muro

Em Novembro de 1989, após um êxodo intenso de alemães de leste para oeste e um conjunto crescente de manifestações populares, começou a ser derrubado o muro que dividia a Alemanha em duas. A queda do muro simbolizou a derrota histórica do socialismo soviético, mas  a transição não foi simples e indolor. Basta ver Goodbye Lenin, de Wolfgang Becker, para se perceber como a voragem da mudança levou a modos impressionantes de recusa e desnorte, que o filme ilustra magnificamente no episódio do telejornal forjado. Pese embora todo o esforço da reunificação, a antiga cortina mantém-se ainda hoje esvoaçante, ora na taxa de desemprego duas vezes maior no leste, ora nas diferenças culturais que persistem mesmo entre os mais jovens, ora em pormenores deliciosos como os distintos semáforos em Berlim – uns bonecos com chapéu ou sem chapéu –, que evocam nessa diferença a perturbante memória recente da cidade.

O número deste mês da revista L’Histoire traz-nos um dossier que ajuda a compreender e a situar essa cicatriz de betão de 155 quilómetros de comprimento e 28 anos, 2 meses e 27 dias de vida. Edgar Wolfrum alinha «sete questões sobre um muro», explicando o contexto em que foi erguido e as razões da sua queda. Étienne François, por sua vez, esclarece numa entrevista algumas das especificidades da ex-RDA. Ao mesmo tempo que considera que a organização política dessa «ditadura pedagógica» – como lhe chama mais à frente Emmanuel Droit – permanece ainda hoje visível, François nota que «é porque a RDA está efectivamente morta que pode existir o luxo da nostalgia».

Para além da reflexão colectiva de alguns historiadores sobre a Europa e a Alemanha pós-muro, destaque-se ainda um texto de Guillaume Mouralis sobre a vaga de processos e condenações de responsáveis da RDA na década de noventa, bem como o interessante artigo de Droit dedicado ao «comunismo no quotidiano». Na verdade, um óptimo aperitivo a anteceder a leitura de O Mundo Perdido do Comunismo. Uma História Oral da Vida Quotidiana do Outro Lado da Cortina de Ferro, de Peter Molloy, acabado de lançar pela Bertrand, e que procura narrar os diferentes quotidianos na Alemanha Oriental, Checoslováquia e Roménia.

O livro é uma espécie de guião elaborado por Molloy para uma série homónima da BBC e, logo nas primeiras páginas, o autor esclarece a intenção de mostrar – mais do que a repressão, a vigilância policial ou o activismo dos dissidentes – o modo como as pessoas viveram vidas «perfeitamente normais», cuja recordação nos aparece hoje frequentemente tingida pela nostalgia. Isto é claro nas palavras da actriz Corinna Harfouch: «não reconheço o meu país nas descrições que dele faz a imprensa e os meios de comunicação social. Não tivemos só Outono e Inverno. Também tivemos Primavera e Verão. A vida não girava apenas em torno da Stasi.»

Um outro entrevistado, o médico Kurt Starke, observa que os jovens e as jovens de leste tinham uma vida sexual mais satisfatória do que os seus e as suas congéneres do outro lado do muro. Os estudos que efectuou comprovam mais altas taxas de orgasmo na RDA e mostram que dois terços das mulheres jovens do país o atingiam «quase sempre» durante uma relação sexual. Um certo liberalismo no que concerne ao corpo – patente na prática elevada do nudismo e num ambiente familiar mais aberto – tomou forma a partir de finais dos anos sessenta, e terá sido marcante, na opinião de Starke, para o que ocorreu em 1989-1990.

Mas o socialismo de Estado imposto na RDA foi também um foco de ruína moral. Se na União Soviética se estima que tenha existido um agente do KGB por cada seis mil pessoas, na Alemanha de Leste, incluindo todos os informadores a tempo parcial, existiu aproximadamente um informador por cada seis pessoas. Talvez nunca nenhuma sociedade se tenha vigiado tanto a si própria. Como conclui Molloy, «o facto de muitos colaborarem com a Stasi, fosse qual fosse o nível de coacção, é um dos motivos por que fazer as pazes com o passado tem sido tão difícil para muitos cidadãos da RDA.» O autor entrevista mesmo uma dissidente que soubera depois da queda do muro que fora espiada pelo marido desde adolescente e elementos de uma banda punk cujo baixista servia de informador da Stasi.

Por outro lado, e uma vez que se entendia que a classe operária havia tomado o poder no país, qualquer demonstração de revolta era vista como uma forma mais ou menos directa de auxiliar o inimigo capitalista. Quando, a 17 de Junho de 1953, cerca de meio milhão de trabalhadores entraram em greve exigindo melhores salários, a demissão do governo e eleições livres, tanques russos invadiram Berlim Oriental e dispararam a matar sobre os manifestantes. Também a fuga foi uma forma de contestação do regime: até à construção do muro, três milhões de pessoas haviam desertado do lado oriental e muitos outros conseguiram fazê-lo já depois de 1961. Cerca de duas centenas de pessoas foram mortas a tentar transpor a barreira de betão, perante guardas que tinham ordens para disparar.

Foi precisamente a possibilidade e o desejo de viajar – a par da fúria contra as eleições fraudulentas e a fraca prestação económica – que levaram à queda do regime. Às sete da tarde de dia 9 de Novembro de 1989, Günter Schabowski anunciou em conferência de imprensa a entrada em vigor de um decreto que possibilitava viajar para o Ocidente. Questionado sobre quando entraria em vigor, Schabowski respondeu «imediatamente», sem se aperceber das consequências da palavra. Duas horas depois, os postos fronteiriços estavam inundados de gente disposta a abandonar o país. Seis horas mais tarde, o muro começava a cair.