Mário e Joaquim Pinto de Andrade 

Nasceu e morreu no mês de Agosto. Teria completado 81 anos no passado dia 21, se a morte não o tivesse apanhado em Londres poucos dias depois de fazer 62 anos – a 28 de Agosto de 1990. Pouco tempo depois, também, de ter tido oportunidade de conhecê-lo.

A partir dos anos 60 e durante muito tempo, Mário Pinto de Andrade foi para mim uma referência: angolano, nacionalista, intelectual prestigiado, primeiro presidente do MPLA. Mas só muito mais tarde, nos finais da década de 80, vim a conhecê-lo. Combinado um encontro à porta da Biblioteca Nacional e temendo não o reconhecer, perguntei-lhe se era parecido com o irmão Joaquim, que conhecia bem. A resposta desconcertou-me: «Não. Sou muito mais bonito!» Então, como reconhecê-lo? «Costuma ver muitos negros carregados de livros sair da Biblioteca Nacional de Lisboa?» 

Reencontrei a ironia na forma como, na entrevista que me deu, para a série documental «Geração de 60», definiu as suas origens sociais: «Não vêm na sociologia marxista. Era a lumpen aristocracia luandense.» Depois explicitou o conceito: «Caracterizava-se, nos anos 30, pela sobrevivência de pergaminhos familistas. Um grupo de gente que se reportava a um passado de participação na administração colonial, algumas funções na Igreja e no Exército e que ainda participavam das migalhas dessa existência.» 

O pai era um funcionário aposentado, os seus amigos eram também da área administrativa. Foi nesse meio que se formou a consciência nativista de Mário Pinto de Andrade: «A lumpen aristocracia se, por um lado, vivia dos seus pergaminhos, por outro veiculava aos seus descendentes uma consciência nativista. Havia uma ambivalência, um certo orgulho de ter sido parte integrante dessa vida no meio do colonizador e, ao mesmo tempo, de ter estado na vanguarda de uma luta contra as discriminações de que foram sendo vítimas, no seio da problemática de qualquer colonialismo.» 

De qualquer modo, sublinhou, «essa lumpen aristocracia não se situava ainda no extremo de sobrevivência do colonizado. Quem se situava nesse lugar era o indígena.» O meio em que Mário se inseria era considerado assimilado, com direito à escola e à ascensão social: «Em princípio. Evidentemente já se manifestavam outras formas de discriminação social – não falemos já de discriminação política, porque isso era mais vasto, era o próprio sistema já em vigor, o sistema do Estado Novo. Mas essas formas de discriminação social e racial exerciam-se já no nosso meio, no meio africano, exerciam-se já nas Ingombotas, onde vivi, no meio nativo em geral. Era já um meio de luta para ascender à vida social através da escola.» 

E é desse meio que saem muitos dos primeiros lutadores pela independência:
«É um longo caminho. Eu, evidentemente, tenho um percurso, um longo percurso. A própria influência familiar é um elemento importante na tomada de consciência. Primeiro, da consciência nativista, de que era necessário cada nativo estudar, ter acesso à escola, esmerar-se pela instrução, e depois pelos horizontes que a própria escola abria, quer dizer, o facto de saber ler, escrever, estar em contacto com o Mundo.»

Entre os amigos de seu pai, alguns tinham sido advogados provisionários, como António de Assis Júnior, filólogos, jornalistas, deportados, presos, perseguidos políticos: «Um conjunto de circunstâncias, de destinos pessoais que conheci e exerceram influência no meu percurso.»

Leitor precoce, o jovem Mário segue nos jornais os acontecimentos da Abissínia, a agressão italiana na Etiópia, a resistência etíope ao fascismo. Dois tios tipógrafos, um no Diário de Luanda e outro na Imprensa Nacional, terão influenciado esse gosto pela leitura: «Não só o jornal, mas também os primeiros livros. Havia já as traduções que nos chegavam do Brasil dos romances russos – e, como toda a gente, penso, da minha geração, também li “A Mãe”, do Gorki, e teve uma grande influência. Já lia os romances brasileiros, o Jorge Amado, mas os romances russos foram determinantes na minha primeira consciência de revolta. Não parece claro que um luandense – o luandense por afinidade que eu sou, afinidade intelectual e por vivência – tivesse acedido à consciência de revolta pelo romance russo, mas foi por esse détour – passe o galicismo – que eu pessoalmente ascendi a uma primeira consciência de revolta.»

A sua formação secundária deu-se no seminário de Luanda: «O acesso ao seminário foi produto de uma crise de misticismo – acontece que na adolescência se possam ter crises de misticismo, se possa amar a Virgem Maria e o Sagrado Coração de Jesus – talvez também a influência de um padre, o cónego Frota, um padre de S. Tomé, homem de grande humanidade, de quem fui acólito nas missas – antes de ser seminarista tinha sido sacristão na Igreja do Carmo, que era a igreja das Ingombotas, nas imediações da casa familiar – e talvez também, muito longinquamente, o conhecimento de antepassados que tinham sido os primeiros membros do cabido da Sé de Luanda, cónegos, a família Pinheiro Falcão.»

À partida, um seminário pareceria local pouco apropriado a criar nas pessoas um espírito de revolta… «À partida. Mas não há nenhum automatismo de que o seminário seja, necessariamente, a escola da reacção. Há exemplos da História, não quero citar sequer exemplos de revolucionários ex-seminaristas. Mas a disciplina do seminário de Luanda não era de uma extrema rigidez, e não se veiculavam ideias de um conservadorismo que nos afastasse de uma visão do Mundo em geral. A minha vivência no Seminário não me desviou dessa primeira forma de consciência que tinha adquirido no meio familiar.»

Nessa época, era muito reduzido o número de estudantes negros nos liceus: «Exerceu-se a discriminação social e era evidente que poucos podiam ascender ao liceu, além dos custos que engendrava uma presença contínua no liceu. O seminário aparecia como um recurso, porque em geral era gratuito. Permitia uma presença maior de africanos.»

Nos anos 45, 46, no fim da adolescência, Mário Pinto de Andrade não tem ainda actividade política ou cultural organizada. «Mas», como refere, «há contactos, há influências, há leituras e há, sobretudo, a observação dos fenómenos que nos rodeiam: as rusgas, os castigos corporais, a rejeição do indígena, as dificuldades gerais da vida.» Há também as conversas, «o que se veicula entre os mais velhos: Ilídio Machado, que foi um dos dirigentes do MPLA, Aníbal de Melo, o meu próprio irmão Bento Falcão Pinto de Andrade, homens que estavam em sintonia com os acontecimentos que se viviam no Mundo.»

O jovem Mário apercebe-se também das divergências que atravessam a Liga Nacional Africana, fundada em 1930, de que seu pai fora fundador, com Gervásio Ferreira Viana, Sebastião José da Costa, Manuel Inácio dos Santos Torres, António de Assis Júnior e outros: «Pelos anos 40 via-se nitidamente que os mais velhos de que lhe falei se situavam diferentemente face aos fundadores, que havia divergências na posição a tomar face ao Governo, sobretudo nas manifestações de fidelidade às posições do Governo, ao fascismo em geral.»

Recordando que «um dos promotores de um monumento ao fundador da nacionalidade portuguesa, D. Afonso Henriques, foi um dirigente da Liga Nacional Africana» , Mário acrescenta: «É evidente que uma iniciativa desse género, vinda de um velho fundador da Liga Nacional Africana, não era seguida pelas gerações mais novas. Começava a haver nitidamente um conflito entre a geração dos fundadores da Liga e os mais velhos que eu conhecia e se distinguiam já dessas posições de exaltação de tipo patriótico lusitano, face aos problemas reais da sociedade angolana, da sociedade colonizada e, sobretudo, da situação que era feita ao indígena. Quer dizer que se sentia já, num certo meio, num certo grupo, a necessidade de se assumir como angolano, mas o angolano sendo a consciência já do conjunto das classes, do grupo social verdadeiramente colonizado, que era o grupo indígena.»

Não se vislumbram ainda as formas de acção, mas esboçam-se já algumas iniciativas, primeiro de ordem literária, depois de ordem cultural, que traduzem esse sentimento a que Mário chama «angolanidade em revolta»: «Essa angolanidade em revolta vai aparecer já nos primeiros poemas do Viriato da Cruz, e já tinha aparecido, em filigrana, no poema de Maurício de Almeida Gomes. A expressão literária já reflecte essa assumpção da angolanidade.»

Angolanidade que se expressa na língua do colonizador: «Em português, com algumas expressões do quimbundo, da língua assumida e falada em Luanda.»

De par há, também, um interesse pelo estudo dessa língua: «Esses são dois elementos importantes que, no meu caso, são elementos de protesto, que era o interesse pela expressão literária e, sobretudo, a reivindicação do estudo da língua de que estávamos separados do ponto de vista do exercício literário, do exercício intelectual.»

É que só o português era autorizado na escola; o quimbundo era a língua «do quintal»:
«Mesmo nas famílias da lumpen aristocracia, que conheciam, que falavam perfeitamente o quimbundo – havia até grandes cultores de quimbundo, como Assis Júnior – nas salas falava-se o português e no quintal o quimbundo. Nós conhecíamos as duas línguas. Mas era necessário assumir o quimbundo como língua de cultura. E esse assumir o quimbundo como língua de cultura foi uma das minhas primeiras reivindicações, mais tarde, já em Portugal.»

Marcante na vida do jovem Mário Pinto de Andrade foi a amizade com Viriato da Cruz:
«Comecei a frequentá-lo assiduamente por volta de 1945/46, graças até à vizinhança – toda a gente morava nas Ingombotas, naquele tempo, ou, pelo menos, parte significativa daquilo a que se poderiam chamar «jovens intelectuais» – e, em 1948, quando se decidiu a minha partida de Luanda para Portugal, para prosseguir estudos universitários, visitei-o no então Hospital Maria Pia, onde se encontrava doente, e aí selámos um pacto que tinha uma vertente cultural e, subjacente, uma vertente política: de manter uma correspondência sobre a nossa evolução mútua, ele de Luanda, de Angola, comunicando o que se iria passar e o que escreveria e eu, de Portugal, comunicando-lhe a minha evolução como indivíduo e como indivíduo no grupo – deveria haver grupo, porque já outros estudantes estavam em Portugal, Agostinho Neto, Américo Boavida, Humberto Machado e naturalmente que deveria acontecer alguma coisa. Este “acontecer alguma coisa” devia ser registado numa troca de correspondência. Foi esse pacto que ambos cumprimos e foi registado numa correspondência de que, infelizmente, parte desapareceu.»

Foto: Mário e Joaquim Pinto de Andrade, Seminário de Luanda, 1940.
(Fundação Mário Soares)

(Continua aqui)