Continuação da entrevista a Francisco Martins Rodrigues (1927-2008), realizada em Janeiro de 2008. A primeira parte pode ser lida aqui.

Em que contexto se dá a sua entrada para o Comité Central do PCP?
No final de 1960 há uma grande onda de prisões que atinge o Comité Central. E o Dias Lourenço, que estava no estrangeiro, vem cá dentro para segurar as pontas. É nessa altura que me decidem cooptar para o Comité Central, primeiro como membro suplente. Pouco tempo depois passo a efectivo e vou para a Comissão Executiva, que era composta por mim, pelo Blanqui Teixeira e pelo Alexandre Castanheira.

Que funções tinha essa Comissão Executiva?
Era o órgão que reunia com os responsáveis pelas troikas – grupos de funcionários – para se inteirar da situação do partido. E transmitia, a cada região do país, as orientações políticas. É aqui que eu começo a manifestar as minhas divergências, que já vinham da cadeia. Escrevo cartas para o Comité Central e o Cunhal, em 1963, manda-me ir lá fora para discutir as minhas divergências. Havia a necessidade de ir a Moscovo dar conta da situação do partido e, apesar do responsável ser o Blanqui Teixeira, sou eu designado para lá ir, pois podia fazer o relatório da actividade e, ao mesmo tempo, discutir as tais divergências.

Mas essas divergências já vinham da cadeia?
Sim. Com todas as limitações, discutíamos lá política, nomeadamente a linha que o partido estava a tomar sob a direcção do Fogaça. Foi aí que eu conheci o Cunhal e o Chico Miguel, que teve grande influência em mim.

Como é que era nessa altura o quotidiano em Peniche?
Aquilo tinha secções diferentes e separadas umas das outras, nem nos víamos nem nada. Nós fomos inaugurar uma ala nova, que foi de onde se deu a fuga. Éramos doze ou treze, cada um numa cela, com contactos restritos. Havia apenas um jornal para cada piso, que era lido e entregue ao guarda, que depois o deveria entregar ao preso seguinte. O último já lia o jornal de noite… Tínhamos uma hora de recreio, guardados por dois guardas a quererem ouvir as conversas. A refeição era em silêncio absoluto. Era servir a sopa, comer e andar. Aquilo que havia de mais interessante era descascar batatas para a comida dos presos comuns. Com eles não tínhamos qualquer tipo de contacto, era absolutamente proibido. Mas enquanto descascávamos batatas e carregávamos lenha era possível trocarmos umas palavras.

Era o único momento em que falavam uns com os outros?
No recreio era uma coisa insuportável, os guardas sempre atrás de nós, a dizerem para falarmos mais alto, a tentarem ouvir as conversas. Ali sempre trocávamos umas palavras de roda do balde das batatas, enquanto os guardas estavam distraídos. Também tínhamos de varrer o piso. Era dois-a-dois e às vezes fazíamos render o peixe. Enquanto varríamos, íamos conversando.
As visitas também eram muito controladas. Tinham inaugurado um sistema onde se falava por umas frestas e não se ouvia nada, tinha de ser quase aos gritos. Os guardas não só ouviam como às vezes se metiam nas conversas.

Há pouco dizia que o Francisco Miguel lhe impressionou positivamente. Porquê?
Porque era o esquerdalho da companhia. O homem até nem tinha uma grande estrutura, mas tinha estado no Tarrafal, era um histórico e eu tinha uma grande admiração por ele. Naquelas hipóteses de conversa, enquanto varríamos e assim, ele punha mesmo muitas dúvidas sobre a linha do partido. Estava-se em plena «linha pacífica» do Fogaça e lá dentro tinha-se notícias disso, nomeadamente através do Jaime Serra e do Joaquim Gomes, que tinham sido presos e que nos informaram das novas orientações. O tipo espumava e dizia que o que era preciso era «encostar esses gajos todos à parede»! Não se conformava com a nova linha que era, em regra, aceite pelos funcionários. Dos antigos, era o único que se manifestava nesse sentido.

O Cunhal não se manifestava lá dentro contra a linha do Fogaça?
Não… dizia que não tinha nada que discutir e que os camaradas lá fora é que sabiam. O Chico Miguel é que se dava à liberdade de mandar umas bojardas. Eu tinha uma simpatia por ele precisamente por me parecer de um género diferente.

O golpe de Beja foi importante para perceber que poderia haver uma estratégia de derrube do regime diferente da que o PCP estava então a propor?
Não direi que foi importante, mas veio juntar-se a uma série de coisas. Eu discuti com camaradas do partido que sabiam que havia gente do partido que ia entrar nisso. Nós tínhamos uma demarcação nítida em relação às «golpadas», como chamávamos. Mas estava tudo a mexer… Aquilo foi um fiasco, mas foi mais uma coisa a mostrar que nem todos estavam de acordo com a linha, e que nem todos os que estavam a favor de uma linha armada eram militares anticomunistas. Agora já havia um outro ambiente. Tinha havido Cuba…

O imaginário da revolução cubana foi importante?
Sim, sentiu-se muito. Mesmo na base do partido. Era uma transformação revolucionária, a favor dos trabalhadores, e que optava pela via armada. Até aí isso não existia. Éramos educados numa grande desconfiança das coisas militares.

Como é que lhe foram chegando as notícias do conflito sino-soviético?
Depois da fuga de Peniche, estava na clandestinidade e já com um segundo filho. Estávamos a morar ao pé de Loures e ouvia na Rádio Pequim aqueles relatórios intermináveis. Eram horas a falar… e depois «continua na outra noite» (risos). Era a crítica ao Togliatti, ao Thorez… Aquilo caiu-me que nem ginjas. Estava entusiasmadíssimo. Isto terá sido em 1963, antes de ir lá fora.
Quando cheguei a Moscovo estava lá a haver uma reunião, julgo que a última, entre chineses e russos, sobre as divergências. O Cunhal colocou-se logo do lado dos soviéticos e, quando chegámos lá, deu-nos logo os papéis dos chineses, para mostrar que não se estava a fazer «caixinha». De facto, aquilo ia na linha do que eu tinha ouvido e eu disse ao Cunhal que aquilo estava tudo certo, mas ele continuou de pedra e cal. Ainda antes de eu lá chegar já o Cunhal tinha escrito, em nome do partido, um papel contra aqueles que querem lançar o mundo na guerra atómica, tudo assim em meias-palavras, mas a procurar atingir os chineses.
Fizemos a reunião do Comité Central (CC) numa datcha, cheia de guardas e criados. Nos intervalos o Chico Miguel desafiou-me para passear nos jardins e para mim foi uma decepção: eu ia na ideia que o Chico Miguel não tremia mas ele já dizia que os tempos eram outros e que eu estava enganado no apoio aos chineses.
Na reunião do CC disse aquilo que tinha a dizer, que o Cunhal era um oportunista, mas ficou tudo em águas de bacalhau. Fizeram-me baixar de escalão: retiraram-me da Comissão Executiva e colocaram-me novamente como membro suplente do CC. Ainda chegaram a ponderar a ideia de eu ficar em Moscovo. Aí é que me caiu a alma aos pés… A ideia era eu ser assistente do Cunhal, que teria muita coisa que fazer, muito que escrever, era apresentado aqui e ali pelos soviéticos. Felizmente, não aceitou.
Enquanto fazíamos uma volta com um intérprete soviético, deitei o olho à Embaixada chinesa em Moscovo, que ainda lá estava na altura. Vi em que saída do metro era e, pelo sim pelo não, fiquei com essa informação. Se aquilo corresse mal…
Acabaram por decidir que eu vinha para Paris e que mandariam para lá a minha mulher e o miúdo mais velho. Ainda me disseram que eu podia ir para Praga e que se eu não quisesse fazer política que me arranjavam para lá um emprego. Chego a Paris e estava lá a Georgete e o «Amílcar». Pouco depois há uma reunião com malta do partido, gente legal, gente que tinha desertado, e começam a haver críticas ao partido. Eu deitei a mão a um, que eu já conhecia de cá, um oficial miliciano [Humberto Belo], pus-me a escrever o papel [Luta Pacífica e Luta Armada no nosso movimento] e aí decidi dar o pinote. Eles tinham-me posto a morar em casa de uns funcionários franceses do PCF e pirei-me lá de casa deles, com a célebre máquina de escrever (risos). Mais grave do que isso é que tinha à minha guarda, numa outra casa de militantes, o arquivo do partido. E então fui lá e trouxe uma série de documentos. Eram muitos, não podia trazer todos, mas ainda trouxe alguns. E fui morar para um quarto. Foi aí que conheci o Manuel Claro, que comunicou com Argel, onde estava o João Pulido Valente e o Rui d’Espiney. É assim que eu faço a ligação com eles.
Nesse momento de dar o salto, sou agarrado pelo «Amílcar» e pela Georgete que têm comigo uma longuíssima discussão numa casa do partido, em Paris, no intuito de eu não romper: que era uma tristeza, uma tragédia, que eu era um funcionário e que não podia fazer aquilo… a Georgete chorava, mas já não havia nada a fazer. A Fernanda e o miúdo acabaram por não ir para Paris e ela abandonou o partido.

Do conjunto de críticas que fazia ao partido, qual era aquela que lhe parecia ter mais importância, o elemento na política do PCP da época que achava mais insustentável?
Eu acho que era a relação do partido com as forças democráticas. A base sentia muito isso. Em vez de o partido procurar mobilizar os trabalhadores para preparar a insurreição armada, estava a fazer acordos com esses tipos e a negociar com militares.
Quando surge a explicação chinesa e o movimento aparece dividido em dois, isso também deu um impulso bestial. Quando irrompe a guerra colonial, essa questão agudiza-se: o partido não estava a corresponder às suas obrigações no caso de um levantamento dos povos coloniais. Estava num posição mole, expectante, a tentar arranjar aliados nas forças democráticas.

No Revolução Popular, órgão do CMLP, advoga-se um posicionamento mais activo relativamente à guerra colonial. Ao mesmo tempo, coloca-se à discussão um outro tema, que não era abordado pelo PCP e que também não foi muito explorado pela extrema-esquerda sucessiva. Refiro-me à questão do chauvinismo. Quer comentar?
Isso era uma ideia que era falada. Quando rebenta a guerra, reparo que tudo aquilo faz ainda mais sentido. Essa foi uma fase de grande entusiasmo e de perceber que o que me andavam a vender era uma coisa desenxabida.
Na questão colonial, o facto de o partido andar de braço dado com os democratas também me causava impressão. O pensamento deles sobre as colónias era uma coisa tenebrosa. Ao fim e ao cabo, o partido estava a ter a posição do Pide bom: não se deve matar os tipos, vamos conversar, etc.