Povo-MFA - J.A.Manta

Sexto post da série ABRIL, mais actual do que nunca e não só por razões óbvias de calendário…mas pela exigência de honrar os verdadeiros heróis de Abril, a começar pelo mais puro e genuino: MFA, o rosto do herói colectivo [clicar no logotipo no canto superior direito para aceder ao anterior].

 
1. Toda a experiência revolucionária se constrói em torno de grandes ideais de mudança, transformação e renovação social. São as grandes narrativas simbólicas e mitológicas colectivas que surgem e se renovam com grau de intensidade e visibilidade muito diferentes, mas que têm como objectivo primeiro construir uma interpretação da sociedade através do tempo, não só fornecendo sentido ao passado, como iluminando os caminhos do futuro.
Também o 25 de Abril à sua (à nossa) maneira cumpriu as funções típicas de qualquer ciclo revolucionário: exorcizar fantasmas dos passado (Estado Novo, Salazarismo, Marcelismo, Colonialismo), referendar a comunidade política recentemente criada, enfim, recuar ao princípio, anular o erro, dotar a existência de um sentido em nome de tudo aquilo que se pensa e vive como verdadeiro e justo.
Este complexo de funções cumpriu-se entre nós através de um conjunto desigual de mitos políticos, entre os quais predomina o mito politico do Salvador. Núcleo mitológico de maior ressonância e vitalidade na nossa história, ele surge no imaginário abrilista  corporizado e actualizado no grande colectivo do MFA.
Foi um dos aspectos mais originais inéditos e surpreendentes da revolução portuguesa, um exército que, em vez de um golpe de força para cercear a liberdade, a dá de presente a todo um povo.
O MFA constitui-se assim, como imaginário social de libertação, centro do universo simbólico de luta contra a miséria e a injustiça, Até porque a verdadeira frente revolucionária se estabelece entre as classes populares chamadas a participar colectivamente na melhoria das suas condições de vida e as forças político-militares genuinamente ao lado delas contra as classes anteriormente dominantes.

2. Embora na continuação do velho mito do herói individual, o MFA assume agora a qualidade de mito colectivo, em contraposição ao modelo robinsoniano do herói isolado. Na verdade não surgiu nunca em período revolucionário uma figura dominante do MFA. Houve é certo vários heróis individuais (Salgueiro Maia, Otelo, Vasco Gonçalves ou, noutro plano, Spínola ou Eanes) mas de grande fragilidade quando considerados isoladamente. A força de cada um advém, pois, do colectivo de onde emerge e onde se integra, acabando por qualquer saída desse núcleo matricial ser sentido como abandono ou mesmo traição. Isolando-se do seio do grande colectivo, portadores de projectos políticos diversos, eles ameaçam com a divisão o factor vital da unidade revolucionária. O consumo excessivo de heróis, a extrema volubilidade com que os geramos e devoramos que caracteriza a nossa revolução, tem certamente a ver como esse deficit de legitimidade individual face ao imenso poder do colectivo. Porque verdadeiramente decisivo e invencível era o MFA, representado nos cartazes de João Abel Manta, meio soldado, meio povo, ou nas poéticas evocações messiânicas da expressão «Capitães de Abril» como cavaleiros desejados de uma manhã de nevoeiro.
3. Nesse sentido se pode afirmar que o 25 de Abril consagra o modelo mítico político tradicional, associando o elemento messiânico com o herói militar (na continuação do forte protagonismo sempre destinado aos militares na grandes crises sociais dos últimos séculos), mas esse herói não é já individual (Sidónio, Pais, Gomes da Costa, Humberto Delgado) mas colectivo: Capitães de Abril, num primeiro momento, MFA num segundo.
Várias circunstâncias contribuem para isso, a primeira das quais foi a rápida transformação daquilo que foi pensado como um golpe militar, mesmo que diferente, em revolução.
Depois, o inesperado (para muitos incompreensível) comportamento dos seus principais agentes: a determinação dos capitães manterem o anonimato, mesmo após o triunfo do movimento. Em pleno Largo do Carmo, ainda durante o desenrolar das operações, Salgueiro Maia surpreende e decepciona os jornalistas que obsessivamente perguntavam quem é o chefe: «Não sei, limito-me a executar. Os pormenores não são comigo. Não sei pormenores, nem me interessam!» Por sua vez, Vítor Alves, na primeira conferência de imprensa na noite de 25 para 26 de Abril, declara: «N€ão houve um só chefe. Fomos todos nós!». E finalmente Vasco Lourenço, também nas primeiras declarações públicas afirma categórico: «Lideranças não temos. Fazemos questão de ser encarados como um bloco. Se até aqui foi possível fazer tudo isto em conjunto, pretendemos não deixar sobressair nomes. Ás vezes os que trabalham menos são os que aparecem mais. Não estamos interessados nisso.»
Esta recusa em abandonar o colectivo, que lhes parecia indestrutível, até porque construído e reforçado por sentimentos de camaradagem e confiança, forjados nas mais duras situações vividas na guerra colonial, eram a outra face do desapego ao poder, que num primeiro momento ingenuamente pensaram poder transferir intacto para mãos civis.
Como escreveu Eduardo Lourenço, no Prefácio ao livro de Otelo S de Carvalho, Alvorada em Abril «Paradoxalmente – e será essa, para lá do folclore lírico que a celebrizou no mundo a sua verdadeira originalidade – raras vezes uma revolução militar e de militares terá sido tão civil. Ainda hoje espanta o reflexo quase pânico que parece ter sido o de uma boa parte dos vencedores de Abril de aceitar, com as responsabilidades históricas de uma intervenção que iria abalar uma contextura de séculos, a responsabilidade plena do poder».
O poder politico que olharam sempre com o temor, ora reverencial, ora desprezível dos iniciados, adulou-os, utilizou-os, suportou-os, enquanto deles precisou. Mas a forma indigna como os partidos «empurraram pela escada abaixo» o Conselho da Revolução em 1982, como espécie de tumor no corpo são de uma democracia nova de raiz, diz muito sobre o grau de memória histórica e cívica do Portugal pós-Abril, bem como sobre a qualidade da democracia que temos.