Spínola e Zé Povinho 

 
Na continuação do post dedicado ao MFA, como herói colectivo, inicio hoje a série de heróis individuais que, apesar de tudo, não deixaram de se afirmar no imaginário da revolução. [Clicar no logotipo no canto superior direito para aceder ao anterior.]  
 
Desse mítico corpo colectivo do MFA vêm a emergir figuras que, apesar da extrema efemeridade (maior ainda quando comparada com a duração do herói colectivo), e do crepúsculo porventura apressado em que se diluem, não deixam de ocupar no imaginário popular um lugar muito próximo ao dos heróis.
O primeiro, cujo período de glória se esvai precisamente entre 25 de Abril e 28 de Setembro de 1974, é António de Spínola. O modo como é investido faz dele um herói supletivo. Ou seja: alguém que os capitães, ao insistirem no anonimato, e num obsessivo respeito pelas hierarquias («tragam-me ao menos um coronel», insistia Salgueiro Maia, perante a perspectiva de ter que ser ele a negociar a rendição de Caetano), empurraram para a ribalta, transformando-o em rosto visível e por algum tempo principal de um movimento com o qual manteve mais do que discretas ligações.
Do que não há dúvida é de que nos primeiros meses o velho general é visto, quer em Portugal quer no estrangeiro, como incontestável líder dos revoltosos.
E se o horror ao poder dos jovens capitães ajudou a essa operação, Spínola não deixou de contribuir decisivamente: a sua pose aristocrática e teatral, o cuidado posto na escolha dos adereços – o monóculo, o pingalim e as luvas – a sua retórica política um tanto apocalíptica e catastrófica (quem não se lembra do Bom Povo Português…com que invariavelmente iniciava as suas intervenções?…), a sua fama de excepcional cabo de guerra, contribuíram para lhe desenhar o perfil e construir a imagem. 

De pouco interessará, para o nosso objectivo presente, lembrar o passado obscuro da personagem, e sublinhar que as apregoadas qualidade militares de Spínola estavam longe de ser unanimemente reconhecidas por quem mais capacidade tinha para o fazer, desmascarando a sua irresistível vocação para operações de propaganda, porque isso seria introduzir racionalidade num mito, quando a sua matéria é, como sabemos, bem outra.
À história, obviamente, interessará saber o modo, no mínimo pouco claro, como o general do monóculo vem a surgir como Presidente da Junta de Salvação Nacional e, como tal, Presidente da República, «empalmando», para usar as exactas palavras de Otelo, no próprio dia da vitória, os ingénuos capitães e fazendo, com esse gesto, inflectir à nascença a direcção do próprio movimento. Afinal mais do que conquista do poder, ele protagonizou uma espécie de estranha investidura. Não foi Marcelo Caetano que, fazendo jus à sua qualidade de eminente jurista, num derradeiro mas significativo acesso de pura legalidade, o mandou chamar «para que o poder não caísse na rua»?
O gesto, parecendo gratuito, ou pelo menos inócuo do ponto de vista puramente político, é de enorme carga simbólica, e passível de várias leituras. Do lado dos vencidos, como última tentativa de cair com honra. Do lado dos vencedores, uma prova da sua magnanimidade e ausência de espírito de vingança. Mas com o tempo ele virá a constituir um sério argumento para as leituras da experiência portuguesa como continuidade e não como ruptura. Mudar de mãos é muito diferente de cair na rua. Aliás, quando as mãos eram as de Spínola, havia fortes razões de esperança de que a revolução morresse à nascença. A grande movimentação diplomática (vejam-se as iniciativas de Pedro Pinto e de Feytor Pinto que fizeram do Grémio Literário a central telefónica para colocar Spínola em contacto com o Quartel do Carmo), à margem dos capitães e do povo que enchia as ruas, anunciava, logo às primeiras horas, que o poder, sobretudo em revolução, nem sempre está onde parece.

O certo é que tudo isso se lhe perdoou, e penso não estar errada ao detectar uma nota de contida admiração, precisamente em quem mais razões tinha de agravo: «sentado numa cadeira da sala de oficiais do RE1, olhando o televisor, guardei para comigo um pensamento linear: o sacana do velho lá enfiou o barrete aos outros e a nós todos, e vai mesmo para presidente» (Otelo Saraiva de Carvalho, Alvorada em Abril, 1977, p. 480).
Tudo se lhe perdoou, excepto o 28 de Setembro, acto pelo qual desfere o primeiro golpe fatal na unidade do MFA e inicia um percurso politico-militar em aberta hostilidade ao movimento que o consagrara. O seu abandono do colectivo, feito pelo lado das forças contra-revolucionárias, o seu posterior envolvimento no 11 de Março e nas organizações terroristas do ELP e do MDLP, tem o nome de traição. Ele não é, pois, um revolucionário tragicamente devorado pela própria revolução, mas alguém que ela expulsa violentamente do seu seio. Sobrevive pois, não para nos falar da inevitável dimensão trágica que todas as revoluções comportam, mas sim dos perigos mais sombrios que sempre as ensombram e ameaçam. Personificação do clássico tema do complot maléfico que conspira sob os mais diversos disfarces, só a proverbial brandura do povo português o salva desse rótulo odioso, preferindo representá-lo como excêntrica e ambígua figura de opereta.

(Continua)