Conclusão da entrevista a Francisco Martins Rodrigues (1927-2008), realizada em Janeiro de 2008 (1.ªparte; 2.ªparte)

Ainda antes da constituição da FAP e do CMLP foi à China e à Albânia. Encontrou diferenças entre esses dois países?
Sim! Embora isso na altura fosse um bocado desconfortável para mim, porque eu estava na fase de querer ver tudo aquilo enquadrado… A Albânia tinha um discurso bom, anti-soviético, mas era um país atrasado e cheio de dificuldades. Eles fartavam-se de falar da experiência deles, da maneira como fizeram a guerrilha, o que era uma experiência relativamente limitada. Todo o discurso deles girava à volta disso. Quando falávamos da nossa experiência, não tínhamos correspondência.
Os chineses tinham uma experiência política e ideológica incomparavelmente maior. Na China encontrei uma profundidade que me agradava muito mais. O quotidiano dos chineses também me pareceu mais autêntico do que o dos albaneses. Levavam-me ao cinema, aos mercados, falávamos com as pessoas… Na Albânia era tudo controlado ao mais pequeno pormenor. Era sinal de que eles não se sentiriam muito à vontade. Sentia-se que, para além daquilo que nos diziam, havia um dia-a-dia que nos escapava. Na China não me apercebi disso. Na verdade, não conheci muito, estive lá menos de dois meses… E também fiz muitas visitas para encher o olho (visitas a fábricas, grandes banquetes com aparatchiks, etc.)..

Estava-se em vésperas da revolução cultural. Sentiu algum prenúncio disso?
Não. Presumo que eles tivessem cuidado em não transmitir o que discutiam internamente. Às vezes perguntam-me com quem discuti e sinceramente não sei dizer. Alguém do Comité Central, mas que não guardei na memória.
Eu gostava das discussões e dos argumentos utilizados por eles. Tinha um tradutor comigo, que falava espanholês e que tinha uma boa formação cultural, e que me levava a alguns sítios. As propostas dele eram do género de ir ver o Museu da Revolução mas eu preferia outro tipo de coisas, como ir ao cinema: cheio de gente, uma algazarra, tudo a discutir. Parecia-me que esse tipo de sítios permitiam entrar um pouco mais na maneira de ser das pessoas. Era um país pobre, sem dúvida. Mas notava-se que a transformação era um processo que envolvia as pessoas e não apenas os apparatchiks.

Como é que se deu a formação da FAP?
Eu contactei com o Humberto Belo e com o Manuel Claro e, pouco tempo depois, junta-se o Rui e o Pulido. Quando o grupo toma forma seriam à volta de vinte pessoas, dissidentes do partido, mas em fases diferentes: uns ainda ligados, outros já em ruptura.
O CMLP era uma coisa restrita. Fizemos uns números da Revolução Popular e outros do Acção Popular, este mais pobrezinho, só para marcar presença. E começámos, com o Pulido à cabeça, mais desembaraçado e activo, a tentar agarrar contactos para lançarmos bases em Lisboa.
Ele e o Claro vêm a Portugal e a coisa correu-lhe mal. Foi falar com o Rogério de Carvalho, um tipo que era funcionário e que participou do assunto à direcção do partido. É nessa altura que eles fazem o «Cuidado com Eles». Contacta umas pessoas que nos podiam servir de apoio, mas politicamente limitadas. Ele volta para lá e resolvemos organizar a nossa vinda.

Antes de falarmos da vossa vinda para o «interior», uma questão sobre a FAP e o CMLP. Em termos leninistas, é estranho construir-se primeiro a frente e só depois a organização comunista. Que leitura pode ter isso? Esperam que o Partido Comunista pudesse ainda mudar por pressão das bases?
Não o partido. Que pessoas do partido pudessem mais facilmente se aproximar de nós se aparecêssemos primeiro sob uma forma frentista. O nosso ponto forte era que estava a haver um descontentamento crescente com a maneira como estava a ser conduzida a luta contra o fascismo. Isto era um sentimento muito generalizado. Pensámos – o Pulido era muito entusiasta disso, mas eu também concordei – que se captássemos primeiro as pessoas dessa orla, podíamos dar o outro passo, a constituição do Comité, já com mais força.
Ainda fizemos umas reuniões do Comité em Paris, umas discussões ideológicas, com cerca de uma dúzia de pessoas. As reuniões da FAP, com desertores e malta assim, tinham mais gente.

Depois decidem vir para Portugal…
Venho eu, o Pulido e o Rui, separados e já não sei por que ordem. Cá, cada um arranja uma casa, entramos em contacto e passamos a fazer reuniões. Isto em 1965. Logo tropeçamos no gajo…

No Mário Mateus.
Pois. O Pulido conhecia-o já anteriormente, tinha ido a casa dele tratar do filho, criou empatia com ele, «que era um gajo porreiro, que também criticava o partido» e tal. Ainda me lembro que o Pulido teve uma reunião com o Mateus, em Alvalade, e eu, como desconfiei, ainda lá fui espreitar. Estive lá debaixo de uma árvore… não sei o que é que pensava fazer se aparecesse a Pide! Os gajos lá foram passear, porreiros, e eu pensei: pronto, não há azar.
Passado uns tempos o Pulido não aparece ao encontro. Tinha sido preso e manda-nos um recado a dizer que o Mateus de certeza que tinha falado na polícia porque lhe tinham feito perguntas que indiciavam conhecimentos. O Pulido tinha ido para a Penitenciária porque tinha um processo antigo por «desonrar uma menina». Como havia esse processo, a Pide largou-o. Isso também indica a pouca importância que nos davam. Isso deu-lhe oportunidade, na cadeia com os presos comuns, de passar cá para fora aquela mensagem.
Eu e o Rui vimos que tínhamos de ir apertar o gasganete ao homem para ver o que é se passou. Pegamos no gajo e levamo-lo para fazer o interrogatório. E o desfecho é conhecido. Eu não conhecia o gajo, conheci-o nessa altura. Nós estávamos cheios de dúvidas mas íamos apertando: «não nos venham com histórias, tu disseste isto e isto à polícia, a polícia atacou o Pulido, o que é que tu sabes» e tal. No fim, estávamos quase a deixar o gajo e ele, talvez de cansaço, confessa.
O tipo tinha aparecido na mesma noite da prisão do Pulido ao Rui, dizendo-lhe que o Pulido deveria ter sido preso, porque ele tinha ido a um encontro com ele e o Pulido não tinha aparecido. E que se estavam a murmurar coisas esquisitas lá nos cafés, entre as quais que a polícia tinha ido lá prender um gajo. Quando ele diz que tinha entregue o Pulido e recebido nessa mesma noite o pagamento da polícia, vimos o que tínhamos a fazer. Não é fácil dar dois tiros num gajo, mas para nós tinha-se tornado numa coisa absolutamente obrigatória.
Eu já tinha sido preso uma vez, denunciado por um tipo. Em Lisboa, então, era uma coisa espantosa.

Havia muita gente a prestar-se a essas tarefas de denúncia?
Muita. Operários pagos pela Pide, que se iam mantendo até chegarem ao contacto com os funcionários, que era quem eles queriam. Quando um funcionário era destacado para Lisboa dizia-se, meio a brincar, «tu não duras muito». Na província era uma brincadeira. A própria Pide não estava muito desenvolvida em algumas zonas. Era esse bandido do José Gonçalves, que nem era inspector, era chefe de brigada, e que era o génio destas coisas. Fazia reuniões nos bairros com os informadores. Isso permitiu à Pide prender muitos funcionários e fez com que o gajo fosse promovido por distinção. Eu fui assim apanhado: ao terceiro encontro com um gajo, catrapuz (a prisão em que sou preso com a Fernanda).
Depois o partido foi obrigado a entrar em acção e ainda matou dois gajos. Mas até àquele tempo havia uma relutância enorme em enfrentar de frente o problema: e se o gajo é Pide, depois o que é que a gente faz? Quando muito, punha-se à margem pessoas sobre as quais havia desconfianças. Só que ele estava uns meses à margem e depois aparecia, «camaradas, quero trabalhar» e lá vinha o gajo.

Significa que, antes de vos aparecer no concreto o caso do Mateus, vocês já tinham pensado o que fazer se vos aparecesse uma situação daquelas…
Sim, exactamente. Mas foi uma asneira, porque nós não tínhamos estrutura para aguentar uma coisa daquelas. Era como se estivéssemos a provocar a Pide. Mas não podíamos voltar atrás: já tínhamos decidido, os cabrões andavam a fazer o que queriam, tínhamos de dar o exemplo.
Quando a polícia sabe que o tipo foi morto não teve dúvida nenhuma sobre quem tinha sido. Prendeu toda a malta da FAP que andava a vigiar. Quando somos presos já havia para aí dez tipos presos, ligados à FAP, presos.
Depois de termos feito àquela asneira, a única coisa a fazer era rasparmo-nos para a província. Não tínhamos muito dinheiro, também havia esse problema. Mas, enfim, reduzimos a actividade e continuámos em Lisboa. Conforme os dias passavam, eu e o Rui víamos o cerco a apertar. Era preso um, depois outro… Eu sou apanhado num encontro com o engenheiro Acácio Barata Lima, na freguesia de Santa Isabel. Nem nunca ficou muito claro como é que a polícia foi lá ter. Não foi por culpa dele.

Ainda tentou resistir?
Claro, ainda fiz barulho, disse o meu nome e que estava a ser preso, mas era de noite, havia pouca gente, pouca iluminação… Ainda consegui mandar uns papéis fora.

Na prisão foi extremamente maltratado…
Foi o sono…

Nunca tinha feito, antes?
Não. Nas outras prisões o tratamento foi muito diferente. Umas horas de pé, uns insultos. Cheguei a estar uns meses nos curros do Aljube, mas espancamentos e torturas não tive. Eu atribuí isso ao problema de tuberculose que tinha tido.
Logo quando fui preso fui levado para o piquete onde me insultaram e agrediram violentamente: «cabrão, filho da puta», porrada, socos…. Depois saíram e entrou um inspector: «então, o que se passa, o senhor está ferido? Temos de tratar de si…»
Mas a aposta deles foi fazer render o sono. Eles sabiam que se chegava a um ponto em que a pessoa já não estava em si. Foram duas doses fortes com uma noite pelo meio para dormir. E com muita porrada. Apareciam de repente, muitos, com cacetetes a dar porrada. No meio daquilo o Inácio Afonso, que era um grande bandido, ameaçou com uma faca que me punha as tripas de fora, «como se fazia em Angola com os pretos», e apontou-me uma pistola à cabeça dizendo que me ia matar. Na altura fiz um relatório onde descrevo isso tudo.

Teve visões?
Sim, também relatei isso. Eu li, quando estava ainda cá fora, relatórios de presos sobre as torturas. Li um do Dias Lourenço, que era tão disparatado que se via que ele ainda não discernia a realidade da imaginação. Mas, de facto, aquilo tem um efeito terrível. E destruiu muita gente.
A dada altura pensava que estava numa casa no campo, com um gajo à espera, que era o Pide mas que eu já nem sabia que era Pide… Via muita poeira a sair do chão… Havia uma janela e eu por vezes caía para a frente e feria-me na cara. Quando isso acontecia reparava instantaneamente onde estava. Mas rapidamente caía ou perdia a noção…

Estava em pé?
Sim, sempre.

Mas «estátua»?
A andar. Acho que eles chegaram à conclusão que a pessoa parada durava menos tempo, por isso punham-na a andar. Quando já não se conseguia mesmo, quando já estávamos naquele ponto de cairmos redondos no chão, metiam dois Pides, um de cada lado, a segurar debaixo dos braços, e a arrastar-nos. Depois mandavam água para a cara, davam “caldos”, seja o que for para um gajo não dormir. Às vezes chamavam um médico, quando aquilo já ia muito avançado, para nos fazer um exame. Fazia-nos umas perguntas e depois ia-se embora. No meu caso, o médico só veio uma vez.

Tanto como sacar informações, a Pide queria destruir moralmente as pessoas…
Em absoluto. A certa altura vieram vários inspectores – era de manhã, se calhar foi para se divertirem – «ah, este é que é o gajo». Eu já estava a baralhar o sonho e a realidade, mas tenho quase a certeza que isto que vou contar aconteceu: o Inácio Afonso, que era quem mais ou menos «tratava» de mim, deu-me uma pistola para a mão, «eh pá, tu se calhar queres matar-te, guarda aí isso contigo».

E ficou com ela?
Depois levaram-na. Deve ter sido para ver a reacção da pessoa, o estado em que ela está. Acabei por fazer declarações, como é sabido. O gajo mostrou-me um papel que tinham apanhado e de que eu não me tinha conseguido desfazer. Ele perguntou o que era aquilo e eu respondi.

Nomes de pessoas?
Sim. Indiquei três ou quatro pessoas, acho eu. Eles fizeram uma coisa: depois daquilo acabar, o advogado foi-me lá visitar e trouxe uma cópia dos meus autos e estavam lá uma série de folhas que eu nunca tinha visto.

O que é que diziam essas folhas?
Eram uma espécie de relato pormenorizado da actuação da FAP. De pessoas que nunca tinham sido mencionadas, mas que eles foram compondo, com pedaços daqui e dali, tirados dos depoimentos de outros presos. Como eu era o responsável, convinha que lhes desse eu o conjunto.
Mas o essencial é que eles tinham conseguido sacar informações e reduzir um gajo àquilo que eles queriam: «a partir de agora este homem está arrumado».

Isso era uma questão central. O PCP também tinha essa postura…
Tinha. Eu conheci, não sei se centenas, mas muitas dezenas foram, de presos do partido que fizeram declarações, e o sentimento era comum: já não sou nada, já não sou comunista, estraguei a minha vida…. A pessoa ficava destruída. A verdade é que muitos deles foram posteriormente reintegrados no partido, sempre com aquele medo de não saber como se comportariam de novo diante da Pide.
O certo é que uma grande parte dos presos submetidos a tortura faziam declarações. Claro que o partido estava interessado em que os militantes não falassem, o Chico Miguel foi um grande adepto disso, e foi mesmo o recordista, esteve dias infindos no sono. Eu já tinha lido coisas sobre isso, falávamos em reuniões, mas fazer a experiência foi diferente.

Foi transferido de imediato para Caxias?
Não, continuei na António Maria Cardoso. Depois de acabar a tortura trouxeram uma cama e fiquei ainda uns dias por lá, enquanto me metiam uns cremes para disfarçar os maus-tratos. A seguir é que vou para Caxias. Fico lá alguns meses e depois vou para Peniche.

Quando lá chegam dá-se logo a divisão entre presos da extrema-esquerda e presos do PCP?
Nessa altura ainda estamos misturados. Mais tarde é que se dá um incidente, que já não sei dizer qual foi, e que vai levar à separação. No Pavilhão B estava malta da FAP, com quem não tínhamos contacto, e eles não estavam separados dos «revisas», como dizíamos. Foi no Pavilhão C, onde estávamos, que se deu uma bronca e que separaram a malta do PC da malta da FAP, coloniais e LUAR.
Na fase final o regime atenuou-se bastante. Lá dentro estava tudo à balda, podíamos andar pelos corredores e entrar nas celas uns dos outros. Não havia comparação nenhuma com o que eu tinha passado antes.

Como é que foi o vosso 25 de Abril?
Estávamos lá dentro e tivemos dificuldade em acreditar. Tinha dezanove anos para cumprir, oito estavam feitos, não estava à espera tão cedo de ir lá para fora. Nessa madrugada ficámos muito desconfiados e entrincheirámo-nos dentro do Pavilhão. Olhávamos lá para fora e víamos a GNR a passear. Um dos guardas, um provocador qualquer, viu a malta lá toda assarapantada e apontou a espingarda para as janelas. Até que um preso se reuniu com um familiar que lhe explicou que aquilo não era um golpe da extrema-direita. Reunimo-nos os presos m-l, da LUAR e os coloniais e tomámos a posição «ou saem todos, ou não sai ninguém».

Como é que foi essa assembleia?
Alguns dos presos que tinham menos pena estavam mais vacilantes, como é natural, com medo de se meterem numa grande alhada. O comandante Serra, enviado pelo MFA para Peniche, disse que quem tinha crimes de sangue iria para a Trafaria até a questão resolver-se, mas que era um assunto de simples resolução. O Pulido, como de costume, destacou-se e fez um discurso a defender a ideia de «ou saímos todos ou não sai ninguém». Tentávamos explorar ao máximo o ambiente de não cedência. E a malta alinhou nessa ideia.

Os presos do PC estiveram nessa assembleia?
Não, já tinham começado a sair. Nós a vê-los, com as trouxas… O primeiro a sair foi o Ângelo Veloso. Aliás, o Viegas Aleixo estava no piso deles e é deixado lá. Não pode sair pelas razões que não nos deixavam sair também a nós (crime de sangue). Deixaram-no lá e ele veio juntar-se a nós.

Parece-me que é possível apontar duas ondas do maoísmo: uma primeira, ligada ao conflito sino-soviético, e uma segunda, mais devedora do imaginário da revolução cultural, nomeadamente da sua recepção em alguns sectores do mundo Ocidental. Sendo uma pessoa que se aproximou do maoísmo logo no primeiro momento, como é que viu esta «segunda vaga», associada à revolução cultural, e toda a exaltação do activismo e da juvenilidade que a envolveram?
As ideias da revolução cultural causaram-me muita perplexidade. Enfim, aquilo que se sabia e que não era muito. Parecia-me pouco consistente ideologicamente. Havia também forças revolucionárias no meio daquilo tudo, mas foram também liquidadas. Aquilo que me sugestionou mais foi, de facto, a fase inicial, a ruptura com a União Soviética. Mesmo aí com muitas limitações, eles nunca se aventuraram muito pela questão do Estaline.

«70% certo, 30% errado»…
Disseram-me lá essa…(risos)

Que balanço é que faz desse período, do período que vai da ruptura com o PC até ao 25 de Abril?
A princípio tive a esperança de que alguns militantes do PC se aproximassem de nós. À medida que fui vendo que isso não acontecia, apercebi-me que estávamos metidos numa luta de longa duração. Da crítica a certos desvios fui passando à noção de que era necessário situar historicamente e de uma outra forma acontecimentos como a revolução soviética ou a revolução chinesa.

Como é que se define politicamente hoje?
Comunista. Não consigo melhor definição do que esta… (risos)