Apresentação da peça Macbeth… o que se passa na tua cabeça? (1970)

Ricardo Seiça realizou «Estado de Excepção», um documentário – de que já se falou neste blogue – sobre o CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra). O autor explica-nos os motivos que o levaram a fazer o filme e esclarece que este é apenas a parte inicial de um trabalho etnográfico em curso.

Como é que apareceu a ideia de fazer um documentário sobre um grupo de teatro universitário, no caso o CITAC?

A ideia decorreu do convite que o CITAC me fez para os ajudar a fazer um projecto teatral sobre a história do inter-organismo e da sua influência no seio da Associação Académica de Coimbra (AAC), com o intuito de participar na comemoração dos 120 anos da academia. Por outro lado, creio que a geração actual do CITAC quis fazer algo sobre o grupo também decorrente das comemorações dos seus 50 anos (1956/2006) depois do lançamento de um livro comemorativo sobre a sua história. Talvez o facto de esta geração ser a primeira “fora da história” (do livro editado) tenha produzido um sentimento de que era interessante, também eles fazerem algo para a história.

Estando a fazer um estudo etno-histórico sobre o CITAC no âmbito de um doutoramento em Antropologia e tendo, eu próprio, pertencido ao grupo em 1995, e também pelo facto de ser um criador, pensaram ser interessante fazermos um projecto. O investigador tornou-se parte da investigação, impelindo o estudo para uma observação-participante peculiar. Tudo estava por fazer: tínhamos o precioso documento do livro e alguns documentos desorganizados no CITAC, tendo em conta que todo o espólio anterior a 1969 fora confiscado pela PIDE (da investigação feita junto dos arquivos militares, tudo parece ter acabado por desaparecer), e conhecíamos a história dos movimentos estudantis. Sugeri que fizéssemos entrevistas a (ex)citaquianos e que as filmássemos, em ordem a produzir conteúdos para construir a peça teatral que se começou a configurar como teatro documental. De caminho, a par da peça teatral, poderíamos realizar um documentário. E assim surgiu um objecto artístico “dois em um”.

O filme começa em 1956, ano de fundação do grupo, e termina em 1978. Que razões estiveram na base da escolha dessa data como limite temporal, uma vez que o CITAC ainda hoje se mantém?

Há várias razões que se cruzam para justificar essa escolha. Em primeiro lugar, para enriquecer as informações sobre o grupo de teatro, teria que se aprofundar as temáticas nas entrevistas realizadas, e procurar uma diversidade de vozes. Atravessando o período do Estado Novo em Coimbra através de um grupo de teatro, cruzam-se as mentalidades e os hábitos de ser e estar no mundo. O CITAC institui-se através do teatro mas extravasa a acção teatral na cidadania actuante e socializante. Como só havia um mês e meio para fazer as entrevistas e, tendo de fazer opções no que diz respeito à densidade dos conteúdos do filme e tempo razoável que um documentário deve ter (e reduziu-se o tempo ao máximo), acabou por ser uma opção conveniente terminar nesta data.

Pretendia-se o máximo de informação passível de se transformar em conhecimento útil para a peça teatral e dar material de trabalho aos actores (construção de cenas e personagens), obrigando a uma descrição densa. Assim se cruzou a história do CITAC com a da AAC; a vida sociocultural em Coimbra e a configuração das mentalidades; a resistência política ao regime e o escape às lógicas do poder imaginados através dos processos teatrais; a vida nos cafés e a posição da mulher na sociedade. Outras temáticas apareceram nas entrevistas e serviram para a construção da peça teatral, mas foram preteridas no documentário, como seja o papel do Partido Comunista Português ou a história da música de Coimbra, que aparece embora pudesse ser mais aprofundada.

Poderia parar na revolução de Abril, o que faria do documentário um Estado de Excepção evidente. A questão é que se descobriu que logo após 1974, esse Estado de Excepção perdurou no CITAC, expresso nas performances de rua que reflectem o desapontamento da democracia que se idealizava na nova governação (chegaram mesmo a ser censurados pela polícia), forçando a inclusão deste período por ir ao encontro do argumento de Giorgio Agamben.

Como em 1980 o CITAC, com o CAPC (Círculo de Artes Plásticas de Coimbra) organizam um importante festival de artes performativas (PROJECTOS&PROGESTOS: Tendências e Polémicas nas Linguagens Artísticas Contemporâneas, iniciativa que enquadra 91 artistas e 12 países), bem como pelo facto de a partir daí o CITAC começar a ter cursos sazonais que ditam o tempo de cada uma das gerações e o modelo do grupo até hoje, o final do documentário fica em 1978 (assim como o espectáculo de teatro resultante). Provavelmente, e porque “o império contra-ataca”, haverá a continuação da saga em filme.

Estado de Excepção remete para um conceito de Giorgio Agamben, no qual o filósofo italiano faz referência ao poder dos Estados para utilizar mecanismos legais para suprimir a própria legalidade. Porquê a escolha deste título?

O conceito de Agamben (O Poder Soberano e a Vida Nua: Homo Sacer) está na génese da democracia moderna, na Revolução Francesa. O estado de sítio significaria a suspensão da lei com o objectivo de defesa da própria lei. Constitui-se como um mecanismo essencialmente extra jurídico de protecção da ordem jurídica, uma suspensão provisória do regime democrático para a salvação da democracia, uma supressão dos direitos individuais dos cidadãos como única forma de garantir a cidadania (para não falar da liberdade de mercado). Em princípio, o Estado de Excepção é contingente e só se manifesta em momentos excepcionais de crise como forma extrema dos Estados se defenderem enquanto Estados. Giorgio Agamben identifica, contudo, um processo de deslocamento histórico em que as medidas excepcionais, se afiguram cada vez mais como técnicas normais de governo. Para ele, tornou-se num paradigma dos regimes democráticos, produto de uma metamorfose segundo a qual, o germe do totalitarismo, se revela imanente à própria constituição dos Estados democráticos modernos. A proposta que faço é de operacionalizar uma mudança de perspectiva e inversão do olhar.

Em 1956, altura em que o CITAC é fundado, vivia-se um regime totalitário em Portugal. Os anos sessenta foram marcados por intensos movimentos sociais emergentes das universidades e os estudantes da Universidade de Coimbra tiveram um papel destacado. A cada investida mais radical dos estudantes para assegurarem a democratização do ensino e, mais particularmente, da sua associação académica (o famigerado decreto 40.900), o regime actuava com medidas excepcionais em ordem a repor a normalidade. A opressão, em última análise, suspendeu os direitos de cidadania de todos aqueles que participaram nas manifestações resistentes à ideologia que vigorava (prisões para interrogatório; imposição de se alistarem para a guerra, impossibilidade de arranjar emprego, etc.). No processo, várias vezes a AAC foi fechada, alterada a sua identidade jurídica, ora democraticamente constituída, ora gerida por comissões administrativas. Contudo, o CITAC, mesmo no centro da luta contra o regime, enquanto organismo autónomo da AAC, escapou sempre à opressão, constituindo-se como uma excepção ao Estado de Excepção que vigorava. O grupo de teatro teve sempre uma identidade democrática, o regime foi ineficaz em “matar” a sua vida. Por isso, se propõe a inversão do conceito de Agamben para dar conta do movimento contrário, isto é, da possibilidade em se resistir à “biopolítica”, melhor, do efeito da marginalidade em escapar à lógica do poder e resistir. Mesmo depois da revolução, o CITAC é crítico em relação à ideia de democracia e a perversão que o Estado de Direito poderia vir a produzir, sobretudo depois do 25 de Novembro de 1975, em que pressentiram as suas liberdades se direccionarem para uma excepção que estava a virar regra.

O documentário é uma espécie de icebergue, a ponta visível de um trabalho que está a ser desenvolvido no âmbito de um doutoramento sobre o CITAC de 1956 até à actualidade. É possível apontar algumas das hipóteses de investigação que tem vindo a seguir?

O doutoramento é em Antropologia e desenvolve-se no ISCTE (Instituto Superior das Ciências do Trabalho de Lisboa). Ainda falta alguma etnografia para realizar e um investigador coloca hipóteses atrás de hipóteses por detrás de um enigma. O documentário e o espectáculo teatral são já veios de uma engrenagem que torna visível um ponto de vista. O enigma da tese é mais alargado, interessa também perceber os efeitos da experiência de ter passado no CITAC para a identidade pessoal, no que diz respeito ao desenvolvimento de competências (no total, poucos se profissionalizaram nas artes performativas, e em como essa experiência se repercute na formação da pessoa (e se tem repercussões, como e porquê?). Assim, tudo paira provisório. Para já, prefiro deixar as hipóteses de investigação para os informantes. Por ser prematuro, dou-me à liberdade de seguir os conselhos do poeta (Herberto Hélder), de não criar moldes quando não há modelo.

O facto de ter sido citaquiano ajudou-o na realização deste documentário. E em relação ao doutoramento?

Cedo, a antropologia se tornou reflexiva, expondo os dados e o conhecimento também em função da forma como metodologicamente esse conhecimento foi produzido. Aqui, a presença do investigador no terreno é sempre controlada, ou seja, constitui-se como uma dimensão do trabalho que deve ser vigiada e pensada, dada a impossibilidade de neutralidade.

O facto de ter sido citaquiano fez com que já conhecesse a história do grupo, tivesse acesso facilitado a documentação e aos informantes. Talvez mais importante seja o facto de ser implícito um senso de comunidade que é partilhada por via da pertença ao grupo, e que contém implícito uma espécie de ethos de estar e ser no mundo. Se a entrada no campo foi facilitada, a empatia com os informantes ficou igualmente assegurada.

Apesar de ser difícil contestar a minha observação-participante, terei que me concentrar no distanciamento crítico indispensável para a interpretação e análise dos dados. Contudo, parece-me que o facto de ter sido citaquiano vai tornar possível a descoberta e produção de conhecimento que de outra forma teria sido muito complicado. Provavelmente não poderia ter dirigido um projecto artístico documental com o grupo. E esse facto já enviesou a investigação para caminhos decorrentes disso.