Uma atenção de confessionário misturado com dedicação de mãe até seus últimos dias. Felizmente alguns de seus conselhos visionários foram atendidos e hoje começam a dar sinais http://www.caminhodosmoinhos.com.br Ser slow no mundo em constante frenesi não é uma simples escolha, é uma espécie de vocação. Vocação que a Dra Judith foi fiel até o fim de sua passagem por esta terra. Saudades!
Abraço irmãos!