Melhor dito seria o aforismo se cantasse assim: «quem vai à guerra dá e leva, nunca volta como foi». Sim, não é possível participar-se numa guerra e não se mudar enquanto pessoa. Uns mais, outros menos, mas todos. Nos treze anos de guerra colonial (1961-74), centenas de milhar de jovens portugueses participaram nela, vivendo-a na fase do remate consolidado da personalidade. Sob condições mais ou menos cruéis, algumas extremas na dor sofrida ou causada ou observada, em grupos de partilha que durante o tempo de guerra foram o seu cúmulo exclusivo da família, dos amigos e da sociabilidade, cada um dos jovens lançado na guerra, os que regressaram, voltaram diferentes. Quando o fim da guerra chegou, uma revolução que virou e revolveu a sociedade portuguesa, ou não seria revolução, lançou esses antigos combatentes de fresco, ainda com a memória da guerra recalcada mas viva debaixo da pele, num novo desafio de mutabilidade profunda. Sendo a revolução feita e dirigida por militares, em que a motivação revolucionária muito teve a ver com o cansaço da guerra e tendo a descolonização como fito principal, o 25 de Abril e o que se seguiu foi, em termos vivenciais, um prolongamento adaptado da experiência da guerra ou, pelo menos, um regresso simbólico a ela. Só a civilização completa da democracia, com os militares a regressarem definitivamente aos quartéis e o país entregue aos partidos, permitiu ao larguíssimo sector masculino da sociedade portuguesa que tinha vivido a guerra colonial e a revolução, fazerem a catarse possível, adiada e lenta destas duas experiências fundas e companheiras. Hoje, longe que vão a guerra e a revolução, com a maioria dos antigos combatentes a calçarem as pantufas dos anciãos, com os cordelinhos da população activa e decisória entregues às gerações nascidas e criadas sem guerra nem revolução, numa sociedade em crise profunda de crenças e valores, em que a esperança mora pouco, assiste-se à maioria destes recorrerem à lembrança de si e do convívio com os camaradas de armas dos tempos de guerra como panaceia de conforto existencial, esgravatando as marcas fortes da juventude ida. Não admira.
Cada qual é melhor observador dos outros que de si próprio. De mim mesmo, só sei que mudei muito nos meus dois anos de guerra colonial na Guiné (1969/71). Mas não me peçam pormenores porque não os esgravatei. No entanto, vim da guerra rico em observação de mudanças, espantado de ver como a guerra tanto muda as pessoas. Assisti (e partilhei, pois as mudanças eram feitas em grupo coeso e fechado) a quem mudasse muito e quem aparentasse mudar pouco. Houve de tudo, desde mutações profundas e desestruturantes até os que conseguiam passar a ilusão que foram e voltaram apenas dois anos mais velhos quando apenas se deu com eles mudarem mais por dentro que por fora. Mais que o episódico e o pitoresco das cenas de guerra, o que guardo de memória da guerra foram as mudanças que observei nos meus companheiros de belicismo obrigado. Talvez por isso funcionar como espelho escolhido para saber que, naqueles dois anos, também eu mudei, mais que uns e menos que outros. Dessa memória revisitada, escolho dois casos (os nomes foram alterados) para partilha de ocasião.
1 – Um capelão em construção
O Alferes Miliciano Capelão Ferreirinha não era um santo mas parecia. Originário de uma aldeia perto de Coimbra, cedo foi enfiado em Seminários e em Mosteiros pela intenção familiar de fazer de Ferreirinha um santo homem com ganha-pão garantido. Ele aderiu ao projecto de vida que lhe traçaram. Sentiu-se bem, fora das tentações e porcarias do mundo, quando se viu na condição de padre e frade. O Seminário e o Mosteiro funcionaram como cortina da vida e ele sentia-se bem, mesmo bem, naquele recolhimento, imaginando o mundo lá fora como uma reprodução, ou um projecto, da santidade interna em que tinha sido educado e o fazia feliz.
Havia que enfrentar a vida, comunicar a palavra e tornar o mundo mais santo. No mínimo, transformar o mundo num lugar que não chocasse os santos. Falaram-lhe da guerra que a civilização ocidental e cristã travava em África contra os pretos comunistas. Ficou a saber que os nossos soldados se sacrificavam a combater terroristas para lhes levar a santidade através da espada. Ferreirinha entendeu que o caminho da santidade no mundo passava por Portugal em África. Não quis ficar de fora. Com sacrifícios e com martírio, caso fosse. Meteu os papéis para se oferecer como voluntário capelão para servir as Forças Armadas, em África, onde a santidade era mais necessária. Aceitaram-no com gosto. O Major do Recrutamento que recebeu o requerimento do Ferreirinha até se riu e comentou alto «temos um voluntário para a Guiné, agora é que vamos ganhar a guerra». O Major sabia de guerras mas pouco percebia de santidades.
O Alferes Capelão Ferreirinha vestiu farda, aprendeu rudimentos de ordem unida e a distinguir patentes. Integraram-no num Batalhão que ia embarcar para a Guiné e devotou-se aos bons rapazes que iam ser seus companheiros de missão. E fez votos que todos empunhassem bem a espada porque o crucifixo era com ele. E esta era a frase que ele ia espalhando, sorridente, no quartel de Porto Brandão, à beira do Tejo, onde a tropa se concentrava e se preparava para a partida no Niassa. Como se fosse um bálsamo ou unguento. Bem necessário, entre militares mal dispostos, como se estivessem contrariados no cumprimento da missão, patriótica e santa, em África. Seguia atentamente todos os movimentos de entradas e saídas do quartel, preparando-se para acolher bem todos os eleitos. Quando havia chegada de um novo reforço, o Ferreirinha lá estava, à porta de armas, para o receber, o confortar e o enquadrar nos bons desígnios. Sofria, pelos ouvidos, a ordinarice própria da tropa, mas não ligava. Coisas da carne. E a maioria não tinha a sua carne em paz, como tinha o Ferreirinha. Que se havia de fazer? Era o mundo e a vida. Mas, através do pecado, se redimido, também se pode alcançar a santidade. Assim, até era tolerante e fingia ignorar o movimento de prostitutas à volta do quartel. «Coitados, coitadas», era o comentário indulgente do Ferreirinha.
Quando me calhou a vez, a recepção pelo Alferes Capelão não correu nada bem. Eu vinha bravo e zangado e fui violento na hora de chegada. Ele, Ferreirinha, esperava-me à porta de armas quando soube da chegada do oficial de transmissões e tentou dar-me um aconchego de boas-vindas através da sua frase recepcionista da praxe «então, nosso Alferes, cá vem para defender a Pátria». Eu, que estava zangado com a Pátria, não gostei, afastei bruscamente a tentativa de abraço do Capelão, vociferei (pequei) «saia-me da frente, senão atiro-o ao rio» (o quartel era mesmo à beirinha do Tejo) e segui, mal-humorado, apresentar-me ao Comandante. Ferreirinha perdoou de imediato. Aquilo ia passar. Tinha que ser. A concórdia havia de triunfar. Na viagem e nos primeiros tempos de vida na Guiné, a concórdia entre nós demorou a chegar. Chegados ao Pelundo, calhou coabitarmos o mesmo quarto na casamata. No meio do mato, estava por tudo e entendi que não era do Ferreirinha que vinha o perigo. Foi a minha vez de ser indulgente. Passado pouco tempo, éramos amigos.
O Capelão Ferreirinha era gozado amiúde pela sua falta de vivência pecaminosa e sobretudo pelas frases ingénuas e descabidas como encarava as coisas de sexo. O homem estava mesmo a leste de tudo. Não faltaram professores. E que professores. O Capelão tornou-se num divertimento para os oficiais. Até parecia que havia escala estabelecida. Revezavam-se, a ensinar-lhe as várias posições para se obter prazer, puxando-o para os copos, o jogo da lerpa e o baile com as bajudas de mamas rijas e espetadas. E uns tantos, mais politizados, abalavam-lhe as convicções e insistiam que a tropa colonial estava a remar contra os ventos da história e eram os pretos que tinham razão. O bom do Ferreirinha foi resistindo como podia. Mas, não evitava o fascínio de tanto delírio e tanto prazer pagão em que aquela rapaziada se espraiava nas fugas nocturnas à tabanca. O fascínio foi dando lugar à curiosidade e depois à experimentação. Que diabo, só perto do pecado ou mesmo lá dentro, se podia saber porque é que ele tanto atraía. E aquilo era uma tropa, em santa missão, isso sim, mas feita de pecadores. O problema é que o Ferreirinha experimentou e gostou do prazer de pecar. Achou que aquela parte era uma metade da vida que ele nunca tinha experimentado. E sabia bem. Dava bem-estar e fazia esquecer a saudade da paz do Mosteiro. Assim, o Ferreirinha tornou-se, rapidamente, num pecador. Por sinal, o maior dos pecadores. Passou a meter-se nos copos, encomendando vinho de missa, atrás de vinho de missa, desencaminhado para farras pagãs. Começou a ir aos bailes sem se esquecer do preservativo. Jogava lerpa, onde derretia o pré. No Natal, soprou preservativos a fio para decorar a messe de oficiais. Gritava «tirem-me daqui». Começou a fazer discursos anti-coloniais. Deixou de dizer missas, usando o argumento «não estou no devido estado espiritual». Mas nunca renegou deuses nem santos.
Pela minha parte, se antes me irritara a sua fase beata agora preocupava-me a sua fase de excessos pagãos. Fiz o possível e o impossível para acalmá-lo e metê-lo no equilíbrio do bom senso da conta, peso e medida. Que diabo, não era preciso tanto, a vida era para ser gozada passo a passo. Assim eram os meus sermões quando ambos recolhíamos ao nosso condomínio militar de pernoita. Mas o pecador Ferreirinha não ouvia os meus (santos) conselhos. Ele queria prostitutas, uísque, jogatana e que aquela guerra acabasse e depressa. Ponto final. E nada a fazer. E só pensava em voltar a Coimbra. Para gozar a vida. A minha amizade não foi suficiente para trazer o capelão de volta à santidade, ou pelo menos, a meio caminho dela. O homem tinha pressa, vivia sobre as brasas da pressa. E quando assim é, o que é que um leigo pode ajudar? O Alferes Capelão Miliciano Ferreirinha acabou a sua comissão em pecado e em revolta. Despida a farda, serenou, deixou de ser padre e frade, casou-se, foi dar aulas num colégio para ganhar a vida. Não será um santo. Mas deixou os pecados maiores na Guiné, quando por lá andou na guerra.
(continua)
(Texto revisto de um post publicado em Água Lisa)
Biografia de João Tunes
Quarta-feira, 06.Maio.2009 at 02:05:59
O exemplo que trouxe ao seu post para ilustrar a mudança que a guerra operou em quem por lá andou sugeriu-me um outro exemplo análogo, só que visto de fora, isto é, sendo eu ainda um civil não marcado pela comissão militar. Desculpe eu trazer este outro exemplo, mas isto é como as cerejas…
Bem, nos primeiros 2 ou 3 anos dos anos 60, na paróquia do Porto onde eu morava foi colocado um jovem padre como coadjutor, com quem ganhei confiança e com quem acabei por travar amizade. Esse jovem padre era ingénuo, mas voluntarioso, com arremedos frequentes de entusiamos religiosos. Quando saíu o primeiro número do Direito à Informação e fizemos a sua divulgação no Porto e arredores, resolvi testar esse sacerdote e, armando-me em ingénuo político, fui-lhe entregar um exemplar, dizendo-lhe que tinha aparecido na minha caixa de correio. A reacção dele foi: “Rasga isso já! Deita fora, que isso são coisas políticas, dos comunistas e a única coisa que a nós nos deve interessar é o amor de Cristo e vivermos para Ele”. Passado algum tempo foi a um Curso de Cristandade (os chamados “cursillos” importados de Espanha) e veio mais “doido por Cristo”, verdadeiramente obcecado. Chegou, em algumas homilias, a subir para uma cadeira e afirmar assim essa loucura.
Depois ofereceu-se para capelão militar e foi também parar à Guiné. Quando regressou (65? 66?), voltàmos a encontrar-nos e a ser amigos, mas ele tinha mudado radicalmente. Falava contra a guerra, contra o colonialismo, contra o regime, contra os compromissos da Igreja portuguesa com o regime de então. Já não tinha o comportamento obcecado, quase alucinado de anteriormente, mas mantinha o vigor das suas afirmações. A partir daí começou a entrar em conflito com a hierarquia (o que não era muito difícil atendendo a que, então, no Porto chefiava a Diocese o Administrador Apostólico que ali tinha sido colocado em substituição de D. António Ferreira Gomes exilado de Portugal por ordem de Salazar). Suponho que também teve grandes chatices com a polícia política. A memória não me ajuda, mas acho que esteve preso. Suponho que foi por isso que o advogado José da Silva lutou por ele e sobre ele escreveu um livro. Por causa de tais conflitos político-religiosos acabou por ser afastado da paróquia onde fora colocado. Mas criou uma fortíssima ligação com os paroquianos que quase o idolatravam e que viravam também as costas ao bispo Administrador Apostólico.
Continuou, porém, a ser padre e a afirmar-se como tal, embora não exercendo, por proibição, a sua acção pastoral oficialmente. Assim estava quando veio o 25 de Abril e onde ele foi estrela do PREC, embora à margem dos partidos e da Igreja oficial. Fez um comício político-religioso em Lisboa, acompanhado dos seus antigos paroquianos, sobretudo do sexo feminino, aonde fui para lhe dar um abraço, pela nossa amizade. Mas já não me conheceu, nem se recordava dos nossos anteriores encontros. Mudou muito com a guerra. Mudou também com o chamado PREC, mas aí num deslumbramento de estrela.
Não sei se casou, se ainda é padre ou mesmo se é crente. Há uns anos apareceu na TV, ainda se dizia padre e proferia afirmações de carácter religioso que deveriam deixar os cabelos em pé até aos bispos mais arrojados e menos comprometidos com o regime anterior…
Quinta-feira, 07.Maio.2009 at 12:05:04
A propósito dos capelães militares: por acaso topei ontem com umas citações a uma homilia proferida por D. António Ferreira Gomes no dia 1 de Janeiro de 1972 (dois anos e meio depois do seu regresso) por ocasião do Dia Internacional pela Paz, onde aludiu aos capelães militares:
«(…) A Hierarquia da Igreja, isto é, o Sacerdócio ou o Sacerdote, tem muito que fazer pela Paz. Tem muito que fazer, sem dúvida, mas quase me apetecia acrescentar desde já que tem igualmente muito “que não fazer”.
Causa-nos por vezes horror ver como esses capelães mostram tão evidentes “virtudes militares” (…)».
Estas palavras foram aproveitadas por Reboredo e Silva para na Assembleia Nacional iniciar nova campanha contra o bispo.
Quinta-feira, 07.Maio.2009 at 02:05:25
Jorge Conceição,
Não nomeou o padre de que falou. Há dados que deu que se confundem com os do Padre Mário de Oliveira (conhecido como “Padre da Lixa”). Se era a ele que se referiu, a “mudança” deu-se antes da guerra para a qual não foi voluntário. Este, o Padre Mário de Oliveira, ainda no Porto, por ter cedido instalações e dar cobertura ao movimento estudantil, foi considerado subversivo pelo administrador eclesiástico e, por castigo, mandado prestar serviço como capelão militar, o que fez na Guiné (Mansoa) sem que tenha terminado a comissão. Quando foi para a guerra colonial já tinha posição antifascista e contra o colonialismo e transformou a sua capelania num púlpito de defesa do direito dos povos coloniais à independência, o que o levou à expulsão. Depois, no regresso, foi a experiência na Lixa, as prisões pela PIDE e a marginalização pela hierarquia católica (até hoje). Mas, neste caso (que não sei se foi o caso que referiu), a consciência política, a “transformação”, foi anterior à experiência da guerra, antes adquirida por “contaminação” dos lutadores estudantis do Porto do princípio da década de 60.
No meu texto, falei do que assisti (e partilhei) com a mudança de um capelão militar (este sim, voluntário) mas é um entre os muitos exemplos que verifiquei noutros e bem leigos. Noutro texto, refiro um engenheiro mecânico que se refugiava dos bombardeamentos na casota do cão do quartel e abraçado ao animal, mas assisti a muitas outras mudanças profundas, algumas extremas (dois dos médicos que foram meus camaradas no mato e do meu batalhão, ambos formados em Coimbra, um endoidou – tinha estado em Guileje – e foi evacuado mas exigiu ser transportado até à escada de acesso ao avião de regresso numa Panhard, outro, que antes era um extrovertido palrador ainda marcado pela ramboiada coimbrã, emudeceu e só soltava frases estritamente necessárias durante as consultas, fora disso ninguém lhe conseguia arrancar um som).
A capelania militar na guerra militar merecia análise particular. Como era dirigida, como era vivida, seus efeitos. Embora a maioria fosse conformista e colaboracionista, só ultrapassada, para pior, pelos ex-seminaristas que não se tinham ordenado como padres. Na maioria, estes eram do piorio em termos de comportamento, cultura e perspectivas. Eram militaristas agressivos e acríticos, dispostos às maiores crueldades e muitos meteram, no final da comissão, papéis para continuarem na tropa ou irem para a GNR ou para a PIDE. Quanto à direcção dos capelães, na Guiné e no meu tempo, o chefe era um fascista dos sete costados, um tal Gamboa (muito ligado a Spínola e à PIDE), então com o posto de tenente-coronel. E era um repressor implacável de todos os capelães que mostrassem uma ponta de inconformismo.
Quinta-feira, 07.Maio.2009 at 03:05:23
João Tunes: obrigado pela sua rectificação. A minha memória não me tem servido impoluta, mas eu não a posso “dispensar” agora… Na verdade referia-me ao Padre Mário. Nos primeiros anos que o conheci ele nem ouvir falar queria da guerra colonial e de outos assuntos políticos nacionais. Pelos vistos deu a volta antes de embarcar e, no embarque, coagido. Que a verdade seja reposta, então!
O exemplo que citou da aliança alferes-canino é excelente e paradigmático de muitas situações, embora com diferentes cambiantes, do clima que se vivia em ambiente de guerra (passem os diversos pleonasmos…). Tive um amigo médico que, depois de voltar da Guiné, nunca mais se recompôs e acabou por se suicidar no Porto. Tinha um colega de Empresa, na altura morador em Alvalade, que durante muito tempo depois de vir da Guiné tinha um comportamento que as pessoas achavam estranho: frequentava então a esplanada da Suprema na Av. de Roma; quando passava um “carocha” (ou uma mota) que libertava aqueles súbitos estampidos de escape, se atirava inconscientemente para o chão entre as mesas, em posição defensiva de fogo…