A PIDE começou a chamar a atenção da Central Intelligence Agency (CIA), em1949, quando Portugal ingressou na Aliança Atlântica (NATO). Analistas dessa agência de Intelligence norte-americana consideraram que aquela polícia política tinha adquirido, em Portugal, um extraordinário poder, efectuava prisões arbitrárias, utilizava a brutalidade física e detinha presos na cadeia por prazo indefinido [1]. Depois, nos anos cinquenta, em plena Guerra-Fria, a CIA instalou um retransmissor da Radio Free Europe (Rádio Europa Livre, criada em 1947), em Glória do Ribatejo, criando, para o gerir, em Portugal, a Sociedade Anónima de Rádio-retransmissão (RARET). No entanto, a ligação “oficial” entre a PIDE e a CIA só foi formalizada em 1956, quando o coronel Benjamin H. Vandervoort [2], adido da embaixada dos EUA em Lisboa, convidou o director da polícia política portuguesa, capitão Agostinho Lourenço, comunicando-lhe para uma deslocação aos EUA, com o objectivo de «discutir matérias de mútua preocupação».
Como Agostinho Lourenço se desligou da direcção da PIDE, por limite de idade, em 5 de Setembro de 1956, o convite foi transmitido ao capitão António Neves Graça, chefe interino da polícia política portuguesa, que o aceitou, com «muito agrado». A CIA propôs-se então prestar auxílio à PIDE na organização de um sistema mecanizado de ficheiros e arquivos e, na sequência de impressões trocadas entre os dois respectivos directores, em Washington, por seu lado, Neves Graça elaborou uma proposta de colaboração entre os dois serviços. Segundo este, as duas polícias propunham-se trocar informações sobre a organização comunista e efectuar diligências e operações conjuntas, entre as quais se contavam a infiltração no seio dos Partidos Comunistas [3].
Os «homens das Américas»
Em 1957, uma delegação de elementos da PIDE frequentou um curso, ministrado pela agência americana, nos EUA [4] onde, entre outras matérias, se contavam técnicas de vigilância, aprendizagem de rádio, de filmagens e fotografia, escuta telefónica, intercepção postal, elaboração de relatórios, métodos informativos e de interrogatório processual, conhecimento de tintas simpáticas, criptografia, microfilmes, utilização de tele-impressores, bem como técnicas de informação e contra-informação [5]. Fizeram parte da delegação portuguesa o sub-inspector Jaime Gomes da Silva, o chefe de brigada Manuel Vilão de Figueiredo, os agentes Sílvio Mortágua, Amândio Gomes Naia, Álvaro dos Santos Dias Melo, Abílio Augusto Pires, Felisbino Marques Gomes, Ernesto Lopes (Ramos), José Mesquita Portugal e João Nobre e ainda os escriturários, Alfredo Fernando Robalo e Eduardo de Sousa Miguel da Silva [6].
Alguns dos quadros da PIDE que estagiaram na América – Abílio Pires, Ernesto Lopes Ramos e Miguel da Silva – terão sido contratados pela CIA como agentes de ligação em Portugal. Este último chegou a ser considerado, em 1969, pelos próprios dirigentes dessa polícia, de ser um «homem das Américas», razão pela qual ficou limitado a assuntos respeitantes à autoridade nacional de segurança [7]. Quanto a Abílio Pires, negaria ter trabalhado para a CIA, embora afirmando que esta agência o tinha de facto tentado subornar, através de Walter Andrade, elemento da estação americana em Lisboa [8].
Numa entrevista dada em 1974, em Londres, Philip Agee, oficial de operações secretas da CIA, afirmou, por seu turno, que Rudolfo (sic) Gómez, organizador da rede dessa agência em Portugal, em 1968 e 1969, tentara aliciar o inspector Rosa Casaco, com o qual terá reunido periodicamente no Porto e em La Toga (Galiza) [9]. António Rosa Casaco negou, porém, ter trabalhado para a CIA, esclarecendo que apenas teve uma «amizade desinteressada com Edward Gómez, chefe da base» dessa agência norte-americana, em Portugal na década de 60 [10].
Operações conjuntas entre a PIDE e a CIA: o caso «expectator»
Ao que parece, no continente português, a maior operação conjunta das duas polícias secretas, portuguesa e americana, foi o caso «expectator» [11] abordado, pela primeira vez, por escrito, pela CIA, em Julho 1957. O caso, considerado «top secret» – de «cross contamination between the expectator and or other Russian intelligencia service aparati in Portugal and PCP» – envolvia estrangeiros que se tinham refugiado em Portugal, durante a II guerra mundial, acusados de fazerem parte de uma rede soviética. Diga-se que a CIA sabia dessa rede, através de um relatório de 1943 dos serviços secretos da Alemanha nazi e que essa operação foi dirigida pelo então homem da CIA em Lisboa, coronel Vandervort [12].
Mais tarde, a PIDE realizou, pelo menos, duas viagens marítimas a portos soviéticos, com elementos seus, a bordo de navios mercantes portugueses, sobre as quais relatou à CIA. A primeira viagem realizou-se, ao porto de Riga, em 1959, com a presença de dois agentes da PIDE, Santos e Lopes (provavelmente Ernesto Lopes Ramos) e a segunda, ao porto soviético de Tuapse, no Mar Negro, em 1960, novamente com Ernesto Lopes Ramos. A agência norte-americana agradeceu, em 29 de Novembro de 1960, a colaboração dos portugueses, dizendo que essas fotografias haviam sido as primeiras a penetrar além da linha da água, de um porto soviético e afirmando que os resultados dessa operação representavam um dos melhores exemplos de ligação entre serviços para participar directamente na análise de dados marítimos [13].
Alguns autores datam no início dos anos sessenta o incremento de relações entre a PIDE e a CIA, embora um ex-elemento da polícia portuguesa, Óscar Cardoso, o tenha negado, ao afirmar que acontecera precisamente o contrário, devido ao apoio que os americanos deram, em 1961, à UPA e, três anos depois, a Mondlane, em Moçambique [14]. Houve efectivamente, nesse período, um esfriamento da cooperação entre a CIA e a PIDE, pois, além do alegado apoio à UPA, o governo português «não perdoou o suposto envolvimento norte-americano no golpe de Botelho Moniz e a atitude relativamente ao assalto ao paquete «Santa Maria» da parte da administração Kennedy, que aproveitou esse episódio para empolar a existência de uma oposição democrática em Portugal [15].
A questão da Índia, em Dezembro de 1961, tornou ainda mais difícil, quase à beira da ruptura, o relacionamento luso-americano, considerando então Salazar que os EUA pecaram por omissão, ao recusarem-se a fazer uma declaração pública sobre o assunto. No entanto, embaixador norte-americano em Lisboa, Charles Burke Elbrick, manifestou-se contrário a que a administração norte-americana apoiasse a condenação de Portugal, pelas Nações Unidas, argumentando que isso representaria um ataque a um aliado da NATO, que assim ficaria enfraquecida [16].
Durante o ano de 1962, o ministro dos negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, manifestou, junto do Secretário de Estado norte-americano, Dean Rusk, preocupação com o apoio dos EUA à UPA e a Theodore Xanthaky, conselheiro da Embaixada dos EUA em Lisboa e elemento da CIA, afirmou que se tornava difícil manter um diálogo com o governo americano [17]. Em 1 de Janeiro de Janeiro de 1964, a PIDE passou a vigiar o já referido Theodore Anthony Xanthaky.
No entanto, a partir de 1963, já se fazia sentir uma moderação no discurso anti-colonialista dos EUA e uma tentativa de conciliação, num momento de negociações para a renovação do acordo de utilização da base das Lajes, nos Açores [18]. Após o fim da administração Kennedy, a PIDE voltou a ter, como antes de 1961, uma relação «leal» com a CIA, embora, como era «óbvio», houvesse sempre informações que uma polícia omitia à outra, e vice-versa, segundo afirmou Álvaro Pereira de Carvalho [19].
No período «marcelista», a colaboração entre a PIDE/DGS e os serviços secretos norte-americanos era das melhores embora a polícia portuguesa não deixasse de preocupar-se com a actividade da Embaixada e dos serviços secretos americanos. Refira-se, por exemplo, que, em 20 de Novembro de 1969, o director da DGS, Fernando da Silva Pais, soube, de fonte «absolutamente segura», da ocorrência, dois dias antes, de um jantar em casa de Diego Cortes Asencio, conselheiro da embaixada dos EUA (entre 1967 e 1972) e elemento da antena da CIA, com Robert Zimmerman, no qual tinham estado presentes Mário Soares [20], Francisco Salgado Zenha e Francisco Sousa Tavares [22].
Em 1973, William Colby, o novo director da CIA, considerou Portugal um país tão estagnado que chegou a sugerir o encerramento do posto da agência no país. Lembre-se que a principal preocupação da CIA continuava a ser então a América Latina, onde, como se sabe, através da «operação Condor», foram instaladas, com o apoio norte-americano, diversas ditaduras. Pouco tempo antes de 25 de Abril de 1974, o posto da CIA então era composto apenas por três elementos: John Stinard Morgan, acabado de chegar a Lisboa, Frank W. Lowell e Leslie F. Hughes, ambos incorporados na Embaixada como oficiais de telecomunicações.
Nó próprio dia 25, o responsável pela Embaixada dos Estados Unidos à época, Post, relatou a surpresa com que soube do golpe de Estado, reveladora da ignorância do representante norte-americano:
«o telefone tocou no meu quarto. O guarda da nossa casa no Restelo, um ex-quadro da DGS, atendera o telefone central na garagem, e disse-me: “Perigo, perigo”. Não percebi. A minha mulher, ensonada, comentou: “Oh, isso é o nome do guarda!” Desliguei e voltámos a dormir. Seriam aí umas seis da manhã quando um dos adidos militares me telefonou, dizendo que havia tanques na rua e música militar na rádio» [22].
[1] José Freire Antunes, Kennedy e Salazar, O Leão e a Raposa, Lisboa, Difusão Cultural, 1991, nota 3, p. 105-106, Central Intelligence Agency SR-31.
[2] Idem, ibidem, p.106.
[3] Arquivo PIDE/DGS no ANTT, pr. 6. 341 CI (2), pasta 2, fls. 2-7, 31, 36, 39, 40 e 45.
[4] Idem, pr. 2 CI (2) SC DSI, pasta 4, fls. 93, anexo b 3, 9, 10, 17, 24, 100.
[5] Idem, ibidem, pasta 3, fl. 4, pasta 4, fls. 1, 21, 91, 93, anexo 5, 9, 10, 17, 100, 117, 118, 119, 122 e 123.
[6] Idem, pasta 5, fls. 18, 19, 36, 40, 50, 54-55, 59, 64, 68-69 e 100.
[7] «A PIDE colaborou com a CIA», in Diário Popular, 7/2/1975.
[8] Bruno de Oliveira Santos, op. cit., p. 42.
[9] A Capital, 9/12/74 «Investigação sobre Rosa Casaco leva a rede da CIA».
[10] António Rosa Casaco, Servi a Pátria e Acreditei no Regime, Lisboa, ed. do autor, 2003, p.93.
[11] Nuno Vasco, A Bem da Nação, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1998, p. 195.
[12] «A PIDE colaborou com a CIA», Diário Popular, 7/2/75.
[13] Arquivo PIDE/DGS no ANTT, pr. 2 CI (2) SC DSI, pasta 6, fls. 134, 136, 137, 144, 168, 260, 281 e 282.
[14] Nuno Vasco, Óscar Cardoso, A Bem da Nação, p. 94.
[15] Luís Nuno Rodrigues, Salazar-Kennedy: a Crise de uma Aliança, Lisboa, Editorial Notícias, 2002, p. 317
[16] José Freire Antunes, Kennedy e Salazar, p. 95.
[17] Idem, ibidem, pp. 71 e 147.
[18] Idem, ibidem, p. 322.
[19] José Freire Antunes, Nixon e Caetano, pp. 56 e 57.
[20] José Freire Antunes, Kennedy e Salazar, p. 93-95.
[21] Arquivo da PIDE/DGS no ANTT, pr. 121 CI (1) Francisco Sousa Tavares, fl. 16.
[22] Idem, ibidem, p. 311 e 349.
(Publicado no nº 14 da colecção Os anos de Salazar/ O que se contava e o que se ocultava durante o Estado Novo , coordenada por António Simões do Paço.)
Terça-feira, 31.Mar.2009 at 05:03:26
Por volta dos anos 83/84 os emissores de onda curta da RARET, em Glória do Ribatejo, que a autora refere, encontravam-se ainda em actividade. Nessa altura, em data que não posso precisar, quando era funcionário dos CTT (DSR-Direcção dos Serviços Radioeléctricos) tive oportunidade de integrar uma missão de vistoria às referidas instalações, que tinham acabado de sofrer modificações para operarem com potências mais elevadas.
Na altura fomos informados, se bem me recordo, que a estação difundia para a então Alemanha Democrática e estados da ainda União Soviética, programação recebida dos Estados Unidos.
Desconheço o actual estado das coisas. O ICP-ANACOM poderá informar.
nelson anjos
Terça-feira, 31.Mar.2009 at 06:03:18
É do maior interesse este desvendar das “relações internacionais” da PIDE (aliás, abordadas no livro da Irene Pimentel). Esta colaboração PIDE/CIA é significante quanto às viragens verificadas com a “guerra fria”, tanto mais que se tratou da intimidade da secreta americana com uma polícia criada à imagem da Gestapo e treinada por esta. Igualmente fortes foram as ligações e partilhas com as secretas espanhola, sul-africana, francesa e alemã federal (provavelmente, também com a Mossad e outras), cujos traços mais marcantes tinham em vista a vigilância sobre exilados políticos portugueses e sobretudo (incluindo operações conjuntas) os movimentos de libertação africanos. Aliás, cabia à PIDE a representação portuguesa na Interpol. Neste conjunto, julgo até que a colaboração com a CIA não foi a que teve mais relevo (exceptuando quanto a meios técnicos fornecidos e formação em métodos de tortura) comparativamente com as secretas francesa e alemã federal, em termos de fluxos de informações e co-participação em operações em África, tese relativamente à qual gostaria de ter a opinião de Irene Pimentel.
Sexta-feira, 10.Abr.2009 at 02:04:36
Acabada de chegar de Paris, só agora posso responder ao João Tunes, ao qual peço desculpa pelo atraso.
Está para fazer a investigação sobre o relacionamento entre a PIDE/DGS e as agências de Intelligence e/ou polícias secretas, nomeadamente de países democráticos, no período da guerra-fria. Uma das dificuldades é o facto de as fontes (há apenas poucas) não se encontrarem no Arquivo da PIDE/DGS na Torre do Tombo. Foi relativamente a esse relacionamento que mais se terá feito sentir o esbulho do período 1974/75 nesses arquivos. Seria muito interessante saber ao certo – é o que se fala – se tais arquivos foram ou não enviados para a ex-URSS. Mas isso é outro assunto.
Por isso, João Tunes, apenas sou capaz de lançar hipóteses e fazer conjecturas. De qualquer forma, tendo a estar de acordo consigo. O relacionamento da PIDE/DGS com a CIA atravessou altos e baixos, acompanhando os altos e baixos da diplomacia portuguesa no seu relacionamento com os EUA, em particular durante a administração Kennedy. O nacionalismo salazarista, e por conseguinte a polícia política de Salazar, sempre manteve desconfianças relativamente aos EUA e o certo é que na PIDE era um insulto ser considerado, como foi por exemplo o caso de Álvaro Pereira de CArvalho, um «homem dos americanos». Também acho que o relacionamento foi muito mais próximo, por razões evidentes, com os serviços secretos espanhóis – e com estes não deixou de haver dissonâncias, devido ao caso DElgado – alemães e sobretudo franceses. Com estes últimos, a PIDE – mas também o ministério da Defesa Nacional – teve um relacionamento muito próximo durante a guerra da Argélia, a guerra colonial e, a nível metropolitano, a partir dos anos 60,com o desenvolvimento da emigração e do exílio para França. Há assim muita investigação a realizar e, para aguçar a curiosidade, posso dar só alguns exemplos de temas que seria interessante investigar no caso do período da guerra da Argélia: por exemplo, o relacionamento entre a PIDE e a OAS, e a coincidência (ou não) de as sedes da tortura em Argel e no actual Maputo terem sido duas «villas»: Villa Susini e Vila Algarve. Estes exemplos proliferaram depois nas ditaduras latino-americanas, em particular na Argentina.
Quarta-feira, 15.Abr.2009 at 12:04:30
Obrigado, Irene Pimentel.