Dalila Mateus, num livro editado há tempos atrás mas que é uma referência da historiografia dedicada à guerra colonial (*), portanto sempre actual, aborda as actividades da Pide/DGS nas antigas colónias no período 1961-1974, uma questão que ainda é tabu, até pelos desassossegos que desperta em grande parte dos militares que participaram naquela guerra. A historiadora expõe os mecanismos de actuação da Pide/DGS em África e os meios que dispunha e que utilizava (na medida do que é possível saber-se e escapou à destruição dos arquivos). Além de demonstrar que o que se passou nas frentes das guerras coloniais foi um genocídio intermitente gerido contra as populações africanas (confirmando a caracterização feita pela ONU), para além de actos de brutalidade generalizada e de máxima crueldade praticados pelas Forças Armadas, sobretudo durante o primeiro período da guerra mas que se verificaram pontualmente até ao fim, o grosso das acções de obtenção de informação, infiltrações entre os guerrilheiros, atentados contra os seus líderes, tortura de prisioneiros, gestão de prisões e de campos de concentração (onde o internamento era ordenado pela própria Pide, sem julgamento e como sendo um ”acto administrativo”de “fixação de residência”) foram cometidas à Pide/DGS. Ou seja, na maior parte dos casos, as Forças Armadas passavam para a Pide a maior parte do “trabalho sujo” relativamente a militantes, simpatizantes ou suspeitos de simpatias para com as causas nacionalistas.
Esta “repartição de tarefas” assentou numa cumplicidade e complementaridade totais e absolutas. Para além de permitir que as Forças Armadas salvaguardassem a sua imagem de “combatentes” apenas “guerreiros”, cumprindo uma qualquer ética castrense, e com margem para a chamada “psico”, o trabalho entregue à Pide “ganhou” em “especialização” e em “eficácia” (embora, por regra, as operações ofensivas tenham sido conjuntas). Mais, tornou as duas organizações numa espécie de irmãs siamesas em que uma não podia viver sem a outra. As operações militares faziam-se com base nas informações da Pide, a Pide trabalhava os prisioneiros feitos pelas Forças Armadas. Neste sentido, as torturas, os assassinatos, as prisões indiscriminadas, cometidas pela Pide durante a guerra colonial, foram crimes da polícia política mas mancharam, na mesma dimensão de iniquidade e responsabilidade, os comandos militares irmanados com a polícia. E sabendo como sabiam o que a Pide aplicava aos guerrilheiros, a co-responsabilidade é absoluta.
Como entender a resistência havida após o 25 de Abril, em extinguir a Pide em África, em que, sobretudo em Angola, ainda trabalharam durante muito tempo integrados na PIM (Polícia de Informação Militar)? Como entender a excelente apreciação que a maioria dos oficiais de carreira fazia sobre os méritos da Pide em África? Como entender que o Alto-Comissário em Moçambique (Vitor Crespo), onde a Pide foi desmantelada mais cedo, se tenha encarregado de destruir os ficheiros da Pide? Como perceber a ausência de escrúpulos dos militares golpistas após o 25 de Abril trabalharem em estreita colaboração com ex-pides, retomando velhas cumplicidades? Finalmente, como perceber que, enquanto na metrópole, a Pide era odiada pela população, em África ela era considerada e acarinhada pela maioria dos colonos (por vezes, mais estimada que os militares que faziam a guerra)? A resposta a estas últimas questões está, como hipótese, na noção que os militares profissionais tinham que não haveria condições para fazerem a guerra sem a Pide. E sabiam que a Pide “fazia bem” o papel que lhe estava atribuído (a maioria dos guerrilheiros reconhece isso, sendo uma das raras excepções a prosápia estúpida de Marcelino dos Santos da Frelimo que afirmou que a Pide não sabia nada). Compreende-se assim que, no início da pós-revolução, a Pide continuasse viva e bem viva nas ainda colónias. Ou pela integração no PIM, ou, clandestinamente, a ajudar a “resistência branca”, transbordando depois para o combate ao MPLA e, em Moçambique, na criação da Renamo.
Parte dos oficiais de carreira profissionalizados na guerra colonial (muitos deles com três comissões feitas) deram a “volta política”, participaram na descolonização e seguiram o paradigma político do MFA. Mas um número significativo de oficiais de média e alta patente (a partir de Major na altura do 25 de Abril) foi incapazes de digerir a descolonização e entender o papel da Pide como sendo um alicerce do regime (o que, sendo verdade, não abona sobre o regime). É que não foram as Forças Armadas (só por si) que fizeram as guerras nas colónias, a Pide (só por si) tão pouco. Foi uma e outra. Foi o regime salazarista-marcelista. Quando o regime caiu, o colonialismo caiu e a descolonização só podia ter como ponto de partida o ponto de chegada do colonialismo português. O “depois” “devia” ter sido diferente e melhor. Mas o “depois”” que houve partiu do “antes” herdado. Alguns militares da época não o entenderam na descolonização e cada vez o entendem menos, servindo a profusa literatura de memória e análise que publicam, em blogues e em livros, como demonstração dessa fixação, porque o ressentimento cresce com o tempo, sem que a catarse tenha sido feita. À força de “justificarem”, perante a sociedade e eles próprios, os anos de profissão naquelas guerras, perderam essa capacidade, a da catarse da participação de uma guerra injusta, impossível de vencer, iníqua nos meios utilizados e nos crimes cometidos, directamente ou com sua colaboração.
(*) – A Pide/DGS na Guerra Colonial – 1961-1974, Dalila Cabrita Mateus, Ed Terramar.
(Texto publicado também no blogue Água Lisa)
Terça-feira, 24.Nov.2009 at 08:11:44
Não pretendo desviar atenções do que é dito neste oportuno texto e, muito menos, reduzir as responsabilidades que cada uma das entidades citadas (militares e PIDE) teve nos crimes efctuados na Guerra Colonial. Pretendo apenas juntar-lhe uma terceira componente também activa no terreno, colaborante com as outras duas e, por vezes até, suplantando-as na exploração diária dos elementos de população que, muitas das vezes, nem guerrilheiros eram. Refiro-me à autoridade administrativa local, os chamados Administradores de Posto ou de Circunscrição, com os seus “milícias” armados como guarda pretoriana.
Conheci, com diversas gradações, vários abusos dessas emtidades, alguns dos quais já tive oportunidade de referir em comentários a outros posts deste blogue.
Quarta-feira, 25.Nov.2009 at 01:11:09
Tem toda a razão em que tem sido pouco estudado e dado a conhecer o aparelho “administrativo” utilizado nas colónias. E o horrendo papel repressivo (com honrosas excepções) que desempenhou. Mas, também a meu ver, essa estrutura deve ser enquadrada na máquina de comando e opressão do colonialismo, ele mesmo, não como consequência da guerra colonial (que levou a PIDE ao “terreno”). Aliás, julgo não errar se afirmar que a guerra colonial, lenado as autoridades militares e as policiais, para o teatro de operações, secundarizou e não relevou o papel dos “administradores de posto” e dos “cipaios”, seu corpo de milícia.
Quinta-feira, 26.Nov.2009 at 12:11:50
Tem razão quando diz que o estudo deste aparelho administrativo transcenderá o período da Guerra Colonial. No entanto refiro que, pelo menos nas áreas de guerra em Moçambique, a colaboração activa destas entidades com a PIDE e com a tropa era evidente e, por vezes, mesmo as ultrapassava, no que respeita a iniciativas de exploração ou de repressão.
Sexta-feira, 27.Nov.2009 at 03:11:58
Não duvido do que diz, Jorge Conceição. Na Guiné, única experiência da guerra colonial que vivi, o aparelho “administrativo colonial”, pela exiguidade do território habitável e pela extensão da ocupação militar, dos dois lados da contenda, em que as “zonas libertadas” tinham uma dimensão assinalável, praticamente eclipsou-se (sei que era maioritariamente ocupado por quadros caboverdianos o que acicatava os ódios guineenses para com os caboverdianos e de que o PAIGC apanhou, e bem, por tabela). Mas aceito que as realidades de Angola e de Moçambique fossem muito diferentes.
Terça-feira, 24.Nov.2009 at 09:11:50
Os deputados ingleses já perguntam quem foram os responsáveis pela entrada na guerra do Afeganistão, mas são claros “que não querem julgar ninguem”.
Sexta-feira, 27.Nov.2009 at 02:11:14
Texto muito oportuno.
Mas antes das considerações morais e políticas totalmente legítimas e justas, e manifestanto também o meu acordo com o «post» de Jorge Conceição só quero sublinher que, do ponto de vista da guerra em si mesma, a PIDE era a única fonte de informações permanente e eficaz de que dispunha o exército colonial, cuja estrutura de informações de nada servia para sustentar e apoiar o combete propriamente dito.
Ao contrário do que fizeram os franceses na Argélia, em que na batalha de Argel o exército assumiu o papel «pidesco» até à mais bárbara tortura, as FA´s coloniais portuguesas tentaram sempre dar a entender que mantinham a «linha» da exemplaridade da ética militar o que é que isso possa ser. Mas como sabemos também isso não passava de uma mentira, embora muitas unidades militares, usando e servindo a PIDE naquilo que era a função própria de cada uma, tenham mantido uma atitude minimamente decente face aos prisioneiros e às populações que, como se sabe, eram ordinariamente assimiladas aos guerrilheiros sempre que isso dava jeito, quer na contagem de «inimigos abatidos» quer no tratamento para recolha de informações.
Há já bastante tempo que tenho abordado do ponto de vista histórico-político esta questão, a primeira vez nos idos de oitenta num seminário organizado pela A25A na Gulbenkian e ultimamente para além de vários escritos dispersos, numa comunicação com o título «Adeus até ao meu regresso» ao I Congresso Internacional e publicado no livro de actas do mesmo, «Guerra Colonial, realidade e ficção», editado pela editorial Notícias, Abril de 2001.
A reboque da «evolução» política sustentada por governos coniventes com a restauração da mitologia da Pátria e da «Guerra do Ultramar», começando por não terem sido capazes de assumir claramente a condenação da mesma, jogando sempre na ambiguidade da condenação do fascismo e, com medo dos generais, deixando o exército colonial sem mácula, contra o qual, aliás, se levantou o movimento dos capitães, indevidamente chamado de Movimento das Forças Armadas que, como se constata, nem sequer comemoram o 25 de Abril mas sim o 10 de Junho pressionadas pelos nostálgicos e fascistas democratizados como Jaime Nogueira Pinto. AS FA’s começaram por dar apoio logístico e acabaram por assumir toltalmente o Dia da Raça como o Presidente da República lhe chamou no último, fugindo-lhe a boca para a verdade.
Por isso a nostalgia reaccionária e revisionista está a tomar conta da memória crítica. O próprio Congresso Internacional, na 2ª edição já não foi sobre a guerra colonial mas… sobre a Guerra do Ultramar!
A reportagem exaustiva do Joaquim Furtado lá teve
Sexta-feira, 27.Nov.2009 at 02:11:59
… que intitular-se prolixa e conciliatoriamente «guerra colonial, do ultramar, de libertação».
Finalmente, do ponto de vista historico, político e cultural, e ancorado na comemoração do centena´rio da República, esta questão devia, republicanamente – a República tinha colónias, como sabemos – ser atacada com determinação e seriedade que foi totalmente deitada borda fora pelos mais altos reponsáveis do Estado.
Como já vi que no Não Apaguem a Memória há gente influente era bom que se começassem a mexer , ao menos para o Dr. Mário Soares não ser atacado por ter feito uma descolonização miserável que não existiu nem podia existir: com Pide ou sem ela a derrota militar era, foi, inexorável e foi graças a ela, à vitória da Guerra de Liobertação, que o fascismo em Portugal foi derrotado e o Dr. Soares não p+òde fazer a sua descoloniazção. Teve que dar-se por satisfeito, e nós também, creio eu, em passar dignamente o testemunho, o poder para os vitoriosos movimentos de libertação, entgre os quais o Movimento dos Capitães e o Portugal vencedor do fascismo. A liberdade uniu o que a opressão tinha separado.
E a PIDE, em geral ficou-se a rir!!!
Sexta-feira, 27.Nov.2009 at 11:11:08
Interessante e revelador este comentário de um “militar de Abril” com que não contava e que muito agradeço. Lido do princípio ao fim, este comentário é um livro aberto (outra coisa não seria de esperar da frontalidade do autor) sobre a memória da guerra colonial, particularmente quanto à simbiose PIDE/FA (repare-se como a “ferida” vai “sarando” do princípio para o fim), típica dos militares profissionais que a guerra (prolongada) transformou de oficiais colonialistas (primeiras comissões) em oficiais revolucionários (últimas comissões). Eu, que fui oficial miliciano à força, tendo estado onde “eles” estiveram e sob seus comandos, sem acartar armários fechados, não esperava melhor. Nem pior, diga-se em abono do meritório e estimado Mário Tomé que aqui saúdo.
Um esclarecimento: Este blogue não é “controlado” pela Associação Não Apaguem a Memória. Embora a redacção e os colaboradores deste blogue incluam vários dirigentes daquela (muito útil e empenhada) Associação. No meu caso, não sou dirigente nem sequer singelo associado (por circunstância de eventual desleixo, mas é assim). Portanto, outro que se encarregue do “recado” aqui encomendado.
Quarta-feira, 05.Maio.2010 at 05:05:19
sao uns cromos
Sexta-feira, 04.Dez.2009 at 09:12:15
Eu que sou da geração pós 25/4, volto a dizer que acho muito bem que não se apague a memória. Ando entusiasmado a ler o livro do Tenente Coronel Brandão Ferreira “Em Nome da Pátria”, um livro excelente que recomendo, e que desmonta as falsidades da “história oficial”, aquela que tive de ouvir na escola por professoras ingénuas ou simplesmente incultas. Um bem haja a este Militar não conformista. Não Apagar a Memória, Nunca!