Otelo e Vasco Gonçalves

Com as suas características próprias, a seu tempo assinaladas, Abril tem indubitavelmente os seus heróis. Heróis supletivos como Spínola, ou heróis genuínos que, emergindo do grande corpo colectivo do MFA, se impuseram, breve mas intensamente. Desses elejo a dupla Otelo e Vasco Gonçalves. Surpreendentemente, eles funcionam como um par de opostos: como se a força catalisadora de cada um ganhasse com a presença do outro, numa tensão que se alimenta mais do conflito do que do consenso. 

Parto de uma fotografia, uma simples fotografia de Vasco e de Otelo, em Tancos, cenário de todos os confrontos, que inspira esta inquietante passagem do filme Gestos e Fragmentos de Alberto Seixas Santos:
«O que foi a Assembleia de Tancos? O começo da luta pelo poder? O fim dela? Estão juntos perante a Assembleia do MFA. Talvez os dois heróis estejam a olhar para o microfone. Ou estará Otelo realmente de olhos baixos? Está inclinado, já quase fora da imagem, puxado por uma força marginal invisível. Parece cair para o nosso lado. O rosto é apanhado em movimento. O corpo está torcido, numa incerteza na intenção, e Vasco segura-lhe a mão, impedindo-o de cair. Os tendões do pulso de Otelo estão retesados. O braço dele é puxado para trás, enquanto o pulso de Vasco é firme e seguro. Vasco dirige-se ao microfone voltado para a frente, para a Assembleia, mas metade do seu corpo parece desaparecer na espessa escuridão. Vão ser separados, sair de cena, mas o microfone permanecerá.»

O estudo comparativo das zonas de afastamento e proximidade entre eles, revelando muito sobre os respectivos traços e projectos pessoais, revela tanto ou mais sobre as imagens que deles construímos. Apesar das notórias diferenças intrínsecas, coexistiram no imaginário político abrilista durante algum tempo, até que a sua traumática e dolorosa separação, tantas vezes anunciada e outras tantas desmentida, foi um outro, porventura decisivo, golpe para os revolucionários e para a revolução. A célebre carta escrita por Otelo a Vasco – «Agora, companheiro, separamo-nos (…) Peço-lhe que descanse, repouse, serene, medite e leia» – abalou e emocionou o país inteiro como se tivéssemos perdido a nossa «fada Morgana»: a unidade dos revolucionários, os quais, cada um por seu lado, ditavam a morte da revolução e com ela também o fim do seu breve período como seus símbolos maiores.
Evoluem em cena, quer antes quer depois do decisivo afastamento, de forma radicalmente oposta. À teatralidade nata (por vezes vedetismo?) de Otelo, opõe-se a simplicidade sem pose (por vezes humildade?) de Vasco Gonçalves. À inconstância (quase leviandade?) de Otelo, opõe-se a firmeza (quase obstinação?) de Vasco Gonçalves. Finalmente, a um estilo lúdico de fazer política por gosto em Otelo, opõe-se a gravidade obsessiva de quem a faz por missão, em Vasco Gonçalves.
As imagens que nos ficam de um e outro, nas mais variadas aparições públicas, também não podem ser mais contrastantes: o desconcertante optimismo (quase inconsciência?) de Otelo, mesmo nos momentos mais críticos e dramáticos, face à extrema preocupação (quase crispação?) de Vasco Gonçalves.
E se avançarmos nos anos, para além do tempo revolucionário, melhor avaliamos o muito que os separa: VG retira-se de cena e remete-se a um silêncio em que não é difícil pressentir o travo do desencanto e mesmo do ressentimento. O seu abandono da cena política é violento e abrupto, podendo até situar-se com toda a exactidão no espaço e no tempo: Almada, 18 de Agosto de 1975. Perdidas para sempre a unidade e a força colectiva surge, na sua trágica solidão e imensa fragilidade, a figura do general derrotado.
Por isso, à medida que a realidade lhe foge, a linguagem perde o seu antigo poder denotativo e transforma-se em discurso solitário e fechado. O seu ritmo febril, os axiomas redutores, a confusão argumentativa, a frontalidade e veemência das acusações fazem do discurso de Almada o lugar onde se conjuga energia e morte, sonho e desespero.

Ao contrário, nada de semelhante acontece com Otelo. Não há lugar nem data para a sua queda. O mito vai-se esfumando, desgastando lentamente e aos olhos de todos. Não persiste, pois, na nossa memória uma imagem concreta, de contornos claros como a que nos deixa Vasco Gonçalves. Antes se misturam imagens fluidas, dispersas, e até contraditórias. Porque se é verdade que assistimos a momentos únicos de exaltação e entusiasmo colectivos, polarizados no irreverente e popular comandante do COPCON, ou no carismático candidato presidencial em 1976, por exemplo, assistimos também ao seu desgaste, de que a segunda candidatura, em 1980, é já o prenúncio, e a sua prisão em consequência do alegado envolvimento na organização FP25 de Abril, a confirmação mais veemente e desesperada. Para trás ficaram as incendiárias afirmações quanto aos contra-revolucionários que deviam ser metidos no Campo Pequeno, à distribuição de armas a civis, ou quanto ao Fidel Castro da Europa…
Por isso, o imaginário colectivo recordará Otelo não como um personagem único, com um único papel no grande cenário revolucionário, mas como alguém que representa vários (não fosse a sua velha paixão pelo teatro…) sem ninguém poder afirmar que máscara corresponde ao rosto verdadeiro. «Quem teria sido o verdadeiro culpado dos erros de Otelo, sempre tão generoso, e também tão inconsequente? É uma história que apetece fazer!» afirma, perplexo e curioso, Gomes Mota.
Eduardo Lourenço, que também lhe chamou enfant terrible da revolução, dá-nos talvez a mais perfeita e fiel imagem, de alguém «singularmente contrastante e imprevisível, mas nunca em absoluto infiel à audácia e à generosidade que um dia fez dele a chave da nossa Revolução».

Otelo (um amigo) e Vasco (um companheiro), só unidos se impõem e diluem-se inevitavelmente na divisão. No fundo os portugueses amavam-nos e admiravam-nos igualmente e queriam vê-los juntos, porque se completavam na diferença, porque só juntos asseguravam o triunfo do sonho, acima de mesquinhos sentimentos divisionistas.
Desaparecendo de cena, apesar da decepção e do desencanto, outros heróis tomarão o seu lugar. A extrema volubilidade com que esta revolução gerou e devorou os seus heróis, empurrou-os demasiado cedo se não para o anonimato, pelo menos para uma certa zona de penumbra e indiferença. Abdicando dos seus símbolos a revolução começa a abdicar de si própria.