1968 foi de facto um ano alucinante e 2008 não poderia terminar sem que se assinalasse um último 40º aniversário. Em 31 de Dezembro de 1968, cerca de cento e cinquenta católicos entraram na igreja de S. Domingos, em Lisboa, e nela permaneceram toda a noite, naquela que terá sido a primeira afirmação colectiva de católicos contra a guerra colonial, numa actividade formalmente «disciplinada». Com efeito, o papa Paulo VI decretara, em 8 de Dezembro, que o primeiro dia de cada ano civil passasse a ser comemorado pela Igreja como dia mundial pela paz e, alguns dias depois, os bispos portugueses tinham seguido o apelo do papa em nota pastoral colectiva.
Assim sendo, nada melhor do que tirar partido de uma oportunidade única: depois da missa presidida pelo cardeal Cerejeira, quatro delegados do numeroso grupo de participantes comunicaram-lhe que ficariam na igreja, explicando-lhe, resumidamente, o que pretendiam com a vigília:
«1º – Tomar consciência de que a comunidade cristã portuguesa não pode celebrar um “dia da paz” desconhecendo, camuflando ou silenciando a guerra em que estamos envolvidos nos territórios de África.
2º – Exprimir a nossa angústia e preocupação de cristãos frente a um tabu que se criou na sociedade portuguesa, que inibe as pessoas de se pronunciarem livremente sobre a guerra nos territórios de África.
3º – Assumir publicamente, como cristãos, um compromisso de procura efectiva da Paz frente à guerra de África.»
Entregaram-lhe também um longo comunicado [agora online] que tinha sido distribuído aos participantes, no qual, entre muitos outros aspectos, era sublinhado o facto de a nota pastoral dos bispos portugueses, acima referida, tomar expressamente partido pelas posições do governo que estavam na origem da própria guerra, ao falar de «povos ultramarinos que integram a Nação Portuguesa».
Apesar de algumas objecções, o cardeal não se opôs a que permanecessem na igreja, ressalvando «a necessidade de uma atitude de aceitação da pluralidade de posições».
Pluralidade não houve nenhuma, mas, até às 5:30, foram discutidos todos os temas previstos e conhecidos vários testemunhos, orais ou escritos, sobre situações de guerra na Guiné, Angola e Moçambique.
Hoje, tudo isto parece trivial, mas estava então bem longe de o ser. Aliás, seguiu-se uma guerra de comunicados entre Cerejeira e os participantes na vigília, que seria fastidioso analisar aqui. Mas vale a pena referir que, com data de 8 de Janeiro, uma nota do Patriarcado denunciou «o carácter tendencioso da reunião», terminando com um parágrafo suficientemente esclarecedor para dispensar comentários:
«Manifestações como esta que acabam por causar grave prejuízo à causa da Igreja e da verdadeira Paz, pelo clima de confusão, indisciplina e revolta que alimentam, são condenáveis; e é de lamentar que apareçam comprometidos com elas alguns membros do clero que, por vocação e missão deveriam ser, não os contestadores da palavra dos seus Bispos, mas os seus leais transmissores».
A PIDE esteve presente (há disso notícia em processo na Torre do Tombo), mas não houve qualquer intervenção policial. Alguns jornais (Capital e Diário Popular) noticiaram o evento, mas sem se referirem ao tema da guerra colonial – terão provavelmente tentado sem que a censura deixasse passar… A imprensa estrangeira, nomeadamente algumas revistas e jornais franceses, deram grande relevo ao acontecimento. E foi forte a repercussão nos meios católicos.
Para quem esteve presente em S. Domingos, como foi o meu caso, essa noite ficará para sempre ligada à Cantata da Paz, hoje tão conhecida mas que poucos identificam com a sua origem. Com versos propositadamente escritos para essa noite por Sophia de Mello Breyner, e com música de Francisco Fernandes, foi então estreada por Francisco Fanhais. (Quantas vezes a terá cantado depois disso, nem ele certamente o saberá…)
P.S. – Quatro anos mais tarde realizou-se uma outra vigília pela paz, na Capela do Rato, com consequências nem mais gravosas porque envolveu uma greve de fome, prisões e despedimentos da função pública. Neste blogue, será publicado amanhã um texto sobre esse evento.
Terça-feira, 30.Dez.2008 at 05:12:38
Havia de facto gente muito interessante nessas faixas de cristianismo pagão – o mesmo será dizer humanizado – da igreja católica.
Desconheço em absoluto o estado em que se encontra hoje esse mundo católico. Mas tenho a impressão de que, à semelhança do que aconteceu com a sociedade em geral, o advento da democracia, em vez de libertar domesticou e amoleceu.
nelson anjos
Terça-feira, 30.Dez.2008 at 12:12:50
Desconheço o significado de cristianismo pagão e ainda mais que isso signifique ser humanizado. Enfim o mundo está cheio de conceitos e não os podemos conhecer a todos.
Este tipo de intervenção dos católicos, que aqui teve maior aparato público, não foi um acto isolado e também não marca o início da sua acção e intervenção na sociedade, como se sabe. Nem sequer sobre o tema da Guerra Colonial. Lembremo-nos da visita de Paulo VI a Bombaim e da massiva distribuição de jornais-comunicado nas igrejas de quase todo o País. E, muito antes, da distribuição regular dos “Direitos à Informação”.
Para não falar (ou falando particularmente) das diversas realizações de colóquios que foram motor de consciencialização de muitos católicos ainda em busca do seu lugar e responsabilidade na sociedade civil (a que me referi em comentário no “post” sobre o Padre Felicidade), dinamizações essas que também não foram as iniciais, pois pelo menos desde 1958 que em diversos locais se sentiram intervenções, embora pontuais, dos cristãos (como se preferia então dizer) e não apenas por causa do Delgado, mas sobretudo em consonância com a figura de João XXIII e da convocação do Concílio Vaticano II que, na sua origem, tinha o objectivo central de renovação e de de inserção activa dos cristãos nessa sociedade civil.
E no Porto, onde me encontrava nessa altura, sobretudo nos meios universitários e intelectuais (mas não apenas, como são exemplo algumas paróquias de cariz popular, como a do Padrão da Légua de características marcadamente rurais) essa vivência cristã com a sociedade civil foram uma nova maneira de estar e de pertencer que foram motoras de posteriores intervenções.
Recordo-me a propósito, uma exposição organizada pela Direcção Diocesana da JUC do Porto em 1959, toda ela centrada na responsabilidade que os cristãos tinham, enquanto tal, nas necessárias tomadas de consciência e acções consequentes nos diversos problemas da humanidade (da fome, da guerra, do desenvolvimento, etc.). (Ironicamente um dos dois principais responsáveis por tal exposição foi o Jorge Jardim Gonçalves, mais tarde dedicado à Obra e, depois, à actividade bancária…). E que, posteriormente, levaram ao estudo da acção dos organismos internacionais de intervenção social (FAO, OMS, OIT, UNESCO, etc.) em simultâneo com o do desenvolvimento dos trabalhos conciliares.
Isto é: o desenvolvimento da cidadania (ou da consciência social) de muitos portugueses deu-se concumitantemente e POR CAUSA do seu desenvolvimento como cristãos. E apesar de muitos desses cristãos terem deixado de o ser (pelo menos de uma forma mais activa), foi por essa via que acederam à sua actual actividade de cidadãos e de interventores no mundo político ou social.
Relativamente aos sectores “amolecidos e domesticados”, sempre foram maioritários, quer no passado, quer hoje. E se calhar sê-lo-ão assim no futuro. Em todos os campos. É uma decorrência cultural.
Terça-feira, 30.Dez.2008 at 12:12:05
Nelson,
As coisas mudaram muito, há hoje católicos muito corajosos, que nem sempre entendo mas que respeito e de quem sou amiga.
Quanto «ao cristianismo pagão» que refere, estou com o Jorge: não sei o que seja. E não era certamente disso que nos reclamávamos em 1969.
Terça-feira, 30.Dez.2008 at 12:12:09
Jorge,
Obrigada pelo seu contributo esclarecedor.
No que me diz respeito, quase poderia dizer que está a ensinar o padre-nosso ao vigário: claro que esta vigília não foi um acto isolado nem o primeiro. O que quis dizer – e talvez tenha dito mal – foi que foi a primeira manifestação PÚBLICA, em GRUPO, PRESENCIAL, com o único objectivo de denunciar a guerra colonial – e foi isso que fez toda a diferença e que teve um impacto específico.
O «Igreja Presente» foi clandestino, o «D. à Informação» também – como sabe, é claro.
Totalmente de acordo com o penúltimo parágrafo do seu comentário.
Terça-feira, 30.Dez.2008 at 02:12:08
Joana,
O meu comentário baseava-se mais no comentário do Nelson, que no seu “post” o qual acho de excelente interesse e oportunidade. Mais que não fosse porque também eu participei na Vigília de São Domingos e, sobre ele, tenho um entendimento igual ao seu.
A oportunidade deste “post” decorre, no que me respeita, de ter lido o número especial da Visão sobre o ano de 1968, importante em si, mas onde, a par de factos verdeiros, surgem comentários errados ou incompletos, não me ocorrendo agora se a Vigília foi uma das visadas erradamente. Mas tudo o que puder trazer à memória e fazer luz sobre factos importantes do nosso passado recente acho que, mais do que oportuno, é fundamental.
Quarta-feira, 31.Dez.2008 at 06:12:01
Bom dia, Joana e Jorge
Não sendo eu professor, nunca o tendo sido, e ainda por cima não tendo a classe em grande apreço, não deve por isso a minha tentativa de explicação da expressão “cristianismo pagão”, ser entendida como outra coisa que não seja a clarificação do que pretendi dizer com ela.
De forma sintética, é tão simples quanto isto:
Como é do conhecimento de ambos – e utilizando a expressão da Joana, sinto-me também eu no papel de quem ensina o Padre Nosso ao vigário – ao longo da história do cristianismo sucederam-se, de forma alternada, períodos que apelaram principalmente às “coisas do céu”, do alto, da espiritualidade, e períodos que convidaram, de forma mais veemente, para além disso a reparar também nas “coisas da terra”.
A própria iconografia destes diferentes estados de alma dos cristãos, espelha-os de forma eloquente. Imagens de olhar etéreo, dirigido para o Alto, nuns casos, e santos com cara de gente, diria mesmo com mãos calejadas, noutros.
A década de sessenta, em consonância com o Vaticano II, teve, no universo católico, uma componente extremamente sensível aos problemas do mundo secular. Chamei-lhe “cristianismo pagão”. O que aliás me parece até uma redundância, se atendermos a que, desde a sua génese, o cristianismo carrega consigo um significativo lastro de elementos pagãos, herdados dos ritos e mitos anteriores.
(Espero ao menos 10 valores pela minha resposta, Exmos. Profs :)
nelson anjos
Quarta-feira, 31.Dez.2008 at 04:12:04
Nelson
Como você, também não sou nem nunca fui prosessor, muito menos, teólogo, exegeta ou historiador de religiões.
De acordo com meus os conceitos acho, contudo, que a palavra paganismo se atribui a cultos politeístas ou a cultos idólatras, em qualquer dos casos não necessariamente humanizados, para não dizer que geralmente não são mesmo humanizados, mas dizem respeito a divindades.
O resto do meu texto não pretende ser apologético, apenas ilustrativo duma coisa que julgava ser do domínio comum: embora existam muitas pessoas que se dedicaram à coisa pública e social independentemente das suas opções religiosas de então (eventualmente nalguns casos estas posteriormente àquelas), é verdade que muitos portugueses cresceram na sua acção entre os homens em consequência do crescimento da sua consciência como cristãos.
E isso não significa que tenham acabado necessariamente por ser “estrelas” da nossa sociedade. A maioria, como eu, não passou de ser “gente vulgar”, embora empenhada. Mais que gente interessante é gente interessada.
Quarta-feira, 31.Dez.2008 at 04:12:45
Parabéns à Joana Lopes pelo post que é um testemunho muito interessante de acontecimentos que devem ser assinalados.
Interrogo-me se haverá, hoje, na hierarquia da Igreja que está em Portugal, alguém que fale disto, que o lembre às gerações mais jovens, para que a memória faça parte da identidade.
A intervenção do Sr. Nelson Anjos além de indelicada é infeliz e está eivada de ignorância.
Ao Sr. Nelson Anjos fica um conselho: estude, comece pelo Novo Testamento e depois a História do Cristianismo, a História da Igreja etc. etc.
Se lhe sobrar tempo, seria bom conhecer as pessoas, antes de começar logo a dar palpites evitando assim algumas expressões infelizes.
Pode fazer valer um argumento sendo gentil com os outros, sabia?
Sábado, 03.Jan.2009 at 09:01:35
Todos juntos…somos muitos.
Terça-feira, 06.Jan.2009 at 06:01:21
Bom dia Jorge
Eu sei que, para a cultura consumista da blogosfera, oito dias sem bits são uma eternidade. Na blog, o velho dito “mais vale estar calado do que dizer asneiras”, inverte-se: “mais vale dizer asneiras do que estar calado”. Mas em África a eternidade continua a ser maior do que oito dias. Para exemplificar esta diferença de tamanhos do tempo, permita que lhe conte o seguinte: durante estes dias andei pelo mato e, ao passar por uma aldeia onde tinha deixado há meses uma conversa em suspenso, com alguém, ao reencontrar-me com a pessoa ela retomou o assunto como se a conversa tivesse sido interrompida no dia anterior.
Devido a estas diferenças de tempo – que não têm que ver com fusos horários – não sei se virá ler o meu comentário ou não; mas ele aqui fica.
No que se refere as questões de Deus, o meu ponto de vista é o de um ignorante, termo que prefiro ao de agnóstico.
Quanto à questão do significado do termo pagão, creio que os cristãos o utilizaram para se referirem a todos os deuses, que não fossem aquele de que dizem Cristo ter falado, – já que ele não deixou qualquer testemunho escrito.
E sobre a velha dicotomia monoteísmo versus politeísmo, para mim é no mínimo dúbia a natureza monoteísta convencionalmente atribuída ao cristianismo. A estrutura do entendimento teológico cristão não se afasta assim tanto, quanto se reclama, dos modelos mitológicos anteriores. À semelhança da mitologia grega, por exemplo, Cristo nasce também de um cruzamento, que continua mal explicado, entre os homens e a divindade. Por outro lado, o Deus que os cristãos reclamam único, não prescinde apesar disso da pluralidade de três pessoas: a santíssima trindade. Não se trata de três deuses – dizem eles – mas a coisa anda lá próximo.
Sabe o que lhe digo, Jorge? – se Cristo tivesse nascido na Grécia, eventualmente hoje seria apenas mais uma divindade aparentada com Zeus.
Áh !!! – e quanto à questão de não ser professor, muito o felicito por isso. Um bom 2009.
nelson anjos
Terça-feira, 06.Jan.2009 at 02:01:12
Boa tarde, Nelson
Àparte as especulações de terminologia “pagão”, “paganismo”, etc., o essencial no “post” da Joana, quanto a mim, foi o de dar testemunho de que cristãos houve, naquela época de grandes tensões e mudanças (anos sessenta), que não estavam arredados de tais problemas e da necessidade de neles intervir, vindo como exemplo fundamental e visível em 1968 a questão da Guerra Colonial.
Nos comentários que emiti apenas tentei dizer que, embora não sendo maioritária nos cristãos tais acções, elas na verdade decorriam (em muitos casos) de o facto desses cristãos terem desenvolvido a sua consciência dessa condição. Isto é: homens entre os homens e com eles solidários.
Isto nada tem a ver com conceitos pagãos ou não da vida, de culto de divindades ou não. Decorria, na visão desses cristãos, dos próprios Evangelhos e dos Actos dos Apóstolos, com a eventual ajuda das Epístolas.
E, no que respeita ao tempo, estou inteiramente consigo: é um conceito muito relativo. Acho que estamos sempre a tempo.