Naquela madrugada de 21 de Janeiro de 1965, não sei exactamente que horas eram, talvez umas 7 da manhã, bateram à porta de casa. Era a casa de meus pais.
Tinha-me deitado tarde, depois de uma reunião da minha célula para, entre outrtas coisas, fazer um ponto de situação depois das prisões, em Dezembro, do funcionário do partido (PCP) que controlava o sector universitário e do seu contacto. O funcionário dava pelo nome de Nuno Álvares Pereira. Exactamente, é isso mesmo, o nome do Condestável. Funcionário que eu conhecia perfeitamente pois estivera escondido em minha casa, ainda a dos meus pais, apesar de eu dever ignorar a sua identidade e função pois estava uns furos abaixo dele na organização. Nessa reunião recebera a última edição de O Militante. Chegado a casa, coloquei-o na gaveta da mesa de cabeceira, por baixo dos lenços e das meias.
Naquela madrugada, bateram à porta uma primeira vez. Não para minha casa, mas para o rés-do-chão, one habitava a senhoria, uma senhora de ar severo e de poucos amigos. A senhora sabia perfeitamente quem morava no primeiro andar, isto é, sabia que eram pessoas que não eram afectas ao regime. Foi à janela e quando lhe disseram que era para o primeiro andar, apercebeu-se de quem era, recusou-se a abrir a porta e disse para tocarem para cima. A porta da rua destrancava-se à noite e só se abria por dentro ou com chave, por fora. Algum alvoroço na escada do prédio, a senhora avisa a minha mãe, que entretanto fora à janela saber quem batera. Vem para dentro, vai ao meu quarto e avisa-me. Levanto-me e enquanto a minha mãe desce as escadas, vou ao escritório do meu Pai e retiro alguns livros incrimanatórios que meto dentro da cama. Volto-me a deitar e, logo a seguir, entra a PIDE pela porta dentro. Identificam-me e dizem para me levantar porque tinha de os acompanhar. Um passa revista à casa nos locais do costume, autoclismo, cimo dos móveis, debaixo das camas, escritório, etc. Sinto-me feliz e seguro por os livros estarem a recato. Enganei-os, penso. Levanto-me afastando a roupa da cama com o à-vontade suficiente para não provocar desconfiança, mas com o cuidado necessário para não desvendar o esconderijo. A felicidade durou muito pouco tempo, pois o outro PIDE que ficara no quarto fora direito à mesa de cabeceira. Só quando ele diz qualquer coisa como “Pois é, pois é, isto é uma chatice” é que caí em mim e vi que me tinha esquecido da peça mais incriminatória que se podia ter. É que com o Avante, podia-se ser só simpatizante e até dar a “explicação” que tinha sido posto na caixa do correio. Mas com O Militante não havia volta a dar, pois só era distribuido a quem pertencia ao Partido. E lá fui, de táxi, para a António Maria Cardoso, na altura já “condomínio privado”. Da PIDE. Formalidades da identificação, barulho constante de abrir e fechar de portas, movimento pelos corredores. Terão prendido mais alguém, interrogo-me. Julgo que ao fim da manhã, sou levado por uma porta das traseiras, em frente à entrada do Hospital da Ordem Terceira, para uma das tristemente famosas carrinhas Mercedes azul escuro que me levaria ao Aljube. Despojam-me de tudo, relógio, cinto, atacadores, óculos, etc. e depositam-me num “curro”. Onde permaneci por mais 44 dias, em total isolamento.
Naquela madrugada, bateram à porta de mais 30 estudantes, rapazes e raparigas, praticamente todos universitários. Havia uma meia dúzia que era dos liceus. Com estas prisões a PIDE dava uma machadada profunda na organização estudantil, uma vez que uma boa parte dos estudantes presos eram também dirigentes de associações académicas. Ou seja, de uma cajadada matou dois coelhos: membros do partido e dirigentes estudantis.
Não sabíamos, só no decorrer dos interrogatórios o viemos a saber, que o funcionário do PCP se tinha passado para a PIDE e denunciara toda a organização partidária do sector estudantil de Lisboa. A minha reunião da véspera tinha sido perfeitamente inútil. Assim como ter ou não O Militante era perfeitamente indiferente. Este funcionário denunciou até ao mas ínfimo pormenor não só os nomes e pseudónimos de toda a estrutura, como muitos aspectos que a ela e aos seus membros se referiam. A PIDE ficou a saber tudo a nosso respeito. E tão grata lhe ficou que o colocou a bom recato no Brasil, onde acabou o curso de Direito, regressando depois a Angola, donde era natural, vindo a exercer as funções de Delegado do Ministério Público.
Destes 31 presos só 21 permaneceram detidos e foram a julgamento que durou um mês, de Julho a Agosto desse ano. Não houve penas muito graves, a maior parte saiu absolvida, outros, como eu, foram condenados com pena suspensa, e alguns foram condenados a penas efectivas. Este grupo, que ficou sempre unido pela amizade, reúne -se anualmente para conviver e para provar que não perdeu a memória do fascismo. Este ano comemoraremos 45 anos com a presença dos nossos filhos.
Quinta-feira, 21.Jan.2010 at 12:01:03
Não fui presa nesse 21 de Janeiro de 1965 – tinha chegado à Universidade poucos meses antes, não tinha actividade política – mas também não esqueço esse dia. As notícias sobre as vossas prisões a chegarem aos poucos, frases susurradas sobre alguns que tinham logrado escapar, pessoas que, sem que ao princípio soubesse porquê, desapareceram da Faculdade e de quem só voltei a saber muito tempo depois, quando já estavam seguras no exílio, a informação segredada de que havia um dirigente escondido no próprio Hospital de Santa Maria… Foi a minha primeira actividade clandestina: ir a casa dele e, com uma qualquer desculpa, conseguir que a senhoria me deixasse entrar e retirar de lá papéis e dinheiro que deixara escondido. Seria melhor não ir sózinha, sermos duas estudantes muito jovens a ir buscar um livro que o colega mais velho generosamente nos emprestava. Se bem recordo, foi a Zé Cabeçadas quem me acompanhou, cada uma emprestando à outra um pouco do sangue-frio que não tinha, distraindo a senhoria para a outra poder pesquisar, entre os livros, qual escondia o que procurávamos. Missão cumprida, voltámos a pé para o Hospital, esperando a cada momento ouvir uma ordem de prisão. Tinha 17 anos. Acho que nesse dia a minha vida começou a mudar.
Sábado, 23.Jan.2010 at 12:01:34
Aquele 21 de Janeiro, só acelerou a tua mudança. Porque, conhecendo-te depois, acho que ela mudaria sempre, mais tarde ou mais cedo. Quanto ao dirigente escondido no hospital ou é um que já morreu ou o gémeo que foi para a Suiça.
Quinta-feira, 21.Jan.2010 at 11:01:28
Caro Artur Pinto
Inspirando-me em ti, descrevi no meu blog: http://trix-nitrix.blogspot.com/2010/01/naquela-noite-no-cineclube.html,o assalto da PIDE ao CCUL, quando prendeu o Mário Neto e mais outros dois membros da direcção. Foi um pouco antes de tu seres preso.
Um abraço
Sábado, 23.Jan.2010 at 12:01:34
Estou-te grato por te servir de inspiração! Não contava com tanto. Tentei ir ao teu endereço de blog mas diz-me que não existe?!?
Abraço
Atrur
Sábado, 23.Jan.2010 at 12:01:16
Vamos ver se te dou uma ajuda, Artur: o texto a que o Jorge se refere está aqui:
http://trix-nitrix.blogspot.com/2010/01/naquela-noite-no-cineclube.html
Sexta-feira, 22.Jan.2010 at 09:01:13
há quem tente apagar a memória, mas não consegue, diga-se e faça-se o que se quiser, a verdade virá sempre ao cimo!
Sábado, 23.Jan.2010 at 12:01:53
Não estou tão certo disso, infelizmente. A avaliar pelo que se passou neste país desde o 25 de Abril: os pides ficaram à solta e a gosar da sua reforma, paga por nós, como vulgares cidadãos (o exército até agraciou um ou dois,e continuam a viver tranquilamente. E a memória da resistência não só não tem sido celebrada, como tem sido muito pouco ou nada honrada quer pelops partidos de esquerda, quer pelos successivos governos e demais autoridades públicas: vaja-se o que sucedeu ao edifício sede da PIDE, ao desprezo a que foi votado o museu no Forte de Peniche, local que em breve virá a ser hotel de charme e à muito pouca atenção que tem sido dada à restauração do campo de concentração do Tarrafal.
Domingo, 24.Jan.2010 at 10:01:58
Olá Artur, há mais de quarenta anos que não te vejo. Eu era amigo e colega da Marília na Caixa de Previdência e devo ter-te conhecido no café Império, anos antes de 65.
Sobre reformas e pides agraciados pelo Exército, etc relembro um acto algo insólito do então PM Cavaco Silva relativo ao inspector Óscar Cardoso. O PM desculpar-se-ia alegando o indesculpável desconhecimento. Para detalhes consulte-se a imprensa de fins de 80, primeira metade dos anos 90… O. Cardoso foi um dos piores e mais qualificados torcionários da Pide. Branqueado por um coronel do Exército após 25 de Novembro de 1975, em plena audiência a que assisti como queixoso, suposta julgar o Sr Cardoso, então cooperante das forças armadas da República da África do Sul nos tempos dos apartheid.
Um abraço solidário do
Armando Cerqueira
Segunda-feira, 25.Jan.2010 at 12:01:18
Se és o mesmo Armando que eu penso conhecemo-nos no Café Império, nos inícios dos anos 60. Se bem me lembro eras alto e um pouco calado. Escreve para o meu e-mail, para trocarmos dados.
Abraço
amigo
Artur
Sábado, 23.Jan.2010 at 01:01:07
Obrigado Joana por ter indicado correctamente o endereço do meu blog . Tinha um o a mais no final.
Tal como já disse no meu blog, o António Melo a que me refiro não é um dos fundadores do Não Apaguem a Memória, que eu conheço desde os tempos da Faculdade de Ciências, onde ele andou. Era outro, cuja última actividade que eu lhe conheci era de editor.
Sábado, 23.Jan.2010 at 09:01:02
Julio, como descobriste o percurso do traidor Nuno Alvares Pereira? eu estava convencida que teria ido directamente para Angola.
Era primo do Raul, membro do Duo Ouro Negro, que o foi visitar e por ele intercedeu junto das autoridades do regime.
Sábado, 23.Jan.2010 at 09:01:46
Artur, desculpa, troquei-te o nome…
Segunda-feira, 25.Jan.2010 at 12:01:07
Descobri! Mas, penso que não é assim tão novidade.
Terça-feira, 26.Jan.2010 at 01:01:04
Eu nunca fui preso pela P.I.D.E. Mas se o tivesse sido e me tivessem apertado os calos, creio que não resistiria em organizar uma “lista telefónica” onde constassem os nomes, direcções e telefones dos agentes e informadores. (Não podia ser? Têm que permanecer incógnitos? Porquê? ) E não me venham com a “conversa” de que assim ficávamos iguais a eles. Isso é que nunca ficávamos.
Segunda-feira, 01.Fev.2010 at 01:02:33
Raul Nobre:
O informadores, como é evidente, não se davam a conhecer, donde impossível saber o seu nome. O mesmo com os agentes, em particular os que faziam os turnos de vigia nas celas de interrogatório. Sabia-se o nome do inspector e do chefe de brigada por constarem dos autos. Não era assim tão “fácil” organizar a “lista telefónica”. E corria-se o risco de cometer erros graves. Conto-lhe que durante a crise académica de 1962 desconfiávamos seriamente de um colega negro por estar sempre em todas as reuniões, mas à distância. Para nós seria um informador, um “bufo”. Já depois do 25 de Abril, encontrei-o: era embaixador de Cabo Verde e dirigiu-se a mim dizendo que sabia que desconfiavam dele, mas que nada podia fazer nem participar pois estava cá com uma bolsa do PAIGC.
Segunda-feira, 01.Fev.2010 at 01:02:11
Raul Nobre:
Só um acrescento ao que disse: o que é grave é nos documentos da PIDE que estão na Torre do Tombo e que nos dizem respeito, o nome dos informadores, quando os há, vem completamente apagados nas fotocópias, para que não se saibam quem são.