Mário Pinto de Andrade
 
(Primeira e segunda parte deste texto.) 

 
Em 1954, Mário Pinto de Andrade parte para Paris:
«Sentia-me perseguido, como toda a gente, pela PIDE. E pressenti que, não estando ligado propriamente às actividades políticas portuguesas, seria para mim um corte na minha própria formação continuar em Lisboa. Depois, já tinha ligações com o Alioune Diop, com a Présence Africaine, e havia também já dois dos elementos do nosso grupo em Paris, Marcelino dos Santos e Guilherme Espírito Santo, da família do 37 da Rua Actor Vale.»

Sendo necessário justificar a saída de Portugal, o objectivo explícito para as autoridades portuguesas foi a participação num campo de trabalho. Saiu sem dificuldades, graças também à cumplicidade de um amigo – mais tarde seu editor – João Sá da Costa, que lhe passou um documento de idoneidade moral e financeira: «Fiz o tal mês de trabalho num campo internacional no Sudeste da França, com estudantes de vários países, entre os quais argelinos, cheguei a Paris e tive a felicidade de encontrar Alioune Diop e de ter imediatamente a esperança, ou, pelo menos, o engajamento, de trabalhar na revista Présence Africaine, na dupla função de secretário da nova série da revista e de secretário pessoal do próprio director.»

Mantinha o contacto com Viriato da Cruz e os restantes compagnons de route, mas começa a ligar-se a intelectuais africanos francófonos:
«Foi um deslumbramento. Para além de me inscrever na escola Prática dos Altos Estudos – onde tive por mestre Roger Bastide – tinha o meu quotidiano preenchido pelo trabalho na Présence Africaine, onde circulava o escol da intelectualidade francófona. Nenhum intelectual importante nesse tempo deixava de frequentar essa revista. E não só africanos, também intelectuais de outras áreas, do mundo negro. Richard Wright, por exemplo, que vivia em Paris nesse tempo, James Baldwin e mesmo o Chester Himes, de uma maneira mais peregrina, mas enfim, o essencial da intelectualidade francófona não só colaborava como mantinha contactos com Alioune Diop e eu ia, evidentemente, aprofundando os meus conhecimentos e alargando os meus horizontes culturais. E devo dizer que beneficiei da amizade pessoal não só de Alioune Diop, naturalmente, mas também de Aimé Césaire e Léopold Sedhar Senghor e indico os nomes nessa ordem pela intensidade das relações.»

Pelo próprio facto da origem senegalesa de Alioune Diop, os primeiros contactos intelectuais de Mário Pinto de Andrade com o mundo francófono foram com o meio senegalês. Mas, para além disso, Mário vivia na cidade universitária e a cidade universitária desse tempo, anos 50, plena guerra fria, era um mundo de grande agitação política:
«Devo dizer que um outro elemento importante, que não teve passagem por Lisboa, não frequentou as academias de Portugal, mas que se encontrava em Paris – tinha vindo directamente de Goa para Grenoble, passando por Moçambique – foi o meu amigo, o meu cúmplice, Aquino de Bragança. Era um homem cujo destino se cruzou com o meu e teve uma influência extraordinariamente importante, na sua qualidade de grande agitador de ideias. De modo que esta vivência de Paris foi das mais ricas e mais determinantes no meu devir cultural e político.»

Dadas as funções que exercia na Présence Africaine – mais que uma revista, um projecto cultural – Mário Pinto de Andrade vai secretariar o Primeiro Congresso dos Escritores e Artistas Negros: ««Imagine, para um jovem vindo das Ingombotas, o que significou, como abertura para o Mundo, o facto de ter trabalhado na organização desse Congresso, que reuniu os intelectuais do Mundo Negro,  o velho Price-Mars, que devia andar pelos 80 anos, e era o chefe do movimento indigenista no Haiti, Jacques-Stephen Alexis, René Depestre, vários escritores africanos e aqueles, evidentemente, que estavam já em Paris.»

Ser secretário de Alioune Diop levava-o a estar em correspondência com os secretários dos intelectuais franceses, que eram os interlocutores de Diop. Assim, por exemplo, esteve em contacto com Sartre, através do secretário deste, nessa altura, Jean Cau. E essas relações com os intelectuais franceses permitem também fazê-los intervir contra alguns actos de repressão em Portugal:
«Por exemplo, em 1956, quando Agostinho Neto estava preso, numa das suas numerosas prisões, levámos – com Marcelino dos Santos e outras pessoas – intelectuais franceses a assinar um apelo para a sua libertação. Graças aos conhecimentos e à intervenção de Alioune Diop e às nossas próprias relações, foram subscritores desse apelo intelectuais como François Mauriac, amigo pessoal de Diop, cristão, católico, Sartre, Aragon, Nicolas Guillen, que entretanto vivia em Paris e era nosso amigo pessoal, meu, do Marcelino e do Aquino.»

Aquino de Bragança, de Goa, Marcelino dos Santos, de Moçambique, Mário Pinto de Andrade, de Angola: durante todo esse tempo há uma grande ligação entre os elementos das várias colónias portuguesas:
«Estamos em 1956, um ano extraordinário no Mundo, entre o Congresso de Escritores e Artistas Negros, o relatório Krouschev – o famoso relatório Krouschev ou, para os comunistas, o relatório atribuído a – os acontecimentos na Polónia, além, evidentemente, do acesso de alguns países africanos que estão na véspera de ascender à independência, as acções no Gana e na Nigéria, a luta no Quénia, dos mau-mau, a Ásia, as primeiras guerras na Indochina, toda essa agitação no mundo dos oprimidos, no mundo afro-asiático, a agitação dos espíritos no Bloco de Leste, a desestalinização, todos esses acontecimentos agem também nas nossas mentes. Não estamos indiferentes aos avanços do Mundo e aos nossos próprios países. Mas as nossas organizações eram extremamente frágeis, pela fragilidade intrínseca desses movimentos, a repressão de que são vítimas – muitos dos actores dirigentes estão presos em Lisboa. Foi então necessário conceber uma forma de organização unitária, capaz de isolar o colonialismo português, criar aliados e, pela agitação externa, reforçar as organizações internas. Aliás, devo dizer que, depois da criação do PAI, em 56, por Amílcar e um pequeno grupo, e de várias organizações angolanas, em 1957, com a presença de Amílcar Cabral, Guilherme Espírito Santo, Marcelino dos Santos, Viriato da Cruz e eu próprio – o Aquino já tinha seguido para Marrocos – fazemos o primeiro balanço do estádio da luta anti-colonial, o estádio da luta em cada um dos nosos países. E nessa reunião, apelidada, na nossa História, de “Reunião de Consulta e Estudo sobre a Luta contra o Colonialismo Português”, fazemos a análise global de cada um dos nossos países e tomamos grandes decisões.»

Decisões que não foram, como verificaram mais tarde, as mais correctas:

«Essa análise pecou por mimetismo, o mimetismo ideológico de que padecíamos todos, pelas nossas leituras – leituras breves, pouco aprofundadas e não aferidas pelo real, o real social de cada um dos nossos países. Como todos os comunistas do tempo, estávamos dominados pela pesquisa do proletariado e tínhamos de encontrar, em cada um dos 5 países, o proletariado – que, na visão do momento, era o único motor da luta. Esse messianismo proletário revelou-se inoperante, porque era um proletariado inexistente, cujos contornos não estavam definidos pela estrutura sócio-económica de cada um dos nossos países e não foi o motor da luta de libertação. Mas a verdade é que existe esse documento, fez-se essa reunião, é a primeira reunião política de análise do conjunto dos nossos países e decidimos criar um Movimento de Libertação das Colónias, MAC – designação que não reflectia a riqueza da nossa reflexão, a realidade dessa reunião – Movimento Anti-Colonial.»

Logo depois, Amílcar Cabral volta a Lisboa, realizando viagens e missões agronómicas na Guiné e em Angola e cabe a Marcelino dos Santos e Mário Pinto de Andrade, que permanecem na Europa, a missão de «denunciar e desmitificar o famigerado humanismo do colonialismo português», um ponto central da luta política do MAC, bem como criar aliados e meios para a realização dos objectivos do Movimento.

Convictos de que seria o proletariado o motor da luta pela independência, logo em 1959, perante os acontecimentos do porto de Pidjiquiti, em Bissau, percebem que a acção não podia ser nos meios urbanos e do proletariado, mas se devia pensar que o motor de acção era o campo, em ligação com os meios urbanos: «A própria repressão de que foram vítimas os marinheiros de Bissau estava em contradição com a análise de 57.»

E, no final desse ano de 59, Amílcar Cabral lança a palavra de ordem do regresso a África: «É necessário regressar a África!»:
«A ruptura, de tipo revolucionário, vinda da Guiné, o pan-africanismo do Gana, reactivado por Kwame Nkrumah – embora viesse já da Conferência de Manchester, em 1945 – a a agitação no Congo, já nos predispunha a fazer de África o nosso ponto de congregação e irradiação das nossas ideias. E, em Janeiro de 1960, um grupo do MAC – Amílcar Cabral, Lúcio Lara, Hugo Meneses, Viriato da Cruz – participa numa reunião da Conferência dos Povos Africanos, saída da reunião da Organização Pan-Africana, realizada em 1958, em Acra.»

Angola, no entanto, já estava representada na reunião por Holden Roberto, pela UPA. A individualização angolana contrastava com a indiferenciação do MAC, que pouco depois passará a FRAIN, englobando o PAI e o MPLA: «O facto de termos criado a FRAIN e sermos não necessariamente a soma das partes, mas tomando uma nova qualidade, foi o que nos permitiu aguentar até ao fim. Esse foi o papel da FRAIN e depois da CONCP.»

Foto: Mário Pinto de Andrade, no Boulevard Saint Michel, ParisJan1955.
(Fundação Mário Soares)

(Continua)