Medo 

Durante as dezenas de anos do Estado Novo, muitos portugueses olharam cuidadosamente em redor, na rua, no café ou na tasca, antes de exprimir a sua opinião sobre qualquer assunto tido por «político». Temiam os «bufos», que informavam a polícia política do que ouviam, e os resultados da denúncia: perseguição, desemprego, prisão.

O medo insinuava-se nas conversas e nos comportamentos, nessa forma especial de olhar para trás, sobre o ombro, ou de evitar sentar-se num café de costas para a entrada, que ainda hoje encontramos em muitos desse tempo. No Poema pouco original do medo, Alexandre O’Neill escreveu: «O medo vai ter tudo/ (…) / Vai ter olhos onde ninguém o veja/ mãozinhas cautelosas/ enredos quase inocentes/ ouvidos não só nas paredes/ mas também no chão/ no tecto/ no murmúrio dos esgotos/ e talvez até (cautela!)/ ouvidos nos teus ouvidos / (…) /Ah o medo vai ter tudo/ tudo /(Penso no que o medo vai ter/ e tenho medo/ que é justamente / o que o medo quer). / O medo vai ter tudo/ quase tudo/ e cada um por seu caminho/ havemos todos de chegar/ quase todos/ a ratos».

Esses ouvidos nas paredes, no chão, no tecto, até nos próprios ouvidos, tinham nome: PVDE, Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, de 1933 a 1945; PIDE, Polícia Internacional e de Defesa do Estado, de 1945 a 1969; DGS, Direcção-Geral de Segurança, de 1969 a 1974.

Pouca coisa mudou de uma para outra das designações: todas juntavam à vertente interna, «de prevenção e repressão contra os crimes de natureza política e social»[1] uma outra, internacional, de vigilância das fronteiras e dos estrangeiros.

Esta segunda vertente, particularmente activa durante o período da Guerra Civil de Espanha e da Segunda Guerra Mundial, tinha entre as suas missões o combate à espionagem e a repressão do comunismo e defendeu uma severa restrição na entrada de estrangeiros, nomeadamente de judeus. Um ofício confidencial do director da PVDE, datado de 23/03/38 [2], explica que «um judeu estrangeiro é, por norma, politicamente indesejável».

No plano interno, a PVDE detinha o poder de vigiar, prender e instruir os processos, além de administrar as prisões onde eram encarcerados os inimigos do regime. A PIDE continua a vigiar, prender e instruir os processos – e, se o controlo sobre a Colónia Penal do Tarrafal e o Depósito de Presos do Forte de Peniche foi transferido para o Ministério da Justiça, continua a assegurar o transporte dos presos em prisão preventiva e pode prolongar, por tempo indeterminado, o cumprimento de pena, pela aplicação das «medidas de segurança», de seis meses a três anos, infinitamente prorrogáveis. A mudança para DGS não altera o essencial das suas competências e a mudança dos interrogatórios para o Reduto Sul do Forte de Caxias reforça o seu controlo sobre os presos preventivos, detidos no Reduto Norte. E, em pleno marcelismo, um novo decreto [3] vem dizer que «a assistência a um preso pelo advogado poderia ser interditada quando houvesse inconveniente para a investigação ou a natureza do crime o justificasse, devendo nestes casos o advogado ser substituído por um defensor ad hoc ou por duas testemunhas qualificadas e obrigadas a segredo profissional».

Apesar do envio de presos políticos para as colónias – nomeadamente para a Colónia Penal do Tarrafal, criada em 1936, onde morreram alguns dos mais importantes dirigentes comunistas e anarquistas (e mais tarde usada para prisioneiros das colónias) -, só em 1954 viria a ser criado, pelo Dec- Lei 39749, de 30 de Agosto, um «quadro especial do Ultramar», com um reduzido número de efectivos: 58 elementos, num total de 755 [4]. Proporção alterada pelas lutas de libertação: em 1974, encontravam-se nas 3 colónias em guerra 70% dos inspectores e 73% dos chefes de brigada [5].

E se, em Portugal, a tortura se foi tornando mais «científica», nomeadamente com a privação de sono ou a «estátua», diminuindo o número de mortes, que não o de sequelas psíquicas, nas colónias manteve-se brutalmente física e causou a morte a inúmeros prisioneiros. Até porque a aplicação de sevícias obedecia a uma lógica de classe, sendo os intelectuais (excepto os «clandestinos») normalmente menos espancados do que os operários e camponeses – e os africanos vinham em último na escala social.

Neste país sob severa vigilância, a violação de correspondência era um dado adquirido e tentar contorná-la um risco que podia implicar meses de prisão [6]. Os vigiados podiam ser os mais diversos. Tratando-o embora por «Príncipe», a delegação da PIDE/DGS em Moçambique não se coibiu de, em ’72, interceptar e fotocopiar uma carta de Miguel de Bragança ao pai – que a polícia trata por «Sua Alteza Real Dom Duarte» – em que aquele descreve dirigentes da Junta Monárquica de Moçambique como «reaccionários» que queriam «uma monarquia salazarista»… [7]

Também os telefones eram vigiados: para além de diversos militares, de Costa Gomes e António de Spínola a Kaúlza de Arriaga, ex-presos políticos e seus familiares e alguns deputados da ANP, a PIDE/DGS fazia ainda 11 horas por dia de escuta aleatória. E reservava 5 aparelhos para o registo das conversações do Presidente da República, Américo Tomás, e do Presidente do Conselho, Marcelo Caetano, cujos telefones secretos tinha descodificado [8].

Das escutas resultava uma ficha – «Elementos informativos sobre indivíduos em escuta» – em que se recolhiam muito mais elementos do que os que teriam «justificado» a escuta. Duas alíneas são particularmente significativas: a 5ª, «Inf. que poderia ser usada como chantagem» e a 6ª, «Idem para assustar ou deprimir» [9].

É a esta polícia que 32 empresas pagam para obter informações sobre os seus trabalhadores e a possibilidade de eclosão de conflitos laborais.

É esta polícia que, chegada ao 25 de Abril com três milhões de fichas individuais, correspondentes a cerca de um milhão e duzentas mil pessoas [10]com um historial de perseguições, torturas e assassinatos, perante a hesitação da Junta de Salvação Nacional, que pretende mantê-la, dispara sobre a população que a cerca, provocando mais quatro mortes.

Onde estão então os «brandos costumes»?

[1] Decreto-Lei 22 992, 29/08/1933, Preâmbulo, apud Ribeiro, Maria da Conceição, A Polícia Política no Estado Novo, 1926-1945, Editorial Estampa, Lisboa, 1995.

[2] Ibidem.

[3] Decreto-Lei 368, 30/09/1972 (apud Mateus, Dalila Cabrita, A PIDE/DGS na Guerra Colonial 1961-1974, Arquivos do Século XX, Terramar, Lisboa, 2004.

[4] Idem.

[5] Ibidem.

[6] Acusada de levar para Paris, para ali a pôr no correio, uma carta para o Comité Director do MPLA, Mª José Pinto Coelho esteve presa 13 meses, até ser absolvida pelo Tribunal Plenário de Lisboa, que ratificara a sua detenção.

[7] In Vasco, Nuno, Vigiados e Perseguidos, Documentos secretos da PIDE/DGS, Realidade e Denúncia, Livraria Bertrand, Lisboa, 1977.

[8] Idem.

[9] Ibidem.

[10] Ibidem.

(Publicado no nº 11 da colecção Os anos de Salazar/ O que se contava e o que se ocultava durante o Estado Novo , coordenada por António Simões do Paço.)