Maria Natália Duarte Silva Teotónio Pereira, originária de uma família burguesa típica, nunca aceitou os valores ditos tradicionais que quiseram impor-lhe. Casou-se pela primeira vez com dezasseis anos e divorciou-se alguns anos mais tarde. Voltou a casar-se, em 1951, com Nuno Teotónio Pereira, ela agnóstica e ele católico, numa igreja, mas com ritual próprio para situações deste tipo. Como não é difícil imaginar, foi muito negativa a reacção da tradicionalíssima família Teotónio Pereira ao ver um dos seus membros casar com uma jovem divorciada e não católica. Mais tarde, Natália viria a converter-se ao catolicismo.
Concretamente por influência da campanha de Humberto Delgado, e de todo o ambiente criado na sociedade portuguesa, e já integrada nas iniciativas dos católicos que entraram então num novo ciclo na oposição ao Estado Novo, passou a uma fase de grande actividade e teve mesmo um papel decisivo na evolução política do marido.
Sobretudo a partir dos primeiros anos da década de 60, Natália e Nuno foram os grandes impulsionadores de grande parte das iniciativas dos chamados «católicos progressistas» – muitas não teriam pura e simplesmente existido, ou não teriam tido a amplitude que tiveram, sem o empenhamento e a liderança de ambos. Com uma saúde sempre débil, a sua acção exercia-se muitas vezes discretamente na retaguarda, mas com uma eficácia, um espírito combativo e uma tenacidade absolutamente notáveis.
Entre as numerosas actividades em que esteve envolvida, podem destacar-se:
- O jornal clandestino Direito à Informação, policopiado, de que foram publicados dezoito números, de 1963 a 1969. Pela primeira vez, algumas pessoas, invocando a qualidade de cristãos, lançaram-se na imprensa clandestina periódica, alegando explicitamente, como motivo principal, a urgência de divulgar notícias verdadeiras sobre a guerra colonial em Angola, iniciada dois anos antes.
- A fundação da Pragma, Cooperativa de Difusão Cultural e Acção Comunitária, em 1964. Três anos mais tarde, a sua sede viria a ser invadida pela PIDE e encerrada, quando Natália se encontrava sozinha na mesma.
- O jornal Igreja Presente, impresso em Madrid, passado clandestinamente na fronteira do Caia por Natália e Nuno, e depois distribuído por todo o país, aquando da censura imposta à Imprensa sobre a viagem de Paulo VI à Índia, em 1964.
- O Manifesto dos 101, importante abaixo-assinado de católicos sobre a farsa eleitoral em 1965, que bateu à máquina e para o qual se empenhou em angariar assinaturas.
- A vigília na igreja de S. Domingos, com a ocupação das instalações para um debate sobre a guerra colonial, durante toda a madrugada do 1º de Janeiro de 1969.
- A Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos, da qual foi, juntamente com Maria Eugénia Varela Gomes e Cecília Areosa Feio, uma das impulsionadoras.
- Os cadernos GEDOC, publicados pelo Pe. Felicidade Alves, também clandestinamente.
- Os Sete Cadernos sobre a guerra colonial, publicação clandestina que passou integralmente à máquina, em 1970. Os primeiros exemplares foram distribuídos quando morreu e viriam a ser mais tarde publicados, depois do 25 de Abril, pela editora Afrontamento, com o título Colonialismo e Lutas e Libertação.
Uma casa de férias da família, em Marvão, foi ponto de saída, a salto, de desertores e refractários.
Tudo isto acontecia mais ou menos em paralelo, envolvendo muitas pessoas, muitas cautelas em termos de clandestinidade, muitos sustos, muita solidariedade. Na linha da frente ou na retaguarda, toda a gente sabia – mesmo quando não podia ser dito – que a Natália estava envolvida.
Mantinha contactos estreitos e frequentes com perseguidos pela PIDE ou pelo Patriarcado, nomeadamente padres católicos, entre os quais: D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto; Pe. Joaquim Pinto de Andrade e restantes padres angolanos deportados para Portugal, entre os quais o futuro cardeal de Luanda Alexandre Nascimento; Pe. Adriano Botelho, pároco e Alcântara e de S. João de Brito, exilado para a Patagónia pelo Cardeal Cerejeira; Pe. António Jorge Martins, obrigado a ir estudar para França pelo mesmo cardeal; Pe. Abel Varzim; Pe. Alberto Neto; Pe. Mário de Oliveira, preso por duas vezes e julgado em Tribunal Plenário; Pe. José da Felicidade Alves, demitido de pároco dos Jerónimos e impulsionador dos cadernos GEDOC.
Publicou um livro de poemas Mão Aberta e lançou uma colecção para a juventude – Nosso Mundo – em colaboração com Sophia de Mello Breyner Andersen e Madalena Férin, na qual foram publicados dez títulos.
Ao longo desses anos de luta, defrontou-se sempre com problemas de saúde, chegando a estar internada num hospital de Paris. Mas, entretanto, empenhava-se com a maior dedicação na resolução dos problemas familiares, na educação dos filhos e no cultivo das amizades.
Morreu com 40 anos e não chegou a ver o 25 de Abril. Não resistiu ao fim de uma gravidez difícil, passada quase sempre em repouso absoluto (o que não impediu a PIDE de então a visitar e interrogar formalmente).
É doloroso lembrar a vigília que precedeu o enterro da Natália e da Catarina que não chegou a nascer, mas é impossível não a referir. Trinta e sete anos depois é ainda recordada, com um arrepio, por todos os que viveram naquela noite um drama em que não queriam ainda acreditar.
Como doloroso foi, embora também gratificante, relembrar tudo isto para escrever este texto. Lidei de perto com a Natália durante alguns anos, admirei-a e deu-me uma vez uma enorme descompostura (nunca o esquecerei) por não me ter aplicado com o zelo que ela entendia ser necessário a uma determinada tarefa – era o seu jeito de estar na vida. Ainda hoje sou incapaz de entrar na casa em que sempre a conheci, onde vi crescer a Luísa, o Miguel e a Helena, e onde agora converso com o Nuno e com a Irene, sem que tudo volte a estar bem presente.
P.S. – Aconselha-se a leitura do 9º Comentário a este post, da autoria de Miguel Teotónio Pereira, pelo complemento informativo que o mesmo encerra.
Mais: Dados biográficos e fotografias de Maria Natália Teotónio Pereira
Terça-feira, 16.Set.2008 at 12:09:46
grande trabalho. parabéns.
Terça-feira, 16.Set.2008 at 05:09:01
Parabéns a ti e ao Nuno que tudo fazem para que a Memória se não apague.
Terça-feira, 16.Set.2008 at 06:09:39
Tangas, muito obrigada. Fazemos este trabalho com muito prazer.
Terça-feira, 16.Set.2008 at 06:09:21
António,
Vindos das profundezas da tua discrição e do teu habitual silêncio, estes «parabéns» têm um sabor especial. Farei com que cheguem ao Nuno.
Um abraço e até breve – prometo.
Quarta-feira, 17.Set.2008 at 04:09:53
Gostei muito de todo o vosso blog.
Parabéns.
PS. Roubei este post para colocar no meu sítio, espero que não se importem.
Quarta-feira, 17.Set.2008 at 06:09:30
Gostei bastante de ler este artigo.
Surgiu-me apenas uma questão. A foto publicada é em Serpa? Sabe dizer-me?
Cumprimentos
Quarta-feira, 17.Set.2008 at 06:09:34
Por acaso sei, Jorge Revez: Serpa 1969.
Abraço.
Quarta-feira, 17.Set.2008 at 06:09:52
Helena Marques, Nada a opor.
Sugeria apenas que, quando indica a fonte, o respectivo «link» apontasse exactamente para este «post» (e não para o ciclo em geral). Obrigada.
Sexta-feira, 19.Set.2008 at 05:09:19
Na qualidade de filho da pessoa evocada neste artigo, os meus agradecimentos à Joana, figura que muito bem, e gratamente, recordo (lá das brumas da minha infância), por este texto rigoroso e afectuoso; não posso também deixar de lhe agradecer a simpática referência que faz aos respectivos filhos, e, já agora, a atenção que teve em os prevenir, por e-mail personalizado, deste post.
Fugindo um pouco a um mecânico encadeamento de factos e de registos, a Joana logrou um texto onde as memórias pessoais também têm lugar; e não pude deixar de me sorrir, ao ler a referência que faz a uma descompostura em regra que a minha Mãe lhe destinou; poderá a Joana imaginar as que eu sofri… De facto, se alguma coisa caracterizava a minha Mãe, era dizer o que tinha a dizer, fosse a quem fosse, na hora e na cara – e, nessas alturas, não media as palavras: limitava-se a escolhê-las pelo seu preciso significado.
Isto dito, permita-me a Joana que lhe chame a atenção para dois aspectos, aliás interligados, que são, a meu ver estranhamente, recorrentes em todas as abordagens, mais curtas ou mais longas, que, acerca da minha Mãe, tenho conhecido:
– o primeiro, diz respeito à sistemática omissão do nome do primeiro marido (neste post, por exemplo, tal verifica-se quer no próprio texto, quer na biografia que lhe está associada); esta omissão é regra em todos os textos que, acerca da minha Mãe, tenho lido e verifica-se, igualmente, nas notas biográficas insertas no livro “Cada pessoa traz em si uma vida”. Trata-se, a meu ver, de uma misteriosa omissão, desde logo, porque a pessoa em causa – Jaime Salazar Sampaio – está longe de ser uma figura anónima; trata-se, com efeito, de um nome cimeiro e incontornável da moderna literatura e dramaturgia portuguesas. O facto desse casamento poucos anos ter durado é irrelevante.
– o segundo aspecto, ligado àquele, é que, muitas vezes, ao ler esses textos sobre a minha Mãe, fica-se com a impressão que a sua vida intelectual e cívica começou com o seu casamento com o meu Pai; a sua vida anterior está como que “branqueada”, inclusive para mim, seu filho. Ora, apesar da sua juventude, parece certo, apesar de me faltarem dados e registos precisos, que ela participava de uma roda de artistas e intelectuais que incluía, por exemplo, o (para mim) saudoso Luiz Pacheco, e que o seu casamento com Salazar Sampaio evidencia; sei, inclusive, que o Luiz Pacheco lhe dedica uma referência, num dos seus escritos – só não sei qual (alguma alma caridosa me poderá dar essa indicação?).
Faço este reparo por amor à Verdade, que, devendo ser sempre respeitada, por maioria de razões o deverá ser quando falamos de pessoas concretas; e faço-o, também, porque estou convicto de que esse, ainda que curto, período da sua vida, foi fundamental na sua formação e na formação da sua personalidade – não nos esqueçamos que ela se considerava uma escritora (aliás, é nessa qualidade que é apresentada no famoso inquérito sobre o casamento promovido pelo O Tempo e o Modo); e não era ela que insistia no carácter inteiro (e, por consequência, indivisível, acrescento eu) da pessoa humana?
Acontece que esse cadinho, digamos assim, da vida da minha Mãe, está perdido, temo que definitivamente, nas “brumas da memória”. Faz falta resgatá-lo. Na minha discutível opinião, mais do que insistir em aspectos já sobejamente conhecidos e documentados.
Um beijo saudoso à Joana.
Miguel
Sexta-feira, 19.Set.2008 at 05:09:54
Miguel,
Muito e muito obrigada pelo comentário que aqui deixaste, até porque o teu «exílio» geográfico faz com que sejas o único membro da família que não vejo há muitos anos.
Quanto ao precioso complemento informativo que o referido comentário encerra, vou fazer o seguinte: pôr um P.S. no texto aconselhando a sua leitura.
Um grande abraço.
Sexta-feira, 26.Set.2008 at 07:09:47
Conheci a Nat´lia (ao lado do Nuno)em 1970no início de uma fase muito especial da minha vida pessoal.
Desde então e durante o nosso convívio ao nível individual ou colectivo, a Natália, pela sua inteligência, lucidez, coragem e também pelo seu afecto e sensibilidade foi para muitos de nós a grande inspiradora e o grande e discreto apoio a iniciativas concretas de solidariedade e de intervenção num difícil contexto social.
Com dor senti a sua partida definitiva como o máximo de um tstemunho de coragem e de coerência .
Por isso a Natália faz parte do meu património de vida, no que ele tem de melhor ,como dom de Deus.
Muito obrigada Joana e um abraço.
Elisete
Sexta-feira, 26.Set.2008 at 10:09:28
Elisete,
Li o seu comentário com as lágrimas nos olhos – porque não dizê-lo.
Não tem mesmo nada que me agradecer porque sabe muito bem que faz também parte do «patromónio de vida» de muitos de nós.
Um grande abraço.
Quarta-feira, 29.Abr.2009 at 11:04:39
Parabéns pelo v/ blog que me encantou.
Encontrei-o na pesquisa que fiz sobre a Maria Natália Teotónio Pereira que não conheci, (apenas o marido nos bons tempos do MES) e eu vivia no Porto e não em Lisboa.
Comprei o livro “Cada Pessoa Traz Em Si Uma Vida” em 1975, adorei-o e, ao fim de certo tempo, ofereci-o à namorada na altura que o veio a perder. “Saquei” um segundo livro de um caixote de “velharias” nos escritórios das Edições Afrontamento(o único e último exemplar, segundo o responsável da Editora, penso que se chamava Melo) e ofereci-o à minha Mãe que o emprestou e o mesmo não foi devolvido.
Que me ler, será capaz de descobrir aí algum exemplar velhinho, a mais, que eu compro, ou mesmo em fotocópia pois irei guardá-lo a “sete chaves” e só para mim.
Tenho momentos que dá uma vontade imensa de ler
novamente a Natália a falar de si mesma com um ternura e envolvência impressionantes…
Obrigado e bom trabalho.
ângelo
Quarta-feira, 29.Abr.2009 at 11:04:03
Muito obrigada por este seu comentário. Vou enviá-lo ao Nuno.
Prometo-lhe que tudo farei para lhe enviar um exmplar do livro ou uma fotocópia.
Quinta-feira, 30.Abr.2009 at 08:04:30
Muito Grato… mesmo que sejam fotocópias.
ângelo