guerra

 
A primeira parte deste texto pode ser lida aqui.

 
2 – O engenheiro amigo dos cães 

O Alferes Miliciano Teixeira foi incorporado no serviço militar logo após terminar o Curso de Engenharia Mecânica no Técnico. Era a vida daquele tempo. Não era mais nem menos que os outros. Vá lá que o incorporaram como responsável pelo serviço de manutenção das viaturas, o que o resguardava da pior sorte daqueles tipos que iam para atiradores, sapadores ou quejandos. Podia ter-lhe calhado melhor que a Guiné, lá isso é verdade. E, dentro da Guiné, teve de lhe calhar logo o batalhão de Catió, perto da fronteira maldita com a Guiné-Conacri, onde o PAIGC circulava com quase todo à vontade. Mas, «do mal o menos», dizia ele várias vezes para com os seus botões. É que, resguardado na sede do batalhão, tratando de pneus, diferenciais, sistemas de transmissão e afinação de motores, aquilo até servia de exercício prático para os conhecimentos teóricos acumulados e evitava andar pelo mato, a dar tiros de G3 e a desviar-se de tiros de kalashnikov.

O Teixeira era um conformista. Não contestava a sociedade, passou sempre ao lado das lutas estudantis e só ambicionava uma carreira numa grande empresa, onde pudesse demonstrar o seu gosto pela Mecânica. Não gostava de política e muito menos de lucubrações estéreis sobre os males da sociedade e os remédios para os males do mundo. Não era ele que ia mudar as coisas que estavam mal, que já assim estavam quando ele veio ao mundo. Os males já vinham de trás e, com certeza, não estavam à espera dele para endireitar o que estava torto. Ele aprendeu a endireitar máquinas, os gajos do governo e da política que endireitassem o resto. Era pacato nos hábitos e moderadamente sociável. Achava-se feio e, por isso, tinha uma posição defensiva quanto a namoros, festas e convívios. Tirando os pesos e alteres que ele praticava persistente e solitariamente, não apreciava exercícios desportivos que exigissem coragem física. Coragem que ele sabia que lhe faltava. Sentia-se até um bocado cagarolas. Sabia que não era pelo encanto pessoal que faria carreira. Restava-lhe não arranjar chatices e aplicar-se nos seus conhecimentos. A boa hora iria chegar. Pelo menos, eram os conselhos que os pais lhe davam.

Pensava ele que ia ter sossego em Catió para tratar da mecânica das viaturas. Mas, volta e meia, mais volta que meia, lá vinha a fogachada de morteiros cair dentro do quartel. Uma das vezes, um desses morteiros caiu em cheio na camarata onde estava a sua equipa, atravessou com a maior das calmas o telhado de zinco e caiu numa das camas-beliche onde rebentou. Lerparam dois cabos mecânicos do seu pelotão, por sinal os mais competente que tinha sob as suas ordens. Ficaram num estado indescritível, em fanicos, num estado pior que um motor depois de ser todo desmanchado. A partir desse momento, o Alferes Teixeira, se já tinha medo, passou a vivê-lo obsessivamente. Uma ideia terrível ocupou-lhe a mente quando acordado e quando os pesadelos tomavam conta do sono. Convenceu-se que aquilo não tinha acontecido por acaso, os gajos do PAIGC queriam dar cabo da manutenção de viaturas e que, da próxima vez, iam procurar acertar-lhe. E ele tremia à ideia de acabar em fanicos como os cabos. E em vez de confiar na boa hora que acabaria por chegar nas asas do destino, achou que a sacana da providência lhe reservava era uma má hora. De conformista que tinha sido, o Alferes Teixeira passou a ser um fatalista. Tanto que passou a ser alvo de chacota dos outros militares empedernidos com as coisas da guerra. O Alferes Teixeira começou a adquirir tiques nervosos e incapacidade de olhar de frente. Convenceu-se que era o único que tinha medo no quartel e tornou-se arredio de contactos e convívio. Cirandava pelo quartel sozinho e não parava de olhar o céu para não ser apanhado desprevenido se ele trouxesse metralha destinada a acertar-lhe na cabeça. Mas o pior era com a vinda do escuro da noite, pensando em quando se iria deitar a olhar o tecto de chapa zincada. Não se metia em convívios nocturnos mas não se afastava dos grupos de militares, ouvido atento, para tentar perceber se havia más novas ou péssimos prenúncios. Antes de pensar em deitar-se, aproximava-se da sala onde estavam os rádios e procurava obter confidências dos operadores sobre eventuais mensagens de Bissau anunciando bernarda para essa noite com base nos serviços de informações. Mas, para malta das transmissões, aquele alferes amedrontado funcionava, às mil maravilhas, como objecto de divertimento, escasso por aquelas paragens. Frequentemente, forjavam mensagens «ultra-secretas» que informavam de grandes ataques para essa noite, mostrando-lhe o papel simulado que oferecera muitas risadas fartas quando da sua feitura. E mais risada merecia depois, ver-se o Alferes Teixeira, cara avermelhada, cirandar pelo quartel sempre encostado às paredes, incapaz de se ir deitar. Mas, às vezes, a fogachada vinha mesmo. Então, o Alferes Teixeira, quando os assobios de morteiro começavam, procurava a minúscula casota do cão do quartel, onde o pobre animal assustado se refugiava. E atirava-se lá para dentro, aí aguentando, abraçado ao animal, até o fogo extinguir-se. Ali, sentia-se mais seguro. Achava que o PAIGC não ia dar prioridade a transformar um cão em fanicos. Quando o Alferes Teixeira regressou à condição de Engenheiro Teixeira, por tudo e por nada proferia a sua máxima preferida «o cão é o melhor amigo do homem». Ele, melhor que ninguém, sabia porquê.

 
(Texto revisto de um post publicado em Água Lisa)

 
Biografia de João Tunes