A leitura de Jorge Almeida Fernandes (JAF), sobre as recentes intenções do juiz Baltasar Garzón de resgatar a memória das vítimas do franquismo, tem dado azo a um animado debate. Aqui neste blogue, Rui Bebiano e Irene Pimentel partiram do tema e procuraram aferir a relação que os historiadores devem estabelecer com o passado e em que medida é legítimo eles assumirem um papel de mediador (ou, em última análise, testemunha de acusação) entre a sociedade e esse mesmo passado, quando se encontram em jogo processos judiciais. A este problema, como ambos os textos nos mostram, não é possível dar respostas taxativas. Como cidadão que é, o historiador tem o direito de se empenhar e participar na consecução da justiça. Por outro lado, tal desígnio pode implicar uma indesejável judicialização da história, contestada pelo apelo de Pierre Nora, que, aliás, JAF convoca para introduzir a temática Garzón. O equilíbrio é precário, o que tanto pode resultar num dilema como num convite à sageza.
Sendo esta questão absolutamente central, nomeadamente para os cultores do ofício, entre os quais me incluo, penso que também será útil rever a temática suscitada pela iniciativa do mediático juiz à luz do olhar das vítimas do franquismo. Na verdade, houve silêncios e silêncios na abordagem da questão da guerra civil nos anos que se lhe seguiram. Houve terror de ambos os lados (muito mais do lado nacionalista), mas enquanto as cinzas de uns (e o trabalho escravo de outros) ergueram o Vale dos Caídos, símbolo da vitória franquista, uma boa parte dos mortos do lado republicano foi despejada em valas incógnitas. Muitos deles assassinados – e isto é importante – não durante o conflito, mas nos anos que se lhe seguiram. Àqueles que sobreviveram chamou Manuel Vasquez Montálban, na sua Autobiografia do General Franco, de «desidentificados», essa massa constituída por «milhares e milhares de espanhóis obrigados a perder a identidade, obrigados inclusive a perder a memória».
Confesso que tenho dificuldade em seguir os meandros jurídicos da questão, que dia após dia se vai complexificando, e que por agora parece consistir em saber se os assassinatos cometidos pelo franquismo podem ou não ser considerados «crimes contra a Humanidade». Os críticos anotam que os crimes não podem ser assim entendidos porque não era assim que estavam tipificados na legislação espanhola da altura, além da questão ter tido um suposto e forçoso encerramento com a Lei da Amnistia de 1977. Garzón, por seu turno, considera que os mais de 114 mil republicanos fuzilados foram vítimas de sequestro com desaparecimento forçado e objecto de um plano sistemático de extermínio, e por isso enquadráveis na categoria.
O curioso é que do lado dos críticos se tem frequentemente evocado o pretenso carácter extemporâneo da acção judicial, devido ao facto da repressão franquista ter sido, de certo modo, ultrapassada pelo tempo e pela acção anestesiante e conciliadora da lei de 1977. A verdade é que não foi: os mortos continuam lá, literalmente cobertos de pó e lama, em locais mais ou menos adivinhados. O facto de ter decorrido cerca de 60 anos sobre os acontecimentos é, pelo contrário, um argumento que legitima o «processo Garzón»: os carrascos estão mortos e a sociedade espanhola já encara esse passado como passado, um elemento essencial para que não se assista a nenhum «julgamento de Nuremberga espanhol», como fazia alusão o texto de JAF, mas para que a atenção se concentre naquilo que exigem as associações que iniciaram este processo: dar uma sepultura, uma história e um lugar digno de repouso àqueles que, até agora, a isso não tiveram direito.
Terça-feira, 21.Out.2008 at 01:10:41
Lamento-me o ter-me precipitado ao colocar um comentário ao post anterior da lavra da Joana Lopes. Tivesse esperado mais uns minutos e teria aqui, mas trabalhado pelo talento de escrita do Miguel Cardina, o que pretendia dizer sobre o tema.
Terça-feira, 21.Out.2008 at 10:10:57
Miguel Cardina e João Tunes têm razão, ao levantarem a questão que de facto não tinha sido abordada, quer pelo Rui Bebiano, quer por mim. Trata-se efectivamente de outro plano e outro tema de discussão. Sobre esta, devo dizer que sou sensível á necessidade de fazer o luto, enterrar os mortos e dar-lhes uma sepultura que os retire do esquecimento. O mesmo se está a passar, por exemplo, na Argentina, trinta anos depois dos crimes da ditadura militar, onde uma das armas mais terríveis e perversas desta última foi precisamente o «desaparecimento» puro e simples dos adversários políticos. Não se saber o que lhes aconteceu e onde foram enterrados impede o processo de luto e transforma algo que se passou no passado num eterno presente por resolver. Dar sepultura, um nome e um rosto aos restos mortais apazigua os que hoje vivem e permite “encerrar” o/no passado, sem que este ensombre o presente. É fazer com que o «passado possa passar» e aí possa finalmente entrar a História.
Terça-feira, 21.Out.2008 at 06:10:15
Seria desnecessário dizê-lo, mas faço minhas as palavras de Irene Pimentel. De acordo, pois, com João Tunes e Miguel Cardina.
Um pequeno aparte que nada tem a ver com este aspecto: não percebo porque insistir em falar-se «dos historiadores» como uma espécie de entidade colectiva mais ou menos monolítica (o artigo do Público fá-lo, uma vez mais): todos eles são cidadãos com opiniões e que, mesmo no plano profissional, pensam pela sua cabeça e defendem diferentes pontos de vista. E nem existe, felizmente, uma Ordem dos Historiadores que imponha preceitos éticos…
Terça-feira, 21.Out.2008 at 10:10:20
Aproveitando o embalo da conversa, um amigo estacionado em Madrid enviou-me a hiperligação para um certeiro comentário de Iñaki Gabilondo sobre o assunto, proferido ontem no telejornal da “Cuatro”, que não resisto a partilhar:
http://www.cuatro.com/videos/index.html?xref=20081020ctoultnot_4.Ves&view=baja
Sexta-feira, 24.Out.2008 at 11:10:36
JÁ AGORA…
Jorge Martins
A herança do positivismo fez do historiador uma entidade abstracta e romântica: vê-se nele um cientista imune às cargas sociais, culturais, ideológicas e psicológicas, que trabalha minuciosamente para encontrar a Verdade Revelada. Em consequência, solicitar a um historiador um parecer sobre um qualquer episódio do passado, é, no entender do senso comum, buscar a Verdade Revelada, pronta-a-servir para as mais insuspeitas finalidades.
Não existe a entidade chamada “o historiador”, no sentido que lhe é conferido. Existem, sim, historiadores, mais determinados pelo que são, do que determinantes do que fazem. A simples escolha de um tema, a inocente formulação de uma hipótese, a eventual selecção aleatória das fontes, a natureza subjectiva da sua escrita, estão inevitavelmente condicionadas pela pessoa, pelo cidadão, que está por dentro do historiador.
Tomemos como exemplo o grande Alexandre Herculano. Como é que se pode estudar a Inquisição portuguesa sem ler a sua obra? Não pode! No entanto, Herculano foi produto do liberalismo vencedor do absolutismo. Isso percebe-se bem quando o lemos. E é mau? Não, bem pelo contrário, é estimulante para os actuais historiadores.
Solicitar pareceres a um historiador – a vários historiadores seria sempre mais aconselhável – é legítimo, pode ser útil, desde que o historiador seja honesto, procure aquilo a que se convencionou designar por objectividade, que, embora transitória, constitui apenas um contributo para uma finalidade – manipulatória ou não –, que será sempre provisória e passível de contestação.
Os historiadores devem questionar-se permanentemente, devem ser os primeiros a duvidar do que escrevem, para não serem tentados por Verdades Reveladas ou “Científicas”. Os problemas começam exactamente quando os historiadores fixam em texto as conclusões a que chegaram. Manter sempre em aberto um diálogo sobre o que escreveu é salutar e indispensável. Mas, servirá essa história, sempre em (des)construção, para fins de consumo político? Provavelmente, não. Problema dos políticos, não dos historiadores. A instrumentalização cultural, religiosa, política, social (e até económica) daquilo que os historiadores escrevem, é assunto que escapa ao domínio da história.
Se o historiador for honesto, estiver dotado de todos os instrumentos metodológicos, conceptuais e epistemológicos, o seu trabalho poderá ser socialmente operante. Se, pelo contrário, o historiador quiser demonstrar à força qualquer “verdade”, terá sempre forma de o fazer. Quanto mais estiver o cidadão comum (e o político, e, já agora, o jurista) consciente destas condicionantes, melhor saberá entender o historiador e o alcance da sua história.
Em jeito de conclusão: não há, pois, historiadores neutros, nem me parece que seja esse o objectivo de qualquer historiador. Não procurar ser neutro não implica necessariamente que se seja manipulador. Procurar historiadores neutros é uma quixotesca aberração positivista (de que o Positivismo não tem culpa, obviamente). Instrumentalizar politicamente qualquer historiador pode significar que o historiador não é digno desse nome, ou o político não é digno da sua função (ou ambos). Haverá sempre “história” para todos os gostos e (in)suspeitáveis finalidades.
Não compete ao historiador traçar limites ao estudo do passado, qualquer que ele seja, pois é o objecto do seu ofício. O passado nunca ficará definitivamente enterrado, mesmo que os políticos o pretendam. Virão sempre outros historiadores que o desenterrarão e tentarão explicar à luz do seu tempo, dos instrumentos novos que possuir, das dúvidas que lhe suscitarem as “verdades” anteriormente construídas sobre esse passado. Nesse sentido, o passado nunca passa para os historiadores.