Estado de Excepção é um documentário que conta a história das primeiras duas décadas de existência de um grupo de teatro peculiar, o CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra). Fundado em 1956, no contexto da renovação política e cultural que precedeu as erupções contestatárias dos anos sessenta, o organismo transformou-se num lugar onde se ensaiaram e difundiram lógicas políticas, comportamentais e performativas diferentes daquelas que o Estado Novo se esforçava por promover. Energias de cariz libertário que, como o troço final do filme nos mostra, tiveram expressão, no rescaldo da revolução de 1974, nas tentativas de síntese entre uma prática teatral simultaneamente de vanguarda e popular.
Com realização de Ricardo Seiça Salgado, este é um objecto que surpreende desde logo pelo seu eficaz encadeamento narrativo, feito de pequenas histórias que fornecem um olhar comum sobre um tempo. O que remete para uma das virtudes do documento, isto é, a opção em contar a história do CITAC pela voz dos próprios citaquianos. Na verdade, muitas das informações que vão sendo relatadas ao longo do filme, não poderiam chegar até nós senão pelo testemunho dos próprios protagonistas. Recorde-se que estamos a falar de uma época em que um simples livro de actas podia ser uma prova incriminatória e de um organismo que foi esbulhado de todo o seu espólio a seguir ao encerramento compulsivo das suas instalações em 1970.
O documentário aproxima-se também daquilo que tem vindo a ser chamado de «micro-história», e que consiste, em traços simples, na capacidade de «ampliar a escala» e de atentar nas tensões que atravessam um objecto de dimensão relativamente reduzida. Deste modo, o estudo do «particular» permite iluminar o «geral», seja porque nos dá a ver a expressão localizada de alguns traços comuns, seja porque introduz perplexidades, quando se descobre uma «excepção» onde devia estar a «regra».
Assim, muitos elementos no filme permitem confirmar – e este é também o seu valor pedagógico – o retrato das lutas estudantis em Coimbra. Vemos ali, através do CITAC, o impacto da «Carta a uma Jovem Portuguesa» e o protagonismo crescente da mulher; as dinâmicas ocasionadas pelos conflitos de 1962 e de 1969; a presença rumorejante da guerra colonial; as energias gregárias, por vezes a roçarem a «guerrilha lúdica», muito próprias de Coimbra; o retrato de uma sociedade moralmente opressiva, da sua abertura lenta, do 25 de Abril e da experiência do PREC.
Por outro lado, o filme dá-nos elementos novos que ajudam a entender melhor o CITAC e o meio estudantil de Coimbra durante a ditadura. Dois exemplos: em primeiro lugar, o desenho que é feito da evolução interna do grupo mostra que o «vanguardismo» pelo qual ainda hoje é conhecido, não foi um dado uniforme. Apesar de um evidente arrojo estético, os diferentes encenadores – Luís de Lima, Victor Garcia, Ricard Salvat ou Juan Carlos Oviedo – representam etapas distintas em termos de métodos e práticas teatrais. Em segundo lugar, o documentário prova como, inserido no contínuo e crescente processo de contestação que invadiu os meios estudantis durante a década de 1960, o CITAC representava também aqui, a nível político, um papel de vanguarda. A este respeito, o título é certeiro: criando «espaços de liberdade», conquistando terreno ao cinzentismo dominante – que tinha por vezes expressão junto de certas elites de esquerda – o CITAC foi um pedaço, importante e singular, da resistência política, cultural e moral ao Estado Novo.
Quinta-feira, 10.Jul.2008 at 08:07:22
Vi o trailler sobre o documentário: muito interessante.
Mas, e então o TEUC de Mestre Paulo Quintela…e não só, por onde anda? Finou-se?
Mesmo depois do 25 de Abril – por lá andaram o João Grosso, o Ricardo Pais, nomeadamente.
Ai!, a Coimbra das “capelinhas”!
José Albergaria
NB – A “critica” não vai para a gente do CITAC, que fez o seu trabalho, mas para a atmosfera, o ambiente.
Falar de teatro em Portugal, falar de teatro em Coimbra, falar da história do teatro é obrigatório falar do CITAC e, ainda…do
TEUC!
José Albergaria
Quinta-feira, 10.Jul.2008 at 11:07:43
Esta é uma história do CITAC feito por citaquianos. Sendo uma parte da história do teatro português, do teatro universitário e do teatro em Coimbra, não pretende esgotar qualquer uma destas realidades.
Do que sei, o TEUC continua vivo e de boa saúde. Talvez um dia nos presenteie com material histórico de idêntico calibre!
Segunda-feira, 06.Out.2008 at 02:10:47
Vi o pequeno video de apresentação,dos”Estado de excepção”e adorei a forma como vocês lêem o passado,de um grupo de pessoas que contribuiram para uma transformação cultural e social no nosso “Portugal dos pequeninos”.Faço parte dos actores que por aí passaram no pós-25 de Abril, de 1974 até 1983.Hoje sou profissional,graças a essa experiencia maravilhosa de convivio, e amor à arte de representar.Sem esse passado,sentir-me-ia orfão.Por isso obrigado por me ajudarem a traçar um perfil de uma época,cujos contornos emocionais ficaram para sempre marcados no meu coração.Quando sair a DVD,mandem dizer.Abraços citaquianos!
Terça-feira, 07.Out.2008 at 01:10:56
Se este comentário é o que foi apresentado na Figueira, no Casino, já na altura me tocou bastante. Como o Jorge Vasques, o Bandeirinha, o Aníbal (Bolinhas), o Rui Damasceno, também por aí andei, no princípio ainda pedrado com Abril, depois na luta contra a desilusão e o retrocesso a todos os níveis que íamos percebendo. Foram anos que me marcaram muito. Amámos, sonhámos, brincámos, barafustámos e no fim, saímos vivos, mas não ilesos. O vício ficou, o sonho também, e para sempre aqueles companheiros(as) que embora estejam longe dos olhos, andam aos pulos no coração.
Citaquiano uma vez, totó para sempre. Um abraço e quando tiverem o filme pronto, avisem.