Censuricidio1Marcelo Caetano

 
Um texto de Daniel Ricardo (*)

 
Este é o terceiro post de uma série intitulada «Censuricídio», onde será divulgada a versão integral, por vezes mais completa, de textos publicados na VISÃO História, n.º 2 e na VISÃO de 23/4/2008. Se clicar no ícone «Censuricídio», acederá ao texto anterior. 
 
Com Marcelo Caetano no poder, nada se alterou – pelo contrário, em certos aspectos, a situação piorou, porque nunca lhe passou pela cabeça extinguir a censura. Lido à distância das décadas decorridas desde que tomou posse como presidente do Conselho de Ministros em substituição de Salazar, o seu discurso sobre informação assume um significado muito diferente daquele que, em 1968 e no início dos anos setenta, lhe atribuía quem acreditava na então chamada «primavera marcelista».
Embora, numa entrevista ao Jornal do Congo, em Maio de 1969, por ocasião da sua visita às colónias, Marcelo Caetano tivesse afirmado que pertencia aos jornalistas o direito de criticar e aos serviços do Estado o dever de responder às críticas, a verdade é que, em diversas outras intervenções públicas, não escondeu o que lhe ia, de facto, no pensamento. Entrevistado pelo jornalista João Coito, do Diário de Notícias, em vésperas das eleições daquele ano, em Portugal, explicou, deste modo, porque se mantinha a censura: «Primeiro, porque, a braços com uma guerra subversiva, em que a retaguarda desempenha papel essencial e a rama psicológica é das mais importantes, seria neste momento imprudente abandonar uma defesa que os Estados adoptam em períodos e situações semelhantes. Segundo, porque sempre pensei que, depois de quarenta anos de regimeCensura_carimbos de censura, se impõe um período de transição, em que, por meio de habituação progressiva do meio e da responsabilidade crescente, se vão preparando as pessoas para a liberdade de imprensa.» E em Depoimento, livro que escreveu em 1974, no Rio de Janeiro, onde, após o 25 de Abril, se exilou, é ainda mais claro. Além de se referir à necessidade de defender o regime do Partido Comunista Português e dos «terroristas», insiste: «Quase meio século de censura desabituara os jornalistas do sentimento das responsabilidades, a começar pelos directores dos jornais que comodamente descarregavam sobre os censores o encargo de dizerem se um texto devia ou podia ser publicado. Desabituara também a Administração Pública das críticas e do esclarecimento oportuno da opinião. Os próprios leitores haviam perdido o critério para apreciar os jornais e a matéria neles inserta. Era preciso fazer a reeducação progressiva de todos estes elementos.» 
 
As ‘mudanças’ de Caetano

A estratégia de Marcelo Caetano consistia, pois, em «piscar o olho» aos elementos moderados do regime e da oposição, prometendo a liberdade de imprensa para depois de «um período de transição» ou de «reeducação», necessário, segundo advogava, devido à «irresponsabilidade» dos jornalistas e seus directores, da opinião pública e da própria Administração Pública, e, simultaneamente, em tranquilizar os mais conservadores, sugerindo que tal só aconteceria quando acabasse a guerra colonial e… o Partido Comunista. Por outro lado, a fim de criar a ilusão de que alguma coisa estava a mudar em relação à política salazarista, rebaptizou uma série de organismos e procedimentos e anunciou a elaboração de uma nova Lei de Imprensa. Começou por substituir o Secretariado Nacional de Informação (SNI) pela Secretaria de Estado de Informação e Turismo, dirigida por Moreira Baptista e entre cujas funções se incluía a superintendência dos Serviços de Censura – ou melhor, de Exame Prévio, como determinou que aqueles passassem a chamar-se – e do Conselho Nacional de Informação, encarregado de «coordenar a acção dos diversos departamentos oficiais em matéria de informação». Depois, nomeou um novo director de censura, o coronel Armando Páscoa, que fora colaborador de vários jornais, designadamente do oposicionista Diário de Lisboa, e mandou alterar os carimbos dos censores – de visado para visto, de cortado para proibido, de autorizado com cortes para autorizado parcialmente e de suspenso e retido para demorado.
É justo reconhecer que, no início, se registou um certo abrandamento do rigor censório. Foi, por exemplo, consentida a publicação de cartoons políticos, embora não tardasse a ser novamente proibida, porque Marcelo Caetano não gostou de se ver numa caricatura. Para se compreender as razões dessa estreita abertura inicial, que beneficiou mais uns jornais do que outros e mais os artigos de opinião do que os textos informativos, impõe-se, em primeiro lugar, reler a mencionada entrevista do presidente do Conselho ao Jornal do Congo e, em segundo lugar, levar em linha de conta as novas instruções entretanto transmitidas à Censura.
Numa passagem daquela longa conversa, em Angola, Marcelo Caetano afirma: «Evidentemente que certo artigo (…) de tom socialista, por exemplo, poderia e deveria ser publicado em determinado tipo de jornal, que tem determinado tipo de leitores, que a ele irão procurar opiniões pré-conhecidas. Isso será normal. Mas já poderá assumir características totalmente diferentes a publicação do mesmo artigo noutro jornal, que atinja um quadro de leitores não diferenciado e sobre o qual a aparição súbita de tal escrito possa causar repercussões indevidas.» Não causa, assim, surpresa que, na altura, saíssem no República notícias que nomeadamente A Capital era impedida de divulgar.
Por outro lado, em Outubro de 1968, César Moreira Baptista, então ainda subsecretário de Estado da Presidência do Conselho, fixa por despacho, novas Normas a observar pelos Serviços de Censura, que, durante algum tempo, terão deixado os censores hesitantes quanto ao que deviam ou não autorizar. Tanto mais que, além da dificuldade de perceber, com base no seu discurso redondo, os verdadeiros desígnios de Marcelo Caetano, este tinha, em diversas intervenções, transferido para eles a responsabilidade da interpretação das instruções emanadas do Governo. «Uma coisa são as instruções genericamente estabelecidas e outra a sua aplicação aos casos concretos, por força dependente do critério da pessoa que o faz», diria o presidente do Conselho a João Coito.
As novas normas não eram, todavia, muito diferentes das anteriores, estabelecidas ao longo dos anos em que Salazar governou Portugal. Com efeito, embora acentuando o carácter casuístico da intervenção da censura que passa a actuar com maior tolerância quando tal convém ao Governo, continuavam a proibir a publicação «de notícias, artigos, crónicas ou comentários ou de quaisquer outros textos que possam ferir os princípios que informam a ordem jurídica constitucionalmente estabelecida», sejam ofensivos dos órgãos de soberania, da «moral cristã tradicional no país» ou das Forças Armadas, que «defendam ideias pacifistas», que «visem directamente, de modo isolado ou em campanha, a alteração da política adoptada quanto ao Ultramar Português», que «procurem criar um clima de agitação social ou constituam um incitamento à subversão, nomeadamente através da divulgação de doutrinas marxistas ou de propaganda das actividades comunistas», etc., etc. Continham, no entanto, algumas novidades, entre as quais a proibição dos textos «que atinjam, de qualquer modo, o Presidente Salazar, cuja obra como homem e como político só pode ser discutida em termos que não diminuam a sua figura», e também daqueles que «pretendam, directa ou indirectamente, estabelecer uma antinomia política entre o Presidente Salazar e o Presidente do Conselho». De resto, chamava-se a especial atenção dos censores para tudo quanto se relacionasse com exigências de aumentos salariais e com reivindicações académicas, ordenava-se que ficassem suspensos (ou demorados, na terminologia marcelista), até decisão superior, «os textos que venham a ser produzidos sobre as eleições de 1969» e sublinhava-se: «Merecem a maior reserva todas as tentativas para fomentar campanhas de apoio e adesão às novas orientações de certo sector da Igreja Católica.» Ou seja, os católicos progressistas que, em várias ocasiões, se tinham pronunciado contra a política de Salazar e a violência da PIDE.

A muralha censória

Seja como for, a imprensa, tal como a literatura, o teatro, o cinema e todas as manifestações de cultura popular, há mais de quatro décadas submetidas ao sufoco censório, sentiram algum alívio, até às eleições de 69. Depois, a censura voltou a ser como sempre fora desde 24 de Junho de 1926, quando foi instituída – implacável e frequentemente estúpida. Talvez por considerar que o resultado do sufrágio legitimara a sua política, o presidente do Conselho já não precisava de fingir que desejava restaurar as liberdades. Além disso, era óbvio que começara a ceder às pressões dos ultras, no sentido de endurecer o regime, na sequência do aumento das lutas dos trabalhadores por melhores condições de vida e do agravamento da situação nas colónias.
Neste contexto, como, de resto se esperava, a Assembleia Nacional rejeitou, pura e simplesmente, o projecto de Lei de Imprensa que os deputados da Ala Liberal Francisco Sá Carneiro e Francisco Pinto Balsemão tinham apresentado, em 22 de Abril de 1970. Nesse diploma, consagrava-se a liberdade de expressão do pensamento e de fundação de empresas jornalísticas, sem necessidade de autorização, de caução e de habilitação, limitava-se o exame prévio aos temas militares, encarregando-se da tarefa uma comissão que funcionaria no Ministério da Defesa, enquanto durasse a guerra colonial, atribuía-se aos jornalistas os direitos de acesso às fontes de informação e ao sigilo profissional e previa-se a criação de conselhos de Redacção, além de se entregar ao tribunais comuns o julgamento, com base nas leis gerais, dos crimes cometidos através da imprensa.
O Sindicato Nacional dos Jornalistas, cujo projecto, da autoria de José Carlos de Vasconcelos e João Arnaldo Maia, aprovado pela classe em 3 de Fevereiro de 1970, também fora ignorado pelos parlamentares situacionistas, aplaudiu a iniciativa, não obstante manifestar discordância em relação, fundamentalmente, à manutenção da censura das notícias militares, às competências dos conselhos de Redacção, que entendia deverem ser mais amplas, e à regulamentação do exercício da profissão pela Corporação da Imprensa e Artes Gráficas.
Mas o que aniquilou definitivamente as ilusões de quem ainda julgava possível a liberalização do regime foi o teor da Lei de Imprensa (Lei de Bases da Imprensa, n.º 5/72 e o Estatuto da Imprensa, n.º 150/72, publicados no Diário do Governo, respectivamente, em 5 de Novembro e em 5 de Maio de 1972.) que não só mantinha a censura prévia administrativa à qual o decreto n.º 22 469, de 11 de Abril de 1933 dera força de lei, como sujeitava a julgamento nos tribunais plenários de Lisboa e Porto, os crimes considerados políticos e estabelecia, para as outras infracções, que tipificava, pesadas penas, incluindo elevadas multas, prisão até dois anos, suspensão e mesmo encerramento das publicações e interdição do exercício da profissão. Mais: ao passo que, anteriormente, a responsabilidade pelos delitos era, sucessivamente, do autor do escrito ou da imagem e do editor, agora passava a ser, solidariamente, do jornalista, do chefe de secção, do director e da empresa, bem como dos tipógrafos, quando se tivessem apercebido da natureza «criminosa» da publicação. Objectivo: promover a censura interna.
Quanto a limitações, restrições e proibições, em Instruções sobre o Exame Prévio, documento enviado aos órgãos de informação em 1 de Junho de 1972, concretizava-se, em 17 alíneas, o estatuído na Lei 5/72, sobre os crimes de imprensa, na linha das Normas elaboradas por Moreira Baptista. Tratava-se de proteger os órgãos de soberania com uma muralha censória impossível de transpor pelos críticos da ditadura. Já na Lei 150/72 consideram-se delitos puníveis, entre muitos outros, não submeter originais ao Exame Prévio ou não respeitar as suas decisões, não publicar as notas oficiosas ou os comunicados oficiais, divulgar impressos clandestinos ou informações classificadas e, bem assim, relatar casos de homicídio, suicídio, uso de estupefacientes, aborto, vadiagem e libertinagem.
Em contrapartida, os jornais foram dispensados de publicar na 1.ª página a frase «Visado pela Censura». E, nos documentos oficiais, os censores passaram a ser tratados por «leitores». Marcelo Caetancaixa_post3o tinha, além disso, travestido de Exame Prévio os Serviços de Censura e «censurado» as expressões «cortado» e «autorizado com cortes», nos carimbos dos coronéis do lápis azul, substituindo-as por «proibido» e «autorizado parcialmente». Esta tentativa de tornar ainda mais invisível o «censoricídio» não obstou, todavia, a que este prosseguisse até à Revolução de Abril. Viu-se, então, até que ponto eram hipócritas as alegações do deposto chefe do Governo de falta de responsabilidade dos jornalistas e do público.

 
A seguir: Na dúvida corte-se

 
(*) Biografia de Daniel Ricardo